Por Alexander Bogdanov

O texto a seguir constitui a segunda parte de um artigo de Alexander Bogdanov publicado na revista britânica “Labour Monthly, que o publicou na 5ª edição do ano de 1923. Àquela altura, já havia indícios de que Bogdanov contribuía com o “Pravda” e fazia oposição direta ao regime bolchevique, acusando-o de inaugurar na Rússia revolucionária uma nova classe de burocratas e, com a NEP, desmantelar a perspectiva de inaugurar uma “cultura proletária”, propósito que norteou o Proletkult e fez com que o Partido Comunista visse com maus olhos aqueles que se opunham às diretrizes ortodoxas de Lenin. Este artigo, traduzido por Alan Fernandes a partir da sua versão em inglês, busca dar visibilidade às contribuições de Bogdanov para o público lusófono. Infelizmente, a censura stalinista fez com que Bogdanov só fosse traduzido para o inglês com muito atraso, e só no ano retrasado teve seu primeiro livro traduzido para o português, “Red Star”, romance sobre um comunismo interplanetário situado no contexto da primeira revolução russa, em 1905.

É perceptível que a poesia no mundo burguês ainda preserva o teor de uma consciência autoritária, pois a sociedade burguesa ainda há de preservar muitos dos elementos de uma colaboração impositiva, de autoridade e subordinação. A variedade de grupos burgueses — sejam grandes capitalistas ou mesmo pequenos-burgueses, intelectuais, proprietários de terras, dos mais retrógrados aos mais progressistas, especuladores, rentistas, etc., junto com as misturas e combinação entre esses grupos — naturalmente dá à luz uma variedade de formas e questões subjetivas na poesia, mas o modelo básico é comum a todos.

Na produção fabril as divergências fundamentais sobre a natureza do trabalho começam a desaparecer. As mãos que realizam o trabalho não se resumem a somente mãos, pois o trabalhador não é um autômato. Embora seja subordinado, é ele também quem comanda o “escravo de ferro” — a maquinaria. Quanto mais complexa e perfeita é a máquina, mais o trabalho é reduzido à observação e controle. O trabalhador precisa conhecer todos os aspectos e condições do funcionamento de sua máquina, e interferir o mínimo possível; por outro lado, nos inevitáveis momentos de capricho e devaneio por partes das máquinas, ele precisa ter agilidade, iniciativa e resolver a situação. Tudo isso constitui as características e fundamentos da organização do trabalho e, para isso, é preciso possuir conhecimento, inteligência, atenção, que são características intrínsecas do organizador. Mas ainda resta o esforço físico; somadas ao cérebro, as mãos também têm de trabalhar.

Ao mesmo tempo, distinções nítidas entre os trabalhadores começam a desaparecer; a especialização é transferida para as máquinas, e o trabalho de diferentes máquinas, em sua essência, em termos de organização do trabalho, é quase o mesmo. Assim, há espaço para o contato entre trabalhadores que colaboram entre si e o compartilhamento de conhecimentos, uma oportunidade para ajudarem uns aos outros, com ações e conselhos. Eis a origem da camaradagem em meio à colaboração, que é a base sobre a qual os proletários constroem sua organização.

Esta forma de trabalho é caracterizada pelo fato de a organização do trabalho estar fatalmente conectada à sua execução. Aqui o organizador e o executor não são pessoas distintas, mas coletividades. Questões são postas em discussão e resolvidas em comum, executadas em comum; todos tomando parte no direcionamento da vontade coletiva e na sua execução. A organização é realizada não pela imposição ou subordinação; ao invés disso, há camaradagem, iniciativa e participação de todos na gestão, a disciplina coletiva submetendo cada indivíduo.

Precedentes de cooperação já existiam antes, mas só em nossa época ela se tornou o tipo primário de organização para a generalidade de uma classe. E essa tendência se intensifica conforme se aperfeiçoa o grau de desenvolvimento da técnica; e se expande na medida em que a massa proletária é distribuída pelas cidades; mais ainda na medida em que se concentra nas grandes empresas.

Esta concentração do proletariado nas cidades e fábricas exerce uma grande e complicada influência sob a psicologia das massas. Ela contribui para o desenvolvimento da consciência de que no trabalho, na luta pelos meios de existência, o indivíduo é somente uma engrenagem em uma grande rede e, tomado separadamente, seria uma marionete impotente de forças externas, um fragmento do tecido de um magnífico organismo, incapaz de ter vida própria. Seu “ego” é reduzido às suas dimensões atuais, seu devido lugar.

Mas enquanto as massas são distribuídas pelas cidades, são separadas da natureza. Esta última se revela ao proletariado simplesmente como força produtiva, não como fonte de impressões vivas. Ao mesmo tempo, as cidades proporcionam ao proletariado poucas alegrias e divertimentos, por mais numerosos que sejam para as classes dirigentes; e, assim, o anseio dos trabalhadores pela natureza viva se torna maior, um anseio que às vezes converte-se num sentimento de angústia. Esta é uma das razões da sua insatisfação, sua luta para organizar um novo modo de existência.

A colaboração não é uma fórmula pronta — é algo em desenvolvimento, e alcançou diferentes estágios em diferentes lugares. Ela é seguida pelo senso de companheirismo, que entretanto desenvolve-se lentamente. Esta é a principal tendência de desenvolvimento do proletariado. Mas, em diversos países, mesmo entre os mais avançados, este estágio ainda não foi conquistado. Esta conquista será o socialismo, que se resume à organização colaborativa de todos os aspectos da vida em sociedade.

O espírito da autoridade, o espírito do individualismo, e o espírito do companheirismo, estes são os três estágios consecutivos da cultura. A poesia proletária pertence ao terceiro, a fase mais avançada.

A autoridade é estranha à poesia proletária, não pode ser outra coisa senão um elemento hostil. O proletariado é uma classe subordinada, lutando contra sua subordinação.

Contudo, o proletariado é uma classe jovem, e sua arte está ainda na infância. Mesmo na política, onde sua experiência é maior, milhões de proletários na Alemanha, Inglaterra, América, continuam atrelados à burguesia. Isto pode ocorrer, com maior facilidade, com os poetas proletários. Atualmente, a poesia proletária não é, no geral, verdadeira poesia. E isto não diz respeito à individualidade do autor, mas a seu ponto de vista. O poeta não pertence à classe operária de uma perspectiva simplesmente econômica, mas na medida em que está profundamente familiarizado com a vida coletiva do proletariado, se está verdadeiramente e sinceramente partilhando de seus esforços, ideais, sua maneira de pensar, se ele festeja suas alegrias e sofre suas mágoas, se, em uma palavra, ele fundiu sua alma à do proletariado, só então ele pode dar ao proletariado uma expressão artística, conjugar suas forças e sua consciência de uma forma poética.

É claro que raras vezes isto acontece, e na poesia, como na política, o proletariado não pode contar com outros além daqueles que ocupam a mesma condição.

Um pequeno poema em prosa de um trabalhador — um poeta economista:

Os apitos

Quando os apitos das fábricas ecoam nos bairros operários, não é a escravidão que invocam. É o som do futuro.
Houve um tempo em que trabalhávamos em oficinas precárias e começávamos a trabalhar em diferentes horários.
Agora, oito da manhã, os apitos convocam milhões de homens.
Milhões de operários seguram seus martelos ao mesmo tempo.
Nossos primeiros golpes rebentam em harmonia.
Qual é o cântico dos apitos?
Uma ode da manhã à unidade.

The Song of the Workers’ Blow, de A. Gastev. [1]

Trata-se de uma poesia lírica, mas não é a poesia do indivíduo egoísta. Para o trabalhador enquanto indivíduo, os apitos são, é claro, uma convocação para o trabalho involuntário, uma sensação que chega a ser torturante. Mas para a comunidade que emerge seu significado é um tanto diferente. O verdadeiro criador da poesia, que se expressa através do poeta, não é o mesmo que costumava ser, e o sentido que dá à vida também é diferente. É o espírito do companheirismo.

O investigador deve manter-se ancorado na realidade. Já estivemos numa situação difícil, quando éramos poucos os entusiastas da arte proletária e tínhamos de falar de coisas que não existiam, quando não tínhamos condições de dizer: “aqui, esta é uma verdadeira arte proletária; por este modelo você pode avaliar, a partir deste você pode comparar”. E aqui eu devo citar o poema que é o meu alicerce.

Em 1913 um pequeno poema de Samobitnik foi publicado no Pravda.

Para um novo camarada

Veja as rodas rodando ao redor,
o frenesi das correias a dançar…
Camarada! Camarada, não tema!
Deixe o ruído do aço ecoar,
mesmo que em brasa seja afogado,
asfixiado num amargo oceano de lágrimas –
Não tema!

Vens de uma aldeia sossegada,
campos serenos, veios tranquilos.
Camarada! Camarada, não tema!
Aqui o ilimitado é inevitável,
aqui o impossível se avizinha…
É a aurora dos novos tempos –
Não tema!

Cristas de ondas espumando
ecoam trazendo nossa sorte…
Em nosso reino melancólico, sombrio,
brilha agora um novo Sol,
forte agora como nunca –
Não tema!

Como um gigante talhado em pedra,
diante do frenesi das correias, fique firme…
Deixe as rodas rodarem ao redor.
Mais unidas as nossas fileiras –
Com o novo elo que acabamos de forjar –
Não tema!

Não é a vocação artística que nos interessa neste poema. O mais marcante é a pureza de seu conteúdo. Duvido que haja quem expresse melhor o proletariado em sentimento e pensamento.

O enredo situa-se no antigo regime. Um novo trabalhador chega à fábrica direto de um vilarejo. O que ele representa para a velha geração de trabalhadores? Um concorrente, e dos mais inconvenientes, por sinal. Pois ele rebaixa os salários, faz menos exigências e dificilmente colabora para a causa comum, já que é incapaz de defender até mesmo seus próprios interesses. Na verdade, ele não tem ideia de que causa comum é esta. Seu pensamento é lento, sua sensibilidade estreita, sua vontade limitada, sua coragem pequena… É difícil confiar nele para, no momento em que for preciso, uma ação coordenada. Mas observe a atitude do seu companheiro de trabalho, o poeta, que se dirige a ele, um recém-chegado. Com que cavalheirismo, com que cordialidade ele encoraja o tímido novato e leva-o por um mundo desconhecido, incompreensível, estranho e até ameaçador! Com que simplicidade e força, em poucas palavras, mas com imagens vívidas, o poeta conta tudo que o ele tem de saber e sentir para tornar-se um camarada entre camaradas: ele desenha a figura de forças colossais, o “ruído do aço” da técnica moderna, conta-lhe a verdade amarga sobre o “oceano de lágrimas” que dela decorre, e o anúncio jovial de um “novo Sol”, do grande ideal, das fortunas e glórias da luta coletiva. Tocante é a recordação de uma maravilhosa natureza já distante, de aldeias sossegadas, campos serenos, veios tranquilos, entre rocha e ferro — o coração do proletariado anseia pela natureza, mas raramente tem a oportunidade de ter contato com ela. Mas tudo será conquistado a partir do esforço progressivo, ininterrupto e irresistível da vontade criativa coletiva… A confiança na vitória é expressa nos versos finais:

Mais unidas as nossas fileiras –
Com o novo elo que acabamos de forjar –
Não tema!

É a introdução de um novo cavaleiro na irmandade do ideal socialista.

Bem, não é o poeta o organizador de sua classe?

A poesia proletária está ainda num estágio embrionário. Mas se desenvolve. É uma necessidade, porque o proletariado almeja uma plena consciência de união, e a poesia é parte disto. Ela ainda está em estágio de infância. Mas quando ela amadurecer o proletariado não ficará satisfeito apenas com a poesia. Ele é herdeiro legal de toda a cultura passada, e herdeiro das melhores coisas que a poesia dos tempos feudal e burguês produziram.

Ela deve adquirir esta herança de forma a não se submeter ao espírito do passado que reina nestas obras — muitos proletários já o fizeram antes. A herança não deve governar o herdeiro, mas ser uma ferramenta em suas mãos. Os mortos devem servir aos vivos, mas não os refrear, não os acorrentar.

Por essa razão o proletariado deve estar munido de sua própria poesia. Para que não se submeta à poética secular estranha à sua consciência, o proletário deve adquirir sua própria consciência poética, imutável por sua clareza. Esta consciência deve abarcar e desvendar todo o campo da vida, todo o mundo, em sua unidade criativa.

Permitam que a poesia proletária floresça e amadureça, que ajude a classe trabalhadora a tornar-se aquilo que a história a imbuiu de ser — lutadora e destruidora apenas por imposição externa, criadora por sua própria natureza.

Notas

[1] Gastev pede que o poema seja lido por uma única voz, com ritmo definido, como aquele em que o papel é engolido pela impressora.

As imagens que ilustram o artigo são da autoria de Alexander Rodchenko (1891-1956)

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