Por Z1010010

Chegamos à última parte da extenuante jornada deste ensaio. Na primeira parte deste ensaio, apresentamos um pouco da história e contexto de criação do PIX, e alguns detalhes de seu funcionamento, com tantos detalhes quanto possível, no limite da compreensão por um público leigo em finanças e tecnologia da informação. Tentamos mostrar, a partir disso, como boa parte do que circula sobre o assunto na internet é pura teoria da conspiração. Na segunda parte, dialogamos com um público mais restrito, tentando correlacionar PIX e multiplicador bancário; pretendemos evidenciar o PIX como um dos métodos do sistema bancário de capturar finanças de trabalhadores, especialmente daqueles inseridos na chamada economia informal, para transformá-las em capital.

Este passo foi necessário para inserir o PIX no mesmo quadro em que se deve entender a moeda e o crédito de um ponto de vista anticapitalista. Este ponto de vista exige duas operações: primeiro, entender a moeda e o crédito como forma de capturar a poupança dos trabalhadores para o sistema bancário; segundo, entender especialmente a moeda como forma de ocultar as desigualdades econômicas, sociais e políticas que sustentam, operacionalizam e reproduzem a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas.

Repetimos, agora pela última vez, a mesma advertência feita na primeira parte deste ensaio: não pretendemos apresentar uma crítica “definitiva” ao PIX; falta-nos a competência em Economia, especialmente em Macroeconomia e Econometria, para uma crítica mais aprofundada neste campo. A este respeito, estamos totalmente abertos a críticas e correções. O que temos a apresentar não são senão relances, vislumbres, algo como pensar alto em público. Esperamos, assim, puxar o debate para cantos mais interessantes. Gostaríamos de contar com as contribuições de quem lê, comentando e indicando novas fontes de dados, novos estudos e outros posicionamentos, porque o PIX, e a economia digital no geral, são fenômenos novos, que se desenvolvem diante de nossos olhos e exigem de anticapitalistas reflexões urgentes, baseadas em evidências empíricas, que ultrapassem certo pragmatismo do senso comum e certo dogmatismo de ideólogos estéreis.

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Imagem original em https://www.deviantart.com/chrisrawlins/art/The-Pied-Piper-of-Hamelin-104653575
O Flautista de Hamelin, por Chris Rawlins (2008)

Vista pela perspectiva do antagonismo entre classes sociais, não de um correntista imaginário ou de um conjunto deles, o PIX complementa os meios pelos quais o sistema financeiro captura dinheiro dos trabalhadores para convertê-lo em seu próprio capital.

Como capitalistas e trabalhadores depositam seu dinheiro em bancos, pode parecer que é tudo a mesma coisa. Não é. Isto pede alguma explicação.

No pouco que estudamos sobre o assunto, não consideramos válida qualquer concepção a-histórica sobre o dinheiro, como aquela com que Marx abre o primeiro volume de O Capital e que lhe serve de modelo por toda a obra. Também não nos parecem válidas certas concepções moralistas sobre o dinheiro, que separam a economia dita “real” de uma economia dita “financeira”. Tais concepções se originam numa espécie de preconceito metalista contra o papel-moeda e o dinheiro contábil, em especial em sua forma de crédito; neste quase-fetiche, qualquer moeda sem lastro, ou qualquer forma de dinheiro “desligada do real”, é puramente fictícia, mesmo quando funciona e produz efeitos nos sistemas econômicos.

Sob o capitalismo, o dinheiro é um agente do relacionamento entre valores, servindo, em cada momento e ao longo do tempo, como condição para o funcionamento de uma economia desequilibrada e rasgada por antagonismos. É, também, o nome que se dá aos títulos que reproduzem a categoria social de quem os recebe (e só esta, nunca outra), mediante a capacidade que lhe é conferida de se apropriar dos objetos econômicos — tanto bens como direitos — adequados a tal categoria social.

Os chamados agregados monetários (M1, M2, M3, M4, etc.) são apenas a forma pela qual a economia mainstream pretende apagar os antagonismos sociais veiculados pelo dinheiro. Tais agregados, aliás, não esgotam o tema, porque há meios de pagamento que não cabem nesta definição: seja porque ultrapassam os limites de uma economia nacional, onde tal classificação faz sentido porque é seu âmbito mais apropriado de validade, seja porque são criados e usados no interior de certas empresas ou entre empresas distintas (comércio intrafirma, countertrade, etc.), e por isso não se deixam captar pelas estatísticas oficiais.

Existem, portanto, vários tipos de dinheiro, cuja emissão é feita por sujeitos distintos na estrutura social. De modo semelhante, as classes sociais emissoras de determinada forma de dinheiro, quando o emitem, determinam também seu âmbito de circulação, ao criar ou remover barreiras (institucionais ou outras) à sua apropriação e uso; como consequência, obter certas formas de dinheiro, ou usá-las, serve como indicador de pertença a certas classes sociais. Já os bens ou direitos adquiridos com determinadas formas de dinheiro servem para reproduzir, biológica e socialmente, a classe social por onde ele está autorizado a circular. Os tipos de dinheiro que desde o início deste modo de produção mais rapidamente proliferaram e ampliaram o seu âmbito, até alcançarem a exclusividade, constituem a condição para que, num sistema permanentemente desequilibrado e variavelmente defasado, os valores possam relacionar-se entre si. Se falarmos em Direitos Especiais de Saque (DES), por exemplo, a maioria sequer saberá do que se trata, e os poucos que sabem entendem que não se usa DES para comprar pão.

Quando se trata do pagamento de salários, o dinheiro cumpre ainda a função de mascarar, sob a homogeneidade numérica, a existência de um tempo de trabalho não-pago. Cada trabalhador recebe hoje, na grande parte dos casos, o salário em diferentes tipos de dinheiro, graças à generalização crescente do dinheiro de crédito, e cabe então à forma escritural a função de homogeneizar esses vários tipos monetários. A homogeneização é uma condição exigida pelo assalariamento, de maneira que, se no modelo da mais-valia é radicalmente clara a distinção entre o tempo de trabalho necessário e o tempo de sobretrabalho, no modelo do salário a exploração é indistinguível; o dinheiro transforma a absoluta distinção entre os dois tempos de trabalho que compõem a jornada, na absoluta homogeneidade formal das unidades monetárias que compõem o salário. Esta função é tão importante na reprodução do capitalismo que a homogeneidade monetária salarial se projeta e se estende a toda a esfera do dinheiro. E, a partir daí, amplia mais ainda o mito da homogeneidade, de maneira que as formas ideológicas prevalecentes na sociedade contemporânea constituem, afinal, reflexões sobre o dinheiro.

É com este quadro conceitual que se deve analisar as disputas em torno do dinheiro digital, e dos meios digitais de pagamento instantâneo.

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O Flautista de Hamelin, em ilustração na igreja de São Nicolau, em Hameln (1592)

Retornemos, por um instante, ao exemplo de Raíssa, nossa produtora de bolos de pote que conhecemos na parte anterior deste ensaio.

Ela crê que um dia, se trabalhar duro, mantiver o mais rígido controle de gastos pessoais e poupar bastante, poderá investir mais, e passar de “empreendedora” a empresária. Ela “corta gastos” e consegue poupar alguma coisa. “Cortar gastos”, no caso de Raíssa, significou substituir por soja o frango, que consumia como proteína por não ter dinheiro para comprar carne bovina; aos amigos e família, diz que virou vegana. Significou, também, abrir mão de qualquer lazer além de assistir no smartphone certos vídeos engraçados que circulam pela internet. (Alguém, algum dia, investigará como o fenômeno dos influenciadores digitais encontra-se no cruzamento entre o barateamento do acesso a certos “cercadinhos digitais” como Youtube e TikTok por meio de acordos de navegação patrocinada; a miniaturização, via smartphones, dos equipamentos necessários à produção audiovisual; e o rebaixamento generalizado de salários e rendas entre trabalhadores, que prejudica seu poder de compra e dificulta o consumo de outros bens culturais.) Significou, de igual maneira, deixar de passar roupas, e passar meses sem usar o chuveiro elétrico. Raíssa, como boa “empreendedora”, fez de tudo para poupar, “se virou”. Ainda não viu retorno, mas trocou o consumo imediato de bens por um consumo possível a longo prazo.

Quando Raíssa deixou de consumir parte de sua modesta renda para depositá-la num banco, colocou numa caderneta de poupança o dinheiro arrancado de seu bem-estar. Forma de investimento mais difundida entre trabalhadores — é o que Raíssa é, ainda que se queira ver como “empreendedora” -, no atual contexto um banco do sistema financeiro brasileiro recompensa os depositantes das cadernetas de poupança com uma taxa de juros modesta, às vezes mesmo inferior à inflação. Conversando com outras amigas “empreendedoras” na primeira vez em que fez as unhas num salão em dois anos, Raíssa descobriu que os títulos públicos federais são mais rentáveis que a poupança, e passou a dedicar parte de seu faturamento mensal à sua compra.

A formação de poupança por meio da recusa ao consumo imediato, assim como a migração entre formas simples de investimento financeiro, é muito comum. Acontece que, ao fazê-lo, o que se tem é um depósito de dinheiro em banco, com efeitos semelhantes aos dos depósitos à vista. Todas as formas mais simples de investimento financeiro servem às instituições financeiras para capturar poupanças de trabalhadores e transformá-las em capital.

Como também captam recursos de capitalistas, centralizando assim capitais dispersos, as instituições financeiras passam a impressão de que operam para uns e para outros da mesma forma. Não é verdade. As instituições financeiras nunca confundem a imobilização de dinheiro decorrente da centralização de capitais dispersos com a resultante de poupanças efetuadas sobre os salários. Pelo contrário: reproduzem o antagonismo social que lhes está na origem. A função dos mecanismos financeiros não é a de assimilar ambos os grandes tipos de títulos monetários, nem a de transformar um no outro, mas a de lhes manter a distinção. As instituições financeiras levam, porém, estes dois processos a convergir num resultado único. Por um lado, reunindo capitais dispersos, aceleram a concentração do capital e, portanto, aceleram o ritmo da produtividade, desenvolvendo a mais-valia relativa. Por outro, aumentando a taxa de poupança das famílias dos trabalhadores, limitam o montante de valores efetivamente incorporados na força de trabalho e, por conseguinte, limitam o próprio valor da força de trabalho e aumentam correspondentemente a mais-valia. São estas as duas faces dos sistemas financeiros no desenvolvimento do capitalismo.

Alguém poderá objetar que existe, na prática, mobilidade social ascendente por parte de quem, como a Raíssa de nosso exemplo, consegue poupar. Ora, classes sociais não são castas, delas diferenciando-se justamente pela possibilidade de indivíduos moverem-se de uma classe para a outra, algo impossível num sistema de castas. Para que as poupanças de trabalhadores funcionem como instrumento de mobilidade social ascendente, é necessário que não haja impedimentos absolutos — digamos, jurídicos — à aquisição de certas formas de dinheiro específicas de uma determinada classe social; os bancos são, assim, um instrumento da mobilidade social, mas a experiência prática demonstra que tal mobilidade por meio da poupança se dá, na absoluta maioria dos casos, entre camadas de rendimento distintas no interior das mesmas classes.

Porém, como as relações sociais comportam defasagens e desequilíbrios, as classes não são castas e atravessam-nas processos de mobilidade. A condição operacional dessa mobilidade consiste na ausência de margens rígidas entre os vários tipos de títulos monetários. Ainda aqui são as instituições financeiras que desempenham um papel crucial, recebendo um tipo de títulos e podendo em troca fornecer títulos de outro tipo. Os mecanismos financeiros procedem a uma filtragem rigorosa nos canais de mobilidade social. A transição entre explorados e exploradores constitui, porém, a exceção, e na esmagadora maioria dos casos a mobilidade exerce-se apenas entre camadas de rendimentos no interior das classes capitalistas ou no interior da classe dos trabalhadores.

A mobilização pelas instituições financeiras das poupanças efetuadas sobre os salários implica, em suma, a diminuição do montante disponível do salário atual e o aumento do montante previsível de salário futuro. Este processo pode ser estimulado por formas várias.

A primeira forma é a manipulação dos salários ou rendas dos trabalhadores. Tratamos de “salários” e “rendas” porque um “empreendedor” não recebe, propriamente, salário, mas nem por isso deixa de ser um trabalhador; só não é assalariado, ao menos não em sua forma clássica. Da mesma forma, por “salários” e “rendas” deve-se entender não somente o que se recebe diretamente, mas também os chamados salários indiretos, prestados via de regra por meio de serviços públicos de educação, saúde, assistência e previdência sociais: seguro-desemprego, aposentadorias, auxílio-doença, serviços públicos de saúde (que constituem um salário indireto pago em gêneros), etc. No capitalismo, a oferta destes serviços em grande escala e com boa qualidade na prestação serve para reduzir a pressão dos trabalhadores pelo aumento salarial, sendo um mecanismo fundamental dos aumentos de produtividade associados à mais-valia relativa.

Atacando qualquer destes serviços, os capitalistas aumentam nos trabalhadores a sensação de insegurança quanto ao futuro. Podem fazê-lo piorando a qualidade de sua prestação por meio do sucateamento de serviços públicos; podem reduzir a oferta destes serviços, alterando o perfil do seu público-alvo; podem reduzir o montante pago, seja diretamente, seja por reajustar seu preço abaixo da inflação. Por esses meios, ou outros à sua disposição, o que os capitalistas conseguem é o aumento, entre trabalhadores, da sensação de insegurança quanto ao próprio futuro. Este é o mais forte estímulo a empurrar trabalhadores a reduzir o consumo presente e poupar, esperando serem recompensados por maior consumo futuro. Mesmo trabalhadores que não conseguem poupar, por viverem no limite da subsistência ou do endividamento, não eliminam do horizonte a possibilidade de fazê-lo na primeira oportunidade.

(É muito comum que certos trabalhadores recorram ao mercado imobiliário, formal ou informal, para chegar ao mesmo efeito por meio da construção ou aquisição de casa própria, ou de um imóvel extra para alugar. Importante como seja tal investimento imobiliário, ele não é assunto deste artigo, seja porque se dá por mecanismos externos ao sistema bancário, seja porque, quando bancos dele participam, é por meio do financiamento, forma de crédito facilmente englobada na criação de dinheiro pelos bancos de que falamos na parte anterior deste ensaio.)

A segunda forma é a manipulação das taxas de juros e dividendos das ações. “Manipulação”, aqui, significa somente a capacidade de instituições financeiras usarem meios legais para fazer tais taxas subirem ou descerem. A existência de diferentes formas de investimentos financeiros expressa-se, entre outros elementos, por distintas taxas de juros e dividendos. Inseguros os trabalhadores quanto ao próprio futuro, aumentam as chances de buscarem investimentos capazes de criar para si a impressão de que atenderão sua expectativa de consumo futuro — e investimentos com maiores taxas de juros, ou dividendos, são forte elemento de atração de suas poupanças.

Acontece que os investimentos compatíveis com a pouca disponibilidade de dinheiro dos trabalhadores são justamente os que oferecem os menores juros e dividendos — reproduzindo se assim, também no interior do sistema financeiro, a clivagem entre classes sociais antagônicas. Aos poucos que, sob o encanto de certos influenciadores digitais, resolvem direcionar suas poupanças para investimentos de maior retorno, há a desvantagem do mais longo prazo de mobilização destes recursos (como nos depósitos a prazo), ou do maior risco envolvido (como nas ações); neste último caso verifica-se ainda a distinção entre classes, porque muito dificilmente trabalhadores conseguirão comprar em quantidade suficiente as ações com direito a voto capazes de fazer deles verdadeiros capitalistas.

A terceira forma é o crédito ao consumo e a venda a prestações. Como há certos bens duráveis com preço muito maior que o montante do salário, resta aos trabalhadores poupar para comprá-los, comprá-los a prestações diretamente das mãos dos vendedores, ou pedir dinheiro emprestado para comprá-los, pagando o empréstimo em parcelas. Pelos três meios há restrição ao consumo dos trabalhadores. Se poupam, deixam de consumir agora para depositar dinheiro em bancos e, somando os depósitos aos rendimentos, comprar o bem quando o dinheiro depositado equivaler a seu preço. Se compram em parcelas diretamente dos vendedores, mobilizam a cada salário o dinheiro necessário para pagar as prestações, deixando de usá-lo para consumo de outros bens. Esta forma, associada aos crediários, está em franco desuso; o mais comum é que os próprios vendedores de tais bens duráveis estejam associados a uma instituição financeira, ou que já tenham criado um ramo financeiro próprio, para assim emprestar dinheiro aos trabalhadores interessados na compra dos bens. Por qualquer destes meios, além da captura das poupanças dos trabalhadores, há os efeitos deletérios do endividamento, que em meio a trabalhadores é poderoso instrumento de contenção do espírito combativo.

A quarta forma é “congelar” os preços dos bens de consumo corrente oferecidos em volume inferior à capacidade efetiva de compra por parte dos trabalhadores. A experiência demonstra, em tais situações, que florescem os “mercados paralelos”; se puderem ser controlados de algum modo, o excedente monetário criado pela impossibilidade material dos trabalhadores de gastar termina sendo depositado em bancos.

A quinta forma são medidas compulsórias de recolhimento de parte dos salários aos bancos. Um exemplo clássico é o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS, criado em 1966 para permitir a criação do Sistema Financeiro de Habitação.

A sexta forma é a manipulação dos impostos, que funcionam como mecanismo de controle do poder de compra dos trabalhadores e, por mecanismos financeiros, convertem em poupança forçada a massa monetária coletada.

Por todos estes meios, já muito tradicionais, bancos capturam dinheiro vivo de trabalhadores, trazendo-o a seus cofres. Ao fazê-lo, podem criar mais dinheiro por meio de crédito; e o crédito assim criado, por meio da manipulação das taxas de juros, é o que permite aos bancos lucrar muito com as impressionantes taxas de lucros encontradas no “mercado”. Além disso, do ponto de vista dos trabalhadores, crédito e dívida são dois lados da mesma moeda, e trabalhador endividado dificilmente se mobilizar para o que quer que seja.

A captura das economias de trabalhadores insere-se, deste modo, num processo de criação de dinheiro e crédito pelos bancos privados, dentro do qual se reproduzem os antagonismos sociais que estruturam a sociedade capitalista.

Que tem o PIX a ver com isso?

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Cartão postal de Hameln (1902)

O PIX, como de resto outros elementos do movimento de transformação digital da economia, traz uma sétima forma. Aos incentivos e formas coercitivas de bancarização dos salários é possível perceber, graças à digitalização dos meios de pagamento, uma nova forma: a substituição do dinheiro material pelo dinheiro escritural no âmbito dos salários, da economia informal e das transações monetárias de pequeno porte.

Este processo foi precedido e se beneficiou de inovações anteriores, como a generalização do uso de cartões de crédito e a substituição do pagamento dos salários em espécie pelo pagamento em contas-salário. Os cartões de crédito expandiram enormemente a terceira forma de captura das poupanças e endividamento de trabalhadores. Quando as contas-salário passaram a suplantar o pagamento dos salários em espécie no caixa das empresas, e em especial quando os saques do dinheiro depositado foram sendo substituídos pelo uso dos cartões de débito nas compras à vista, o dinheiro dos salários passou a ser usado pelos trabalhadores quase exclusivamente no interior de transações interbancárias, aumentando o volume de dinheiro em caixa que os bancos podem usar como capital e alargando o tempo em que se opera a “magia” do multiplicador bancário.

Sob tais condições, foi construído em meio à classe trabalhadora um público bastante habituado a transações monetárias realizadas exclusivamente no âmbito contábil. Tal hábito, aliás, dissolveu aos poucos as barreiras entre o salário mensal e as despesas mensais. Na bonança ou nas crises econômicas, há necessidades que levam os trabalhadores a consumir. Se o dinheiro guardado numa gaveta representou, por décadas, um limite material e palpável à capacidade de consumo dos trabalhadores, a bancarização dos salários torna mais difícil a distinção entre ela e a satisfação de certas necessidades. Como a bancarização dos salários costuma vir acompanhada de “soluções de crédito” (cartões, cheque especial, limites de crédito, etc.), as pressões em favor do consumo empurram os trabalhadores ao crédito. Este crédito ao consumo dos trabalhadores, do ponto de vista com que os bancos analisam a vida financeira cada trabalhador correntista, é pequeno; do ponto de vista de um trabalhador que entra uma só vez na roda viva do endividamento, é suficiente para fazer de sua vida um inferno. Passam a perceber parte cada vez menor de seus salários e rendas disponível para o consumo imediato, e parte cada vez maior restringida para o pagamento das dívidas — que, aliás, são mecanismo plurissecular de subjugação, anterior ao próprio capitalismo. Graças à implementação de tais mecanismos, vão sendo criadas no capitalismo “moderno” características parecidas às que se encontra nos chamados regimes de barracão, próprios dos processos de trabalho análogos à escravidão, em que grupos de trabalhadores em isolamento geográfico e social quase absoluto são obrigados a adquirir bens de primeira necessidade nos armazéns de seus patrões, obrigando-se, pela força moral da dívida e pela força armada da jagunçada, a trabalhar em jornadas extenuantes e sob condições miseráveis.

O fato de não existir até o momento um movimento social de endividados pela abolição de suas próprias dívidas, quando se vê crescer avassaladoramente o número de endividados, dá testemunho do quanto ainda é preciso avançar para romper a força moral do endividamento. Veja-se o caso brasileiro, onde trabalhadores superendividados — ou seja, com dívidas muito superiores à sua capacidade de pagamento — são mobilizados a participar dos “feirões limpa-nome”. Tal iniciativa se deve exclusivamente ao próprio sistema bancário e aos órgãos de proteção ao crédito, como meio bastante marginal para destravar o consumo familiar na economia quando emperrado pelas restrições orçamentárias causadas pelo endividamento generalizado. Nestes “feirões”, aliás, dívidas consideradas “incobráveis”, tidas pelo sistema financeiro como prejuízo certo, são reduzidas a patamares compatíveis com os salários e rendas de cada trabalhador individualmente considerado, evidenciando como se trata somente de uma estratégia de recuperação de crédito. Resulta destes “feirões limpa-nome” somente a prorrogação do pagamento da dívida sob novas condições, o que não é outra coisa além da contração de nova dívida, ainda que mais reduzida.

O PIX fortalece esses mecanismos. Num sistema em que os salários e rendas dos trabalhadores já se encontram altamente bancarizados, o PIX, enquanto arranjo de pagamentos em que pessoas físicas não pagam qualquer taxa de uso, é forte estímulo a seu uso como substituto do papel-moeda. A este respeito, é instrutivo analisar as estatísticas representadas no Gráfico 1, que desagregam o volume de transações realizadas com PIX de acordo com a natureza da transação, conforme a classificação governo para pessoa (G2P), pessoa para governo (P2G), governo para empresa (G2B), empresa para governo (B2G), governo para governo (G2G), pessoa para empresa (P2B), empresa para pessoa (B2P), empresa para empresa (B2B) e pessoa para pessoa (P2P).

O volume das transações em PIX entre novembro de 2020 e agosto de 2022 evidencia o estabelecimento de certos padrões. Para os fins deste ensaio, deve-se ter atenção às transações B2B, P2B e P2P. As transações B2B oscilam permanentemente entre 34% a 39% do total, variando dos R$ 9,8 bi iniciais aos R$ 340,9 bi do encerramento do período; deve-se ter em mente, entretanto, que o PIX opera dentro do agregado monetário M1, que entre 2020 e 2022 nunca ultrapassa 8% do total do dinheiro no Brasil, enquanto parte significativa das transações B2B se dá fora do agregado M1, em especial por meio de dinheiro escritural e títulos de crédito. A participação das transações B2B no total das transações em PIX, tal como seu aumento em volume e proporção, deve ser vista com muitas cautelas; como o número de empresas é sempre muito menor que o de pessoas físicas, tal aumento deve ser visto somente como testemunho do volume de dinheiro movimentado em circuitos estritamente empresariais. Por outro lado, as transações P2P, embora cresçam em valor (de R$ 11,4 bi a R$ 332,4 bi), diminuem sustentadamente em participação no total (de 45% a 37%); ao mesmo tempo, as transações B2P passam de 10% (R$ 2,5 bi) para 13% (R$ 117 bi), e as transações P2B passam de 5% (R$ 1,3 bi) para 10% (R$ 92,2 bi). Seria necessário agregar outras informações antes de chegar a uma conclusão definitiva sobre estes números, mas há evidências, mesmo tênues, de que o crescimento das transações B2P nesta série pode expressar maior uso do PIX para pagamento de salários e remunerações a trabalhadores autônomos; que o crescimento das transações P2B indica maior adesão ao PIX de empresas vendedoras de bens de consumo, duráveis ou não; e que o volume e relevância das transações P2P evidencia tanto a bancarização de pequenas transferências interpessoais quanto o uso massivo do PIX na economia informal.

Deve-se olhar com muita atenção para as transações P2P. As transações P2B mencionadas já haviam sido bancarizadas via contas-salário; se a interpretação acima corresponder à realidade, o PIX estará sendo usado para baratear os custos com a folha salarial, apresentando-se como alternativa às contas-salário que mantém sob exclusiva responsabilidade de cada trabalhador a manutenção de sua(s) própria(s) conta(s)-corrente(s). A bancarização das transações P2B já se dava por outros meios, sendo cada vez mais reduzida a parcela de dinheiro vivo circulando em tais transações. Somente as transferências P2P estavam ainda imunes aos incentivos à bancarização, recorrendo seus participantes a todo tipo de expedientes para contornar o pagamento de taxas bancárias; além disso, com a baixa pejotização da economia informal e a ubiquidade do PIX também neste setor, é provável que a estatística esteja a expressar a efetiva bancarização da economia informal.

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Representação pública da história do Flautista de Hamelin, no Festival da Baixa Saxônia em Hameln (2009)

Há muitos ângulos pelos quais se pode abordar o PIX de modo crítico. O que expusemos até o momento é um enorme esforço, feito por pessoas com conhecimentos muito elementares de economia e estatística, para apresentar o PIX como um meio eficaz de transformação em capital bancário do dinheiro envolvido nas transações financeiras interpessoais, e também na economia informal. Foi este o ângulo mais importante que encontramos para dar início a uma crítica ao PIX capaz de ultrapassar os limites da crítica puramente doutrinária, das críticas desinformadas e das teorias da conspiração.

Existem pontos que suscitam ainda nossa curiosidade, para os quais sequer fomos capazes de formular adequadamente perguntas orientadoras das nossas pesquisas. É nesse estágio que ainda estamos. Partilhamos com o público elementos de nossas dúvidas, na esperança de que alguém possa dar seguimento ao que começamos.

Primeiro: qual o impacto real do PIX sobre a economia no que diz respeito à redução de custos de transações financeiras?

Segundo: qual o papel do PIX na disputa internacional entre o dinheiro digital emitido por bancos, o dinheiro digital criado por grandes empresas de tecnologia (Whatsapp Payments, Google Pay, Samsung Pay, etc.) e as criptomoedas?

Terceiro: o dinheiro digital e os meios de pagamento instantâneo, ao reduzirem o tempo e os custos necessários às transações monetárias internacionais, alteram de algum modo as defasagens entre moedas nacionais distintas?

Foi-nos importante realizar este esforço de pesquisa e aprendizado prático. Entendemos que existe certa aversão a temas econômicos na esquerda de hoje, reflexo de uma crítica equivocada aos exageros de certas vertentes que, no passado, colocaram à frente de qualquer outra reflexão um estrito desenrolar de fatos econômicos desconexos, listados como tributo ao enraizamento econômico da crítica da economia política, e também de certas concepções teóricas e práticas que, em vez de confrontar-se com a totalidade da dominação capitalista, restringiam o âmbito de validade da crítica da economia política às relações em torno do conflito direto, explícito e imediato entre trabalhadores e patrões. Se a crítica tem sua dose de razão, extrapolou-a por meio da absoluta negação, e negação coletiva, ao estudo da economia; embriagada por esta nova certeza, setores cada vez mais amplos da esquerda passaram a negar sistematicamente o estudo da economia, substituindo-o pelos dogmas com que hoje fazem o mundo adequar-se às próprias certezas. Fomos, nós próprios, por longo tempo vítimas deste equívoco. Este ensaio é nossa primeira e humilde contribuição para sua superação.

A publicação deste ensaio foi dividida em 03 partes, com publicação semanal:
PARTE 1
PARTE 2
Parte 3
Esta parte do ensaio foi ilustrada com várias representações da história folclórica germânica do Rattenfänger von Hameln (“Pegador de ratos de Hameln”, ou Flautista de Hamelin), que registra, em forma de mito, a migração de jovens da cidade para o Oeste, especialmente para a região de Brandemburgo. A imagem em destaque é a animação do carrilhão da Hochzeitshaus (Casa Nupcial) de Hameln.

7 COMENTÁRIOS

  1. camaradas,
    o seguinte parágrafo parece ter sido publicado sem o seu final:
    “Por todos estes meios, já muito tradicionais, bancos capturam dinheiro vivo de trabalhadores, trazendo-o a seus cofres. Ao fazê-lo, podem criar mais dinheiro por meio de crédito; e o crédito assim criado…”

  2. Caro Lucas,
    Obrigado pelo aviso. Já está corrigido.

    Atenciosamente,
    Passa Palavra

  3. excelente iniciativa! moedas digitais não são bruxaria.

    A modo de comparação, ofereço aqui alguns exemplos argentinos que conheço pela vivência econômica e também com um pouco de pesquisa.
    O governo Macri (2016-2019) teve um peso importante no desenvolvimento da digitalização econômica. Em 2016 entrou em vigência a ferramenta do “alias CBU”. O CBU é o código único de conta bancária, um número de 22 dígitos, que era usada antes para realizar transferências. Com a introdução do “alias”, esse número podia ser referido com qualquer outra série alfanumérica. Por exemplo, Raíssa poderia indicar sua conta para transferencia de clientes usando o alias “bolo.no.pote”, ao invés de ter que passar 22 dígitos. O Banco Central também habilitou os pagamentos feitos com códigos QR, que se referiam aos CBUs e também já tinham automatizado na imagem os valores a serem transferidos.
    Em 2017 o Banco Central inaugurou o sistema DEBIN, que assim como o PIX, permitia a transferência imediata de dinheiro, 24h, entre contas, por meio de um sistema onde o receptor envia um pedido de autorização para a conta que será debitada. É uma operação que está feita à medida para o comércio, pois quem inicia a ação não é quem envia o dinheiro senão que o receberá, e isso provocou, como não poderia deixar de ser, uma onda de fraudes e golpes virtuais.
    Em 2018 foi a vez das CVUs, “Clave Virtual Uniforme”, também conhecidas como “carteiras virtuais” que fazem as vezes de conta bancária de dinheiro digital, mas sem toda a burocracia, direitos e deveres das contas propriamente bancárias. Foi a entrada das fintechs no âmbito das operações cotidianas de transação monetária, com uma ênfase grande nas operações de compra e venda diárias: bombardeamento de publicidade, prêmios para usuários que usasem por primeira vez, descontos, facilidades para comércios aderentes, etc. O detalhe do caso argentino é que não se tratou de um grande universo de fintechs. A permissão foi dada apenas para a empresa nacional “Mercado Livre”, que manteve o monopólio deste tipo de serviço até o fim do governo Macri, num típico caso de capitalismo de amizades, que até então caracterizava especialmente o peronismo.
    Por fim, um “dato de color”, como se diz aqui: o atual presidente do Banco Central do governo Fernández, Miguel Pesce, foi questionado a respeito do valor nominal das cédulas de pesos argentinos. Atualmente a cédula de maior valor é a de AR$1.000, que vale entre 3-6 dólares, segundo a cotização escolhida para a referência. Quando lhe perguntaram o motivo pelo qual o BC não colocava em circulação bilhetes de maior valor nominal, ele respondeu que no futuro ninguém mais usaria dinheiro físico e essa era já uma mudança irreversível. É por isso que em geral não vemos no dia a dia cenas como a que protagonizou Eduardo Bolsonaro, pagando uma conta de mais de AR$100.000 num restaurante com dinheiro em papel. Ainda se usa bastante dinheiro em papel nas ruas — mais do que em uma cidade como São Paulo, pelo que pude ver nas últimas visitas –, mas a combinação entre inflação e digitalização está promovendo uma transformação rápida nos usos do dinheiro.

  4. Primo Jonas, o ensaio é bem claro: PIX não é moeda digital, é meio de pagamento. Usa moeda nacional já existente (Real — R$), opera entre bancos e instituições do sistema financeiro nacional, é regulado pelo Estado, não existe enquanto moeda autônoma, etc., etc., etc. PIX não é bitcoin, tampouco faz transações em bitcoin ou qualquer moeda digital. Ou a conta tem reais em saldo, ou não se faz PIX.

    Por outro lado, isso que você fala sobre o “alias CBU” e sobre o “DEBIN” se aproximam bastante do que é o PIX, embora não conheçamos o suficiente dessas duas modalidades de pagamento para dizê-lo com absoluta certeza. Já a “Clave Virtual Uniforme” parece uma carteira digital, tipo Ethereum, mas, novamente, estamos falando bem por alto.

  5. Z1010010, você está certo. O ensaio está enfocado nos meios de pagamento digitais. De fato, as operações DEBIN aqui podem ser feitas tanto em pesos como em dólares, visto que aqui as contas bancárias em dólares são algo corrente. Sobre o CVU, no Brasil não existem as contas de Mercado Pago? Aqui funciona como uma carteira digital, mas para pagamentos em moedas tradicionais mesmo, não em cripto.

    Mas esta questão justamente, da diferença entre meios de pagamento digitais, moedas digitais, etc. Fiquei aqui pensando que essa mistificação do PIX, na modalidade das “teorias conspiratórias”, não se deve à esta última onda de inovações, incluídas aí as criptomoedas, uma vez que os cartões de crédito já operavam de maneira digital há muitos anos. O que diferencia, para o cidadão comum (ou para o esquerdista comum) o PIX das operações de nome desconhecido que a VISA ou a MasterCards realizava para processar os pagamentos de forma quase instantânea? Será que as iniciativas das empresas privadas geram menos desconfiança que as iniciativas dos Bancos Centrais? O caso das criptomoedas é inverso: dizem que seu problema é que elas não tem lastro… como se as moedas nacionais hoje o tivessem!

  6. Entelequial, sesquipedal e piramidal, o pix é a moeda fictícia ou hiper-real: o juízo final do capitalismo.

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