Por Observatório da Cultura do Brasil

O setor cultural segue sofrendo as consequências da pandemia e da crise financeira que atingiu a maior parte dos trabalhadores do setor. As más notícias em série nunca acabam e ganham contornos inesperados.

Vale lembrar que o governo Bolsonaro fez de tudo para impedir a Lei Aldir Blanc 1 (LAB), e ainda tentou barrar a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo. Porém, não é possível, na análise das políticas culturais, agir sem as reflexões mais isentas possíveis, observando o objeto da pesquisa em questão de forma crítica, em favor dos trabalhadores da cultura.

Findadas as eleições, sequer tomaram posse os eleitos, mas o Congresso Nacional já entregou o conteúdo do “grande acordão” feito com as verbas da cultura, que teria sido criado, desde o início, apenas para alimentar redes de militâncias para dispositivo de campanha eleitoral, e não para aquilo que deveria ter sido feito, como utilização dos recursos para salvaguardar os setores culturais. Uma afirmação pesada, mas que circula abertamente nos bastidores dos insiders da política.

As Medidas Provisórias 1.135/2022 e 1.136/2022, que bloqueavam os recursos das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, tiveram seus prazos prorrogados novamente, retendo os recursos da cultura até 31 de dezembro de 2022.

Com essa informação se confirmando, ficariam vedadas as aplicações de ambas as leis, devido aos recursos públicos, pois a aplicação da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias, que define as metas e prioridades do governo e orienta a elaboração da lei orçamentária anual) tem duração de um ano. Os recursos que não foram gastos, voltam aos cofres do governo. Os recursos para as leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo, portanto, se tornariam nulos. O que aparenta fato isolado não pode ser ignorado, pois há significados devido ao fato de os recursos serem adiados em menos de 48 horas do fim das eleições.

Essas informações, de uso político dos recursos, já tinham diversos indícios, conforme a série de reportagens “A Crise da Cultura” publicada pelo Le Monde Diplomatique Brasil. Os recursos teriam sido utilizados (conforme depoimentos e documentos) para alimentar redes de militâncias políticas prioritariamente contra os artistas e fazedores de cultura que necessitavam dos recursos durante a pandemia até para sobreviver, ficando estes abandonados à própria sorte, conforme a série de reportagens revelou.

Desde o começo dos editais da Lei Aldir Blanc, em 2020, circulavam diálogos vazados de que aqueles que ficassem do lado do chamado Fórum Emergências Culturais (criado para o engajamento político da defesa da legislação), teriam acesso facilitado aos recursos.

Pablo Capilé, dirigente do Fora do Eixo, organização que já foi acusada até de trabalho escravo, usos controversos de recursos públicos e fraude de moeda social (Cubo Card), declarou no lançamento da Conferência Popular de Cultura, em 05 de agosto de 2020, que os recursos da Lei Aldir Blanc seriam importantes para manter a militância ativa e engajada para as eleições de 2022.

A declaração dele, como liderança do movimento apadrinhado pelos parlamentares que criaram a Lei Aldir Blanc, implicaria numa relação entre a LAB e os usos dos recursos, não para o setor cultural, mas para alimentar militância engajada na política, conforme as palavras dele: “Articulando reuniões, para aprovar a lei de ‘emergência cultural’ (…) e depois nos levar a uma grande conferência nacional de cultura, e depois (…) a gente desembocar numa eleição, onde a gente pode partindo da cultura, para um novo ciclo de desenvolvimento do Brasil, e eleger uma grande bancada cultural no Brasil inteiro. Os três pilares de um movimento social da cultura: A lei de emergência com recurso chegando na ponta, para a gente fazer o “pau comer”; Depois uma grande conferência nacional de cultura; E depois uma grande bancada da cultura sendo eleita nas eleições. É fundamental que esse dinheiro chegue logo. O Fórum Nacional de Secretários de Cultura tem trabalhado nisso. O Fórum Nacional dos Conselhos de Cultura tem trabalhado nisso. As Secretarias municipais, os conselho municipais, os fóruns de cultura municipais, estaduais, também trabalhando com muita força. E logo na sequência, saca? Com esse recurso chegando na ponta (…) e agora a gente começar esse processo, (…) para a gente chegar super mobilizado na conferência nacional de cultura, no fim de setembro, e essa mobilização conseguir colocar a cultura novamente no lugar que ela merece. A cultura é a base da construção desse movimento popular no Brasil. Vamos dar exemplo da cidadania, de baixo para cima, construindo (…) e mais do que isso, tendo o movimento social que encara qualquer outro movimento (…) está mais do que na hora do pau comer [se referindo à guerra cultural] e a partir da cultura, que nós vamos fazer isso acontecer [referindo-se às eleições de 2022]. (…) não dá mais para aguentar o bolsonarismo, não dá mais para aguentar esse governo que está aí. E a cultura tem um papel fundamental na história. (…) articulamos a nossa rede no Brasil inteiro [se referindo ao Fórum das Emergências Culturais]”.

Citando em seguida que estão juntos nesse movimento, além de segmentos culturais aliados, os povos indígenas, o movimento sem-terra, movimento sem-teto, além de outros movimentos sociais, e partidos, o: “PT, está junto, o PSB está junto, PDT está junto, PCdoB está junto, o PSOL está junto, e a gente de baixo vai mostrar como se faz. Vamos vencer esse bolsonarismo, vai vencer o fascismo, e vai retomar o protagonismo popular no Brasil”.

Associando Capilé em sua fala a estratégia do Fórum Emergências, como os usos dos recursos da Lei Aldir Blanc, como a militância da cultura, aparelhada para estar preparada para as eleições de 2022. E para isso acontecer, declara: “temos que estar na linha de frente, saca? Do combate a este desgoverno que está aí. E para estar na linha de frente, tem que dar as mãos (…) ” (Capilé, Conferência Popular de Cultura em 05 de Agosto de 2020).

Essa estratégia, de uso dos recursos assistenciais da cultura para engajamento de militância da cultura para eleições, estava evidente desde 2020. Já é prática a cooptação de movimentos sociais pelo Fora do Eixo, e novos desdobramentos e nomes do mesmo agrupamento. Mas nas últimas semanas de campanha eleitoral de 2022, no entanto, foi feito um forte esquema de blindagem das denúncias de mau uso dos recursos públicos, para impedir a circulação dos documentos e fatos, causando estranhamento nos ativistas de esquerda, devido a alas da própria esquerda que foram beneficiadas pelas verbas (mais militantes que artistas) terem ficado na posição de blindagem de irregularidades ocorridas na aplicação dos recursos, especialmente na atual gestão do governador Ratinho Jr. (aliado de Bolsonaro no Paraná), caso que tomou maior repercussão. Casos semelhantes foram constatados em todo o Brasil, de estratégia de cooptação de movimentos sociais ao longo da última década para aparelhamento de interesses estranhos aos objetivos centrais de certas causas.

Essa posição conflituosa contra quem reclamou do uso dos recursos se deu em vários níveis, liderados por um pequeno agrupamento de militância que promoveu assédios de ordem eleitoral, judicial e moral, além de calúnias, difamações e até ameaças físicas para impedir que se discutissem os usos conflitantes da Lei Aldir Blanc, que resultaram em exclusão de parte significativa daqueles que deveriam ter sido protegidos com esses recursos no Brasil. Agrupamentos militantes que agiram visando silenciar críticas, partiram para agressões desde que o assunto começou a ser debatido. Coincidência ou não, esses agrupamentos estavam reunidos nas redes de bullying virtual, cancelamento contra aqueles que reclamaram dos editais, e também são lideranças ativas de Bases de Cultura de partidos políticos, que também fundaram o Comitê de Lutas da Cultura nas eleições de 2022.

Seria o suficiente para discutir a possibilidade de que os recursos da LAB tenham sofrido por desvios de finalidade e lavagem de dinheiro para campanhas eleitorais, tanto na campanha presidencial, quanto nos chamados candidatos dos “mandatos da cultura”, que se lançaram em vários estados, porém, não se encerra nisso, há muito mais. Mas também são os mesmos que coordenaram os grupos que deliberaram junto do poder público sobre os editais da LAB e ainda estão entre os principais beneficiados, conforme estudos realizados em parcerias com grupos de estudos da Universidade Federal do Paraná, que tabelou o acúmulo indevido de prêmios nos mesmos nomes. Teriam os citados nos documentos localizados recebido em média 5 prêmios da LAB cada, sendo que alguns receberam até 8 prêmios, e 3 famílias acumularam sozinhas mais de 65 premiações.

Num dos editais, o “Jornada em Reconhecimento à Trajetória” (idealizado pela Rede Coragem, grupo local aparelhado pela Rede Livre, Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado do Paraná, Fora do Eixo e Fórum Emergências Culturais), 4 milhões de reais (53% do valor total do edital) foram aplicados em contrassenso com os objetivos dos recursos. Além de funcionários públicos, também receberam as verbas ‘assistenciais’ militantes da cultura, moradores de bairros nobres de Curitiba, jovens com idade entre 21 a 39 anos, com média de 8 anos de carreira, o que entraria em conflito com o edital, que pretendia premiar os mestres das artes e culturas populares.

Essas mesmas redes lançaram candidatos a deputados da cultura, aparelhando candidaturas nas eleições, que silenciaram diante das notícias de que recursos não chegaram aos necessitados, bem como se calaram quando foi anunciado que os recursos não teriam continuidade.

Um assessor que faz parte de um grupo de WhatsApp que reúne estrategistas de campanhas eleitorais, confirmou em áudio que diz: “Recebi informações da cúpula do (…) [cita nome do partido], que já deu, já comprou quem tinha que comprar, e agora vamos cortar”, se referindo à não continuidade destes recursos excepcionais das leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo, isso quatro dias antes do presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, prorrogar o novo adiamento das verbas. Antecipando a informação, com a notícia confirmada, de que não seria boato.

Outro assessor, que fez parte do plano de elaboração de governo para a campanha presidencial, declarou antes do primeiro turno, que “o (…) [cita nome do partido] não deu a menor importância para o setor cultural no Plano de Governo, pois o setor já estaria na mão deles”.

Essas suspeitas se confirmaram dois dias após as eleições de 2022, quando o “presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, decidiu prorrogar por 60 dias a vigência das Medidas Provisórias (MPs) 1.135/2022 e 1.136/2022. O ato foi publicado no Diário Oficial da União desta terça-feira (1º). A MP 1.135/2022, editada em agosto, adiou para 2024 o início do cumprimento da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar 195, de 2022) e da Lei Aldir Blanc 2 (Lei 14.399, de 2022). As normas destinam cerca de R$ 3,86 bilhões aos setores da cultura e de eventos previstos, muito atingidos pela pandemia.” (Fonte: Agência Senado, 1º/11/2022)

Tudo pode parecer mera coincidência, até “teoria conspiratória”, como dizem os agrupamentos envolvidos. Porém, os documentos, fatos e estudos até aqui levantados apontam para uma realidade incômoda, de que o setor cultural, (primeiro proibido de apresentar e produzir espetáculos e produções no início da pandemia, e depois abandonado à própria sorte, devido aos recursos da LAB terem chegado para poucos), também pode ter sido usado como massa de manobra, caindo no golpe das promessas eleitorais que acabam não se cumprindo. Derrubar o governo fascista é mesmo uma obrigação dos movimentos sociais, mas que ao menos se cumpram os repasses da cultura, promovendo ampla distribuição de recursos, e não apenas centrando em militâncias partidárias. Mais do que comitês da cultura, o setor quer políticas públicas de cultura!

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