Por Juliana Antunes
No último 13 de setembro, quando foi divulgada a notícia da morte de Jean-Luc Godard, escrevi em uma rede social alguns apontamentos extremamente breves sobre sua importância diante de um fazer cinema politicamente — apontamentos estes que foram posteriormente publicados aqui.
As linhas que se seguem, por sua vez, representam um esforço em 1) estender aquela discussão tão sintética que resgatei diante da morte de Godard; 2) não deixar escapar a oportunidade de retomar a importância de seu cinema em um contexto onde a produção cinematográfica se encontra submetida sobretudo aos laços da indústria cultural e do caráter mercadológico, desprezando o estético, o aprofundamento nos enredos ou puramente — e sobretudo — a paixão criativa dos realizadores.
1 – A nouvelle vague
A figura pessoal de Jean-Luc Godard era carregada de traços que lhe tornavam marcantes. O cigarro ou o charuto pendurado à boca, os óculos escuros — que, a título de curiosidade, chegaram a ter um trocadilho no enredo do curta-metragem Les Fiancés Du Pont Macdonald (1971), dirigido por Agnès Varda, onde Godard e Ana Karina atuaram enquanto protagonistas — os ternos geralmente em uma tonalidade escura; mas, certamente, uma das nuances de Godard que lhe tornaram mais conhecidos é o envolvimento com a nouvelle vague.
Não raramente se difunde a atuação de Jean-Luc Godard a uma postura de paternidade da nouvelle vague; todavia, o mais correto não é pensá-lo enquanto criador de tal movimento, mas sim enquanto uma das figuras mais marcantes do mesmo.
Retomar a importância do realizar filmes politicamente em Godard implica retomar a vanguarda da nouvelle vague, não só no sentido de desenvolvimento dado pelo diretor à mesma, mas também no seu próprio sentido de nascimento.
É muito perspicaz a observação feita por Alfredo Manevy [1] sobre o surgimento do movimento em questão:
A origem da Nouvelle Vague é um luminoso momento habitado por muitos personagens, idéias, sonhos e histórias. Nem todos esses personagens são hoje reconhecidos. Nem todos se tornaram cineastas. Alguns, como Henri Langlois, dedicaram-se ao longo da vida a retardar ao máximo a morte do cinema — numa época em que a película era o único registro, frágil e perene. Mas resgatar Langlois não é apenas uma questão de reconhecimento: sua atuação está na gênese do estilo da Nouvelle Vague. Uma das mais vigorosas idéias da Nouvelle Vague foi considerar o museu, a cinemateca, como locus privilegiado para o processo criativo de um filme. Uma idéia transformadora, porque, até então, o cinema era pensado em repartições (estúdios) e com base em uma noção de linguagem sem tradição.
Com efeito, as primeiras produções vinculadas ao movimento aqui descrito se desenvolvem num recorte temporal concentrado nos anos 60-70. Ao que tange às principais características que predominavam na produção cinematográfica daquele período podemos trazer uma ascensão do cinema de caráter mercadológico, vinculado à busca de enaltecimento do capital. Hollywood, nesse momento, já tinha seu espaço demarcado, bem como seu vínculo com a indústria cultural — que se fortalece junto à questão macarthista. Os parâmetros estilísticos que permeiam as produções do período se versam num enfraquecimento das narrações, numa efemeridade das produções bem como em sua mercantilização, havendo a elaboração e venda de vários produtos conectados às mesmas.
Em quebra com isso surge a nouvelle vague, que busca resgatar a paixão pelo cinema que na sua contemporaneidade havia se enfraquecido. Desde a questão mencionada por Alfredo Manevy na citação que destaquei, até ao rompimento com os moldes narrativos do cinema tradicional, trazendo uma não necessária linearidade em seus roteiros, à implementação de elementos vinculados ao erotismo, à busca de inserção de diálogos ligados aos fatos e acontecimentos políticos, a nouvelle vague — fazendo jus à sua interpretação de nova onda — se mostrou enquanto uma revolução no âmbito cinematográfico. Alguns dos ventos desse momento, ainda, galgados sobretudo nas indagações políticas, no libertarianismo ou no próprio Soyez realistes, demandez l’impossible! culminariam nas erupções do Maio de 68.
Godard, em contrapartida, para falar sobre o surgimento da nouvelle vague — bem como para discorrer sobre a história que compõe o[s] cinema[s] — foi muito além da prosa quase meramente descritiva que trago aqui, mas recorreu à poesia [2]:
[…] e quando tenho admiração por um filme
dizem para mim
sim é muito bonito
mas não é cinema
então me veio a pergunta
o que é
não venho para abolir nada
pelo contrário
venho para concretizar
[…]
é porque pela última vez
a escuridão reúne forças
para derrotar a luz
mas é pelas costas
que a luz irá golpear a escuridão
e primeiro, bem baixinho
como que para não assustar o homem
o sussurro
que ele já tinha percebido
há muito tempo
ah tanto tempo
antes mesmo de o homem existir
o sussurro
recomeça
a última lição
[…]
uma noite
fomos até
Henri Langlois
e então
fez-se a luz
[…]
porque esquecido já
proibido ainda
invisível sempre
esse era o nosso cinema
e ficou em mim assim
e Langlois confirmou para nós
é esta a palavra certa
que a imagem
é antes de mais nada da ordem da redenção
mas atenção, redenção do real
ficamos então deslumbrados […]
2 – Sobre a estreia de Godard no cinema: inovação, ironia e melancolia
A estreia de Jean-Luc Godard no cinema – e no próprio movimento da nouvelle vague – se dá de maneira estrondosa, a partir do longa-metragem À bout de souffle (1960). Irônico, o enredo tratava de um misto entre perseguição policial e romance; não custa retomar a própria fala de Godard sobre os filmes mercadológicos, apontando que estes “só necessitavam de armas e mulheres para fazerem sucesso”.
A maneira de produção do filme supracitado, para além disso, escapava do tradicionalismo. O roteiro foi escrito em um momento preliminar pelos realizadores François Truffaut e Claude Chabrol, que acabaram o abandonando. Godard, todavia, sentiu-se atraído pela proposta de enredo, incentivando a continuidade ao mesmo e assumindo sua direção.
Sua filmagem também foi particular. A utilização de câmeras leves, o abandono às iluminações de estúdio, a utilização de películas fotográficas que não se destinavam à produção cinematográfica, a não captação de áudio (fazendo necessária sua dublagem a posteriori). Tudo isso permeou os traços estéticos de À bout de souffle de modo ímpar, trazendo o ar experimental que permeou tantas produções da nouvelle vague à tona.
É imprescindível citar, ainda, o caso de Je Vous Salue, Marie (1985), obra provocativa que discutia a díade sagrado x profano questionando o arquétipo atribuído à figura bíblica de Maria, onde Godard elaborou de modo ímpar uma contraposição à Igreja Católica. O filme chegou a sofrer veto pelo governo de José Sarney no Brasil; na ocasião, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, presidida na época por Plínio Corrêa de Oliveira, emitiu um texto em parabenização ao presidente em exercício, escrevendo o seguinte:
Em solene sessão de encerramento da assembléia plenária reunida ontem em São Paulo, com a presença de cerca de 2000 sócios, cooperadores e correspondentes da TFP brasileira, tive o prazer de propor o envio da presente mensagem de calorosas congratulações a V. Excia., por motivo do veto ao filme sacrílego e imoral “Je vous salue, Marie”.
Com tal veto V. Excia. impediu ultrajes atrozes a Nossa Senhora, instituída Rainha e Padroeira do Brasil em sua invocação de Aparecida, por decreto do glorioso Pontífice São Pio X. E evitou para nosso povo o tremendo abalo moral que lhe resultaria de ver impunemente ultrajados o Menino Deus, sua santíssima Mãe e São José, seu castíssimo esposo. Ou seja, a sagrada família, modelo ideal de toda família brasileira verdadeiramente católica.
O auditório, de pé, aclamou longamente, e por unanimidade, minha sugestão, a qual se acrescenta assim ao telex de felicitações que há dias tive a honra de lhe enviar. [3]
Godard ainda dirigiu uma vastidão de longas e curtas-metragens que não seriam possíveis serem integralmente citados e resumidos aqui. Não apenas a ironia, mas também a melancolia e — sempre — a inovação se faziam presentes em sua produção.
No que diz respeito aos curtas, é certamente emblemática a produção Dans le noir du temps, produzido através de recortes de outras produções e de cenas verídicas para o projeto The Cello (2002):
Os últimos minutos do pensamento.
“Penso, logo existo.” O “eu” em “eu penso” não é o “eu” em “eu sou”. Por quê? A sensação de existir não é ainda um “eu”. É uma sensação irrefletida, que nasceu em mim, mas… sem “eu”. […] Todos os corpos, todas as almas juntas e tudo o que produzem não tem o mais mínimo valor.
Dentre as várias reflexões inseridas sobre o tempo nos dez minutos da produção, certamente essa é umas das que mais chamam a atenção. É dado o direito à natalidade, mas não o direito à vida. Se, conforme se sugere na narrativa a partir do resgate de uma das máximas cartesianas, existir implica o pensamento, num momento onde somos inibidos de pensar, qual o sentido atribuído à vida? Godard responde essa questão logo em seguida: “Todos os corpos, todas as almas juntas e tudo o que produzem não tem o mais mínimo valor”.
3 – O Groupe Dziga Vertov
Quase todas as vezes em que se fala sobre Godard esquece-se – ou omite-se? – o coletivo cinematográfico Groupe Dziga Vertov. O grupo foi criado no ano de 1968, por Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. Mais uma vez eram inseridas em suas produções elementos paralelos à inovação e ao experimentalismo, à estética teatral — sobretudo vinculada à obra de Bertold Brecht — e aos ideais marxistas.
É genial, ademais, o próprio nome dado ao grupo, que versa uma recuperação da obra do cineasta soviético Dziga Vertov, que também cunhava em suas produções um caráter experimentalista e de exposição dos próprios ideais marxianos [4].
Aos poucos, se unem ao Groupe Dziga Vertov Jean-François Roger, William Lubtchansky, Juliet Berto, Anne Wiazembky, dentre outros nomes. Em união, o grupo produziu oito obras: Um film comme les autres (1968), British Sounds (1969), Pravda (1969), Le Vent d’est (1969), Luttes em Italie (1969) e Vladimir et Rosa (1971).
Le Vent d’est é a obra mais emblemática do grupo, sobretudo em solo brasileiro, dada a colaboração de Glauber Rocha em sua composição.
Na Itália, na França, na Alemanha, em Varsóvia, em Praga, você viu que o cinema materialista surgirá apenas quando confrontar, em termos de luta de classes, o conceito burguês da representação.
O trecho acima destacado, abre as portas para se pensar, uma vez mais, em um novo modo de fazer cinematográfico. A criação da máquina cinematográfica, doravante do cinema, como apontou Walter Benjamin ao discorrer sobre a reprodutibilidade técnica [5] ou Jean-Claude Bernadet ao escrever sobre a tentativa de estabelecimento de um caráter realista ao cinema [6], era referente à própria busca de uma consolidação do ideário burguês através do âmbito artístico.
Assim, a busca por se trazer um confronto ao conceito burguês de representação também pode ser pensado enquanto um rompimento ao cinema anteriormente produzido. Godard, em consonância a essa questão, emitiu no Groupe Dziga Vertov a frase de que “não se trata de produzir filmes políticos, mas de realizar filmes politicamente”.
Au revoir
Godard está morto. Junto às suas cinzas, parece arder e se dissipar toda uma maneira crítica, bela e sonhadora de produção fílmica.
Desde as primeiras manchetes sobre sua morte, mas sobretudo após a divulgação da causa da mesma, interligada ao suicídio assistido, é inevitável a criação de uma forte comoção. É impossível negar a importância de sua obra, sobretudo num momento representado pelo extremo predomínio neoliberal, que também atinge e fere a aura das manifestações artísticas – aura, aqui, no sentido benjaminiano.
Em uma entrevista da época de lançamento do Le mépris (1963), quando questionado sobre a possível formação de um estado de comoção sobre sua figura, Godard respondeu que não se importaria com tal, contanto que as pessoas assistissem aos seus filmes [7].
Na busca por subverter o pessimismo ou o olhar apocalíptico sobre o futuro diante da morte do cineasta, certamente é mais são seguir ao seu conselho: assistir aos seus filmes. Mais ainda, acrescento a nota de que se encontra também em pertinência a valorização dos ideais de Godard, na produção fílmica ou artista como um todo. Não nos resta o esmorecimento, tampouco a solução da produção de manifestações artísticas políticas; mas a de produzi-las politicamente.
Notas
[1] MANEVY, Alfredo. Nouvelle Vague. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus. 2006.
[2] GODARD, Jean-Luc. Uma vague nouvelle. In: GODARD, Jean-Luc. História(s) do cinema. São Paulo: Círculo de Poemas. 2022.
[3] Disponível em: <https://www.pliniocorreadeoliveira.info/MAN%20-%2019860211_CongratulacoesaSarney.htm>.
[4] Vale a pena conferir, de Vertov, o filme Kino Glaz (1924). Como o próprio realizador sugere: “O primeiro filme de não-ficção. Sem roteiro. Sem atores. Fora do set.”
[5] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica [5ª versão]. In: BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte: Autêntica. 2021.
[6] BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Editora Brasiliense. 1980. (Coleção Primeiros Passos, vol.9)
[7] A entrevista em sua integralidade, legendada em português, pode ser assistida aqui.