Esses “cercadinhos” da informação são as ferramentas determinantes para que o bolsonarismo consiga, com sucesso, fazer “demagogia histérica a propósito de algo que é perfeitamente normal” junto a fanáticos e obscurantistas.

Por Manolo

 

Todo mundo pitaqueando sobre a conjuntura, resolvi pitaquear eu também.

Tudo começou porque um amigo se diz espantado com a “capacidade dos bolsonaristas de fazerem uma demagogia histérica a propósito de algo que é perfeitamente normal”. O que é o “perfeitamente normal”? Cito-o textualmente:

 

Quando se está imerso nas coisas, perde-se a perspectiva. É necessário por vezes afastarmo-nos para ver as coisas como elas são, na sua novidade. Ora, visto aqui da Europa, é extraordinário que todos esses preâmbulos de golpe, senão mesmo de guerra civil, sejam por causa de um futuro governo do centro, tenuemente centro-esquerda, que já demonstrou o seu apego aos mecanismos capitalistas e a sua capacidade de promover com êxito o capitalismo. Se não fosse todo o espalhafato feito pelos bolsonaristas, a eleição dos Lula & Alckmin suscitaria apenas um bocejo. É isto que, visto daqui, parece extraordinário. Vou dar-lhe um exemplo. Na Itália triunfou eleitoralmente há poucas semanas uma coligação formada por dois partidos fascistas (os Fratelli e a Liga) e um partido de extrema-direita (Forza Italia). A dirigente dos Fratelli, que é a primeira-ministra, só se notabilizou até agora pelas medidas radicais contra os imigrantes e tudo o resto continua a funcionar em termos democráticos. Nem os outros países da União Europeia dizem que vai haver um holocausto em Itália nem o governo italiano diz que a União Europeia se vai converter numa nova União Soviética. O que me espanta no Brasil é a capacidade dos bolsonaristas de fazerem uma demagogia histérica a propósito de algo que é perfeitamente normal. Explico melhor. O que me espanta é a capacidade que os bolsonaristas têm de acreditar nisso. Agora vou fazer uma comparação em sentido inverso. Quando os fascistas russos e os seus aliados dizem que querem libertar a Ucrânia do satanismo e que o Ocidente é satânico, eles estão a acreditar nisso, do mesmo modo que a base bolsonarista acredita que o Lula é comunista e quer fechar as igrejas e levar o país para a ruína. É certo que a história regista em todas as sociedades vagas de convicções absurdas. Mas agora parece-me que existem em maior número, com maior frequência e mais duráveis. E a questão é: como conseguiremos combater isso usando uma argumentação racional? Parece-me que estou a olhar por um telescópio e a analisar as convulsões numa estrela longínqua, de tal modo me parece injustificada a histeria da base bolsonarista.

 

Respondi a este amigo, e a resposta virou um textaralhaço. Tome-o então, público pitaqueante, e critique-o como quiser.

A comparação com os fascistas russos e o “combate ao satanismo” está corretíssima, desde que reduzamos seu alcance a um restrito grupo de delirantes. Os delirantes nas portas dos quartéis realmente acreditam, de todo coração, nesse apocaliptismo. Digo tanto pelo que leio por aí, quanto por experiência in loco.

Delírios e delirantes em Salvador

Um grande amigo meu tem seu escritório de advocacia perto do quartel-general da 6ª Região Militar, onde comanda um dos generais acusados de serem ”melancias“. A Mouraria, onde fica o quartel, é um bairro de casas antigas, onde também ficam o convento da Palma e uma verdadeira passarela de bares, onde meia Salvador acorre para beber e comer lambretas.

Nessas últimas semanas, quando vou encontrá-lo em seu escritório, percebi um ritual diário dos cerca de trinta delirantes que sitiam o quartel: por volta das 17h30min, começa um coro ritmado (“Forças Armadas, salvem o Brasil!”); por volta das 17h45min, começa o hino nacional; por volta das 18h, tocam a ave-maria num carro de som, a cujo final todos se põem a orar sonora e contritamente umas ave-marias e uns pais-nossos; o ritual se encerra por volta das 18h15min com a “volta olímpica” de um carro de som em volume altíssimo em torno do quartel, berrando loucuras sobre CPI, Venezuela, COVID, vacinas, etc. Incomodado, perguntei a meu amigo se isso era assim todo dia. “Claro que sim”, ele me disse, e para demonstrar como a vizinhança andava furiosa com os delirantes narrou uma curiosa indiscrição.

O escritório, por estar na Mouraria, está em um bairro onde vivem muitos idosos e uns poucos daqueles ”meio intelectuais, meio de esquerda“ que vão morar em bairros centrais, perto de bares ruins (como se só no Centro houvesse bares ruins!). Disse-me meu amigo — também ele “meio intelectual, meio de esquerda”, mas chegado numa fofoca — que “pescou” dia desses uma conversa de vizinhos de bairro. Estão furiosos, e em sua fúria desvelaram um sintoma da relação íntima entre os militares e os delirantes. Sempre que os bares ousam colocar um cantor com violão e uma caixinha de som modesta, logo surge algum soldadinho mandando desligar o som. “Área de segurança nacional”, é sempre o argumento do soldadinho, quem quer que ele seja. “Área de segurança nacional não pode ter som, não pode ter zuada”. Aí apareceram os delirantes com um trio elétrico na frente do quartel da 6ª RM com um som ensurdecedor, conclamando os militares ao golpe por dias a fio. Nem uma só reação, seja do soldadinho, seja do comandante. Os vizinhos começaram a reclamar entre si: “não tá vendo que esse bando de filho de lá ela tá todo mundo junto, véi? A gente bota uma caixinha de som para curtir uma música, aparece logo a porra do soldadinho. Esses filhos da puta botam essa desgraça desse trio elétrico do caralho, não aparece nem uma porra de soldadinho de merda para acabar com essa putaria dos infernos!”

(Sim, tem mais palavrão por caractere nessa fofoca que substantivos ou verbos. É o mais escorreito e castiço baianês soteropolitano do baixo Centro. Porra é vírgula, cu é ponto. Quem acha que seu Pimenta é personagem, não entendeu porra nenhuma. Tomar no cu!)

Por que raios alguém se sujeitaria a passar quase um mês fora de casa, acompanhado por completos desconhecidos, sob um sol inclemente acompanhado por surtos de chuva torrencial? Vi, na Mouraria, gente verde-amarela muito sorridente nas padarias lanchando, trocando turno com outros no acampamento, conversando animada. Não tem cara de fim de festa, pelo contrário. No caso da Mouraria ainda se pode argumentar que tem bares por perto, tem mercados, farmácias, transporte público, vizinhança — mas e as duas barraquinhas com umas cinco almas penadas que assombram a entrada do 6º Batalhão da Polícia do Exército, na avenida Paralela? Não tem nada em volta, ao menos não dentro de um raio de pelo menos 1km. E as outras almas penadas que expiam sabe-se lá o quê em frente à entrada do 19º Batalhão de Caçadores, no Cabula, onde é perigoso ficar sozinho à noite? E por que ninguém foi ocupar a frente da Base Aérea de Salvador, da Prefeitura Aeronáutica de Salvador, do Comando do 2º Distrito Naval ou da Base Naval de Aratu? (Esses links para o Google servem só para indicar onde fica o lugar, ok, apressados?) Sim, o Exército é a Força Armada mais numerosa em tropas, mas só isso explicaria a preferência dos golpistas pelo Exército, quando os pedidos de golpe são direcionados às Forças Armadas como um todo?

Delírios e delirantes em Salvador

Minha hipótese é que essas pessoas se penitenciando em frente aos quartéis estão na encruzilhada entre fanatismo religioso e obscurantismo político. O missal da Mouraria evidencia esse cruzamento. Tá, não é nada genial, criativo, mas é isso aí. Existe, sim, apoio logístico externo, e dos fortes. Orações, somente, não têm o poder de fazer brotar em frente aos quartéis toldos, carros de som, trios elétricos, sanitários químicos e comida farta, do mesmo jeito que essa conversa mole de fazer água virar vinho, multiplicar pães, acalmar tempestades, andar sobre as águas, curar com a palavra e as mãos, amaldiçoar figueiras, tudo isso fica muito bem como imagens simbólicas na literatura épica — mas simplesmente não existe. Sem esse elemento fanático e obscurantista, os financiadores não encontrariam a massa para manobrar.

Vejam como são as coisas: tanto na minha família quanto entre meus conhecidos há uma linha demarcatória muito clara entre bolsonaristas e lulistas, sendo que o bolsonarismo grassou muito fecunda e profundamente entre aqueles mais religiosos, mais místicos, mais deístas, e por isso mesmo menos propensos ao convencimento racional e mais propensos a conversões súbidas, revelações, epifanias e que tais. O exemplo mais notório que tenho próximo a mim nesse sentido é um parente meu, kardecista fanático quando jovem e espirita delirante até hoje, que defende Bolsonaro com unhas e dentes, mesmo tendo diante de si provas de muita coisa errada. Ele realmente acredita no que circula naquele ecossistema hermético de informações do bolsonarismo, porque já havia sido predisposto, pelo kardecismo, a acreditar no que não vê e não existe. Credo quia absurdum é a lógica fideísta tertuliana vigente neste meio. Qualquer um entre nós que olhar ao redor encontrará alguém mais ou menos assim, pouco importa a religião a que esta pessoa adira.

Respondendo à pergunta de meu amigo — “como conseguiremos combater isso usando uma argumentação racional?” — acho que não conseguiremos. Não há meios. É causa perdida. Este núcleo mais fanático está além do convencimento racional.

Por sorte, este núcleo fanático, por mais ruidoso, só consegue algo quando se torna massa de manobra nas mãos de outros que não põem a cara na tela. Estes sim, seguem a mais severa e estrita disciplina conspiratória. Não aparecem muito nos protestos, não ficam nos acampamentos, fazem a interligação entre diferentes protestos, comunicam-se entre si. Vimo-los, por exemplo, num vídeo, cujo link não tenho agora, que mostra um homem falando a caminhoneiros ainda no dia 1º de novembro: tudo o que veio a acontecer nos dias seguintes obedeceu às linhas gerais do que dizia. Paralisar as estradas, depois aproveitar o feriado de Finados para acorrer aos quartéis e ficar lá — foi literalmente isso o que ele disse. A parte que ainda não aconteceu, na fala deste homem, é “ficar lá até impedir a posse”. Esse sim, é um conspirador clássico, bem orientado e orientando bem a massa delirante. Pelo que percebi, gente assim foi flagrada em vídeo em vários pontos do país. É gente assim o perigo, não a tia do zap. A tia cansa, o conspirador não pode cansar.

Outra hipótese para tentar dar conta dessa notória “capacidade dos bolsonaristas de fazerem uma demagogia histérica a propósito de algo que é perfeitamente normal”, que extrapola esse campo de fanáticos, tem a ver exatamente com este ecossistema hermético de informações a que me referi, aliás bem característico do fanatismo religioso.

Quem conheça aderentes às denominações mais fundamentalistas do neopentecostalismo conhece a divisão muitíssimo severa entre as coisas “do mundo” e as coisas “de Deus”. Mesmo as novelas da Globo, nesses meios, sempre foram reputadas como “do mundo”, ou mesmo “do Satanás”, por questões muito comezinhas da narrativa dramática: conflitos entre filhos e pais, conflitos intrafamiliares, a simples retratação do Mal pelos vilões, etc. Quando começaram a mostar — nem digo “favoravelmente”, mas simplesmente “mostrar” — temas do amor entre homens e entre mulheres, etc., a crítica aumentou. Ficava tudo na crítica, porque tais seitas não tinham dinheiro suficiente para montar seu próprio sistema de comunicação. O máximo que se conseguia era orientar os fieis a “não assistir a Globo”, etc.

Delírios e delirantes em Salvador

Com a compra da Record pela Igreja Universal a coisa começou a mudar de figura, e com a compra de outros canais UHF (CNT, Rede Família, TV Aparecida, Genesis HD, Rede Vida) e entrada na TV por assinatura, foi sendo formando um ecossistema informativo igualmente fanático, com transmissão ao vivo de cultos, pastores transformados em estrelas televisivas, etc. A coisa ficou ainda mais grave com a conjunção entre Youtube e a adoção pelas operadoras telefônicas de políticas de zero rating ao Youtube, permitindo que pessoas assistam vídeos dessa rede sem consumo de dados de seus planos de celular, ou com larga franquia em gigabytes: a quantidade de conteúdo fanático e obscurantista nessa plataforma é bem conhecida, e tem a “vantagem” de poder ser consumido em qualquer lugar, bastando abrir o Youtube no celular. Se existe conteúdo produzido com certa orientação ideológica, consumi-lo toma tempo, tempo que poderia ter sido usado para consumir outro conteúdo. É da ocupação dos tempos com o consumo de mensagens com determinado conteúdo que vive esse ecossistema.

(Duvida? Crie uma conta nova do Google, e abra o Youtube com ela: o algoritmo só vai te sugerir louvor picareta, autoajuda picareta, pastor picareta, empreendedor picareta, life hack picareta, stand-up comedy picareta, pegadinha picareta, dieta picareta, e em meio a isso futebol e alguma música. Sobreviva a uma dieta constante de recomendações do algoritmo do Youtube por uma semana, se puder!)

Não é que a audiência da Globo caiu, quantitativa ou qualitativamente. É que ela tem, agora, a concorrência de outros pólos emissores de informação, com conteúdo religiosamente autorizado, capaz de fornecer conteúdo alternativo com que criticar o que se passa na Globo. A audiência da Globo continua altíssima, mas seu público não é o mesmo em todas as horas do dia; naquelas horas em que esse público não assiste um filme da Tela Quente ou da Temperatura Máxima, assiste um vídeo pastoral; naqueles minutos em que alguém não assiste o Jornal Hoje, consome o Terça Livre; e por aí vai. Ora Globo, ora a crítica à Globo. Ora uma “narrativa” ora seu enquadramento na “verdade”.

Tudo isso poderia perfeitamente ficar restrito ao campo do neopentecostalismo, mas o “modelo” extrapolou a origem. O ecossistema neopentecostal é só um entre muitos “cercadinhos” informativos. Existe o “cercadinho” do marketing/vendas, o “cercadinho” jurídico, o “cercadinho” da maquiagem, o “cercadinho” dos games... Estes “cercadinhos” têm alguma comunicação entre si, mas intermediada pelos influenciadores, somente quando participam uns nos vídeos dos outros. Se até não muitos anos atrás era a Globo quem ocupava a maior parte do tempo de consumo de produtos da comunicação, ela agora enfrenta uma concorrência difusa, que não precisa se preocupar com a disputa por horários fixos de programação, tampouco com propaganda.

A este respeito já existe pesquisa acadêmica volumosa reconhecendo o papel desses ecossistemas fechados de informação na proliferação de notícias falsas, boatos, teorias da conspiração, etc. Numa dessas pesquisas, aliás feita por brasileiros, foi feito um experimento simples, com apoio financeiro da Folha: foram criados dois grupos, um dos quais se informava como de hábito, e o outro recebeu várias medidas de prevenção à disseminação de notícias falsas (assinatura gratuita da Folha, mensagens ensinando como reconhecer fake news, etc.). Os pesquisadores expuseram os dois grupos a notícias falsas e verdadeiras, e observaram que o segundo grupo reduziu a propensão a aceitar boatos e notícias falsas acriticamente pelo puro e simples fato de ter acesso a uma fonte de informação externa a seu ecossistema informativo habitual, e a procedimentos de reconhecimento de fake news. A bibliografia citada no artigo é muito rica, traz casos de diversos países, e vale a pena ser percorrida. Estas pesquisas sugerem, embora inconclusivamente, que é fundamental quebrar esses ecossistemas de informação para romper com a “capacidade dos bolsonaristas de fazerem uma demagogia histérica a propósito de algo que é perfeitamente normal”.

Delírios e delirantes em Salvador

Minha hipótese é que esses ecossistemas fechados, esses “cercadinhos” da informação, são as ferramentas determinantes para que o bolsonarismo consiga, com sucesso, fazer “demagogia histérica a propósito de algo que é perfeitamente normal”. Graças aos “cercadinhos”, o bolsonarismo consegue ultrapassar a bolha de fanáticos e chegar a um público mais amplo, muito por força do contágio entre “cercadinhos”.

Tudo isso é pelo lado dos emissores. Pelo lado dos receptores externo aos círculos de fanáticos e aos grupos de conspiradores ativos, haveria muito o que dizer, mas o tempo me falta.

Fiquei nisso em meus pitacos. Terei errado?

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