O que é

Por Thiago Canettieri

Sem meias-palavras, Miguel Lago apresentou, ainda em 2019, a principal leitura do fenômeno “Bolsonarista”: “a vanguarda da primeira verdadeira revolução de nossa história”. A assertiva choca, mas não deixa de ser menos verdadeira só porque não queremos aceitar a situação. Claro, devemos sempre lembrar que “bolsonarismo” é somente um “nome de ocasião” – tampouco, esse fenômeno é algum tipo de fascismo, que era movimentado por um espírito orientado ao progresso. Na nossa quadra histórica e geográfica, apesar de grafado na bandeira nacional, isso não faz sentido.

É fundamental considerar esse fenômeno social em sua natureza destrutiva – seu desempenho eleitoral, que assustou no último domingo à noite, é apenas a parte superficial desse fenômeno. Embora coincidentes, a força eleitoral de Bolsonaro não recobre inteiramente o fenômeno revolucionário bolsonarista. Seja como for, precisamos compreender as raízes sociais da construção do voto nessa “extrema direita de combate” que ultrapassa em muito o próprio Bolsonaro (basta ver o cenário entre a disputa dos executivos estaduais, e o resultado das disputas para o Senado e Câmara de Deputados).

Como escreveu Paulo Arantes[1], foi “conquistando corações e mentes [que] a extrema direita chegou ao poder. Claro que não se trata de uma reviravolta qualquer no perde-ganha eleitoral. Este jogo definitivamente acabou.” Interessa, portanto, tentar rastrear e compreender o que os resultados eleitorais (de 2018, de 2020 e o primeiro turno de 2022) indicam sobre o processo social em curso no Brasil que, lembra o autor, “deixou um cheiro de queimado no ar”. O que estava queimando, mesmo?

“Nós temos é que desconstruir muita coisa” – anunciou Bolsonaro logo nos primeiros meses de seu governo. A eleição democrática de Bolsonaro em 2018 foi uma ruptura sem precedentes. Mais de 50 milhões de pessoas votaram em alguém que prometeu a destruição. Agora, ainda na ressaca do primeiro turno de 2022, depois de quatro anos de governo Bolsonaro, que instituições e políticas públicas foram destruídas, vemos novamente Bolsonaro ultrapassar a marca dos 50 milhões. Mesmo depois da desastrosa condução do país durante a pandemia de Covid-19 que resultou na morte de 680 mil pessoas. Mesmo depois dos sucessivos escândalos de corrupção. Essa é a surpresa que assustou a todos depois que foram apuradas as urnas. Ainda que Bolsonaro esteja atrás do ex-presidente Lula, a distância entre os dois foi muito menor do que o esperado (até mesmo a possível vitória de Lula terá que se haver com o bolsonarismo que não sumirá por golpe de mágica. Ao contrário, como lembrou Paulo Arantes numa live recente, “tende a se agravar. Porque não há solução à vista do ponto de vista material, social, econômico, político e por aí vai”).

Aqui importa menos o desempenho eleitoral dos candidatos e mais a adesão popular a um projeto de destruição[2] – destruição não só das instituições e políticas públicas, mas de todo um horizonte de país.

O que é "destruição"?

Essa gramática destrutiva é o que parece animar o bolsonarismo e que vai sendo validada novamente. O resultado eleitoral – que a esquerda gostaria tornar num plebiscito sobre o próprio Bolsonaro – indicou que existem aqueles que estão dispostos a continuar bancando a destruição.

Como notou Renato Lessa, num texto de julho de 2021, precisamos de uma “fenomenologia da destruição”.

Normalmente, diante dessa destruição, buscamos apelar ao esquema iluminista de interpretação: “Quem destrói e comete tamanha barbaridade são, evidentemente, os bárbaros. Quem se assusta e se opõe à destruição, como nós, por suposto, são os civilizados”. Como escreveu Catalani, essa postura de Quincas Borba não ajuda em muita coisa. O que se deve reter é a concepção, como apresentada por Lessa, sobre os “modos de destruição do processo civilizador”. A destruição é interna ao funcionamento normal da sociedade moderna, um desdobramento necessário das suas contradições que levam até o seu próprio colapso. A barbárie, como escreveu Marx, é decorrente de um “excesso de civilização” – o que os protoiluministas rapidamente esquecem na hora de se postarem como baluartes da Civilização.

Enquanto a matriz interpretativa da Grande Destruição depender de um deus ex-machina estaremos a espanar leituras que pouco ou quase nada contribuem no entendimento da situação que vivemos. Não se trata de um gênio da lâmpada maligno que surge do nada ou um desvio atávico na rota do progresso[3]. Se trata de um colapso da modernização[4].

Aqui, um adendo. A força de destruição não é uma exclusividade do bolsonarismo. Sua origem remonta à contradição imanente do capital que corrói as próprias formas de sociabilidade constituídas historicamente. Essas tendências destrutivas já estavam ativas, apesar de o bolsonarismo significar uma aceleração radical. O curioso é notar a existência de um grão de verdade entre o bolsonarismo e a dissolução das formas sociais.

O que é "destruição"?

A revolução bolsonarista, assim, joga com a experiência cotidiana desse colapso, que aparece como crise da sociedade do trabalho. Votar no Bolsonaro e fazer parte dessa comunidade imaginada insurgente é uma forma de defender o que consideram importante durante o colapso – e não uma forma de retardá-lo ou revertê-lo. É assim que podemos ler tanto a fixação com as armas de fogo quanto a presença do milenarismo neopentecostal: aceita-se as regras do “realismo do colapso” e como se vive o colapso a partir dos seus desejos, suas demandas, suas identidades, expectativas e visões de mundo. O colapso já é, de pronto, o grau zero da experiência sentida no corpo moído na crise da sociedade do trabalho.

Entretanto, ao mesmo tempo, essa política destrutiva parece depender de um amálgama. Paulo Arantes lembra dos estudos de Karl Mannheim sobre as Guerras Camponesas na Alemanha. Ali, o autor alemão percebeu que não eram “ideais” ou ainda menos “interesses materiais” que moviam camponeses revoltosos, mas uma “certa energia que brotava do abismo do espírito, um quadro de tensões que transcendiam a vida e que, por isso mesmo, ao entrar em cena aberta, se tornavam reagentes explosivos a ponto de fazer o impossível nascer do possível”. Uma “espiritualização da política” Paulo vê na “demoníaca força motriz da ruptura bolsonarista” aquele mesmo “marco zero da política identificado nas guerras dos camponeses alemães contra seus senhores”.

Tanto a experiência cotidiana como a espiritualização da política indicam uma dissociação entre Governo e Economia. A forma decadente da mercadoria e sua irracionalidade aparece estampada claramente. A sociedade inteira está subordinada às forças naturais da circulação de capital. Mas isso não impede a retomada da política como disputa, como conflito – no lugar da forma gestionária rebaixada que a política havia se tornado com a Nova República, variando a equalização, mais à esquerda ou à direita a depender do ocupante. Essa retomada da política ocorre, lembra Paulo Arantes, pelas mãos da extrema direita.

Não estamos assistindo a uma troca de governo – como as que ocorrem a cada quatro anos. É uma substituição aceleradíssima de um regime de poder por outro. Como escreveu Gabriel Feltran, uma mudança em direção a formas muito elementares do exercício de poder.

A destruição que estamos vivendo é, na formulação de Paulo Arantes, “de um lado, o dog whistle que dá o comando do extermínio de todos os brutos”, e, do outro, a revolta contra a “moderação insustentável, e no limite conivente, dos apelos ao realismo esclarecido das últimas duas décadas de concertação em torno de governos da vida danificada”. Não temos ideia do o que fazer com isso, tendo em vista que a promessa para um Brasil feliz de novo se limita a, mais uma vez, uma concertação para administrar o colapso. Auscultar o colapso, descer ao inferno, como fazia Pasolini, envolve tentar apreender a destruição em seus próprios termos para, a partir dela, criar “um verdadeiro estado de emergência” – no dizer de Walter Benjamin.

O que é "destruição"?

Se a experiência que marca a era da destruição é o fechamento do horizonte de expectativas[5], vale lembrar que ocorre um efeito bola de neve: quanto mais se fecha o horizonte de expectativas, mais se acelera a destruição e quanto mais se acelera a destruição, mais se fecha o horizonte de expectativas. Uma certa vez Alexander Kluge e Oscar Negt definiram política como a capacidade de dar uma resposta comensurável a um problema, de modo a alterar suas condições e superar o problema no futuro próximo[6]. Qual é a resposta comensurável para o fenômeno da destruição?

 

Notas

[1] ARANTES, Paulo. Antes que seja tarde demais: de junho a outubro. Margem Esquerda, nº 39, 2022.
[2] STARLING, Heloisa; LAGO, Miguel; BIGNOTTO, Newton. A linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[3] KURZ, Robert Kurz. A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro: Consequência, 2021.
[4] KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
[5] ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
[6] KLUGE, Alexander; NEGT, Oscar. O que há de político na política. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Vasan Sitthiket (1957 – ).

1 COMENTÁRIO

  1. Descartar o bolsonarismo como um tipo de fascismo com os argumentos que aparecem logo no primeiro parágrafo, me parece bastante frágil.

    É dito que o bolsonarismo não pode ser um fascismo pois os fascismos tinham m espírito progressista. Bem, mas como ao final o autor aponta, vivemos uma era de sem horizonte de expectativa. Uma época sem futuro, sem projeção de futuro melhor. E isso vale para a direita e para a esquerda. O socialismo hoje em dia também não é orientado ao progresso, porque a época em que vivemos não é orientada a tal. E assim se quisermos enxergar o fascismo hoje, temos que procurar não uma cópia idêntica de algo que ocorreu em outro período histórico, mas a na forma possível em nosso período.

    Indo por outro caminho,o autor coloca como característica necessária (essencial) do fascismo um caráter progressista (não entro no mérito se isso é verdade em relação a todos os movimentos e regimes considerados fascistas de cem anos atrás). esse é um argumento fácil para dizer que o bolsonarismo não é um movimento fascista. Pode-se eleger qualquer característica que o bolsonarismo não possui e elevá-la a característica necessária do fascismo para então descartar que o bolsonarismo seja fascista.

    A questão é, se os cachorros nascem hoje em dia sem rabo, eles continuam sendo cachorros a meu ver.

    Pela definição do autor, os movimentos identitários atuais também não podem ser considerados fascistas, uma vez que não são orientados ao progresso. Aliás, como salienta Zaki Kaidi numa página do seu livro A Chegada do Homem-Presente, esse identitarismo tão comum hoje em dia possui uma relação com a falta de horizonte de expectativa, de prjetar possibilidade diferentes de futuro.

    Sobre o fenômeno dessa extrema direita brasileira, e talvez também a mundial atualmente, acho que é mais interessante o artigo Sale Boulot, do Paulo Arantes, no qual ele desenvolve o trabalho de Christophe Dejours sobre a banalização da injustiça social. Certamente o bolsonarismo não pode ser explicado somente a partir disso, mas não vejo ninguém apontar a relação da realidade de trabalho no neoliberalismo com a emergência da banalização da injustiça social e do fascismo. Dejours já mostrou a relação nos anos 1990. Parece que as pessoas esqueceram. O sofrimento e o medo que as pessoas vivem na realidade econômica e de trabalho não pode ser negligenciada se queremos entender o que se passa. Nesse aspecto, o bolsonarismo parece funcionar como uma ideologia defensiva, nos termos de Dejours.

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