Por Jan Cenek

 

Nas décadas de 1970 e 1980, o cinema brasileiro produziu filmes que ficaram conhecidos como pornochanchadas. Os títulos são sintomáticos: Os mansos; Memórias de um gigolô; Vítimas do prazer; A virgem e o machão; Caçadas eróticas; Sexo a domicílio; Senta no meu, que eu entro na tua; Ônibus da suruba. Chanchada tem a ver com humor ingênuo e popularesco. Pornochanchada eram comédias eróticas que exibiam corpos femininos com a regularidade necessária para prender a atenção do público. Eram tempos de ditadura empresarial-militar, censura, moralismo e repressão. Mas as pornochanchadas passavam nos cinemas e rivalizavam com os filmes estrangeiros. Faziam um sucesso razoável, talvez por serem uma espécie de espelho privilegiado da sociedade brasileira.

As comédias eróticas fazem uso de personagens caricatos: a virgem, a adúltera, o machão, o corno, o cafajeste, o canalha. É aqui que me ocorreu a comparação. Bolsonaro parece um personagem de pornochanchada. Daí o moralismo, a desfaçatez, a pilantragem, as idas e vindas, o entreguismo, a cara de pau. O próprio apelido, Bozo, além do jogo de palavras com Bolso, remete a um palhaço e a um tipo discutível de humor. Procurando na internet, percebi que a semelhança foi notada, também, por Xico Sá: “Bolsonaro é típico personagem da pornochanchada brasileira”. O cronista, como eu, deve ter pensado nos delegados, advogados e empresários canalhas das comédias eróticas. Bolsonaro é uma síntese de todos eles.

Mas como a vida supera a arte, o personagem caricato se tornou presidente do Brasil. Salvo engano meu, que não sou grande conhecedor de pornochanchadas, nenhum roteirista, nem o mais ousado, imaginou um personagem grotesco ocupando a presidência da república, inclusive porque a comédia erótica se tornaria uma tragédia generalizada.

No final dos anos 1980, com a crise do cinema brasileiro e a chegada da pornografia stricto sensu, as pornochanchadas perderam espaço. Mas a sociedade espelhada nas comédias eróticas pouco mudou, o que ajuda a explicar Bolsonaro, figura caricata que soube aproveitar as oportunidades que surgiram.

As falas e posturas autoritárias, machistas, racistas, homofóbicas e moralistas de Bolsonaro parecem extraídas de uma pornochanchada. O que talvez explique por que os posicionamentos não chocam boa parte da sociedade brasileira, que pode não dizer exatamente as mesmas coisas, mas pensa parecido, porque foi educada e limitada pelo mesmo referencial estético e ideológico. Exemplo: a fixação bolsonarista por fezes, bundas e armas de fogo já estava no filme Um pistoleiro chamado Papaco. O que indica que as linhas gerais do bolsonarismo existiam na sociedade brasileira há tempos.

Para quem quiser ter uma ideia da comparação que tento estabelecer sem precisar assistir muitas pornochanchadas, recomendo o excelente Histórias que o nosso cinema (não) contava, da diretora Fernanda Pessoa, que montou o filme a partir de recortes extraídos de 27 comédia eróticas. Está tudo lá: o autoritarismo, o machismo, a homofobia, o entreguismo, o moralismo, o humor discutível e até o medo da esquerda e do socialismo.

Nos anos 1990 as pornochanchadas haviam perdido espaço e deixaram de ser filmadas, mas eram exibidas nas sessões eróticas da madrugada, na TV aberta. Muita gente cresceu assistindo os filmes com volume baixo, para não acordar os familiares. Às vezes perdendo trilhas sonoras interessantes. Algumas atrizes das novelas voltavam mais tarde, mais jovens e com menos roupa, nas sessões da madrugada, para delírio e deleite do público masculino. Tempos depois, personagens como Bolsonaro ocuparam o horário nobre e escancararam o que, nas pornochanchadas, pareciam ser possibilidades limitadas e residuais da sociedade brasileira. Bolsonaro atravessou a fronteira que os personagens das comédias eróticas se limitaram a tangenciar.

Como pontuou Thiago Canettieri, o bolsonarismo é, sobretudo, um projeto de destruição: de instituições e políticas públicas, de vidas e possibilidades. A destruição bolsonarista precisa ser compreendida como uma possibilidade do tempo presente, e não como um “desvio atávico na rota do progresso”. Bolsonaro “joga com a experiência cotidiana do colapso”, é um “realista do colapso”.

Na minha opinião, o bolsonarismo existe devido à herança escravista da sociedade brasileira, porque a ditadura empresarial-militar de 1964 não foi passada a limpo e por aí vai. Bolsonaro é um atavismo mobilizado para atuar em nome da destruição, um capitão do mato na pós-modernidade. Daí os traços de personagem de pornochanchada. Mas aqui talvez surja, se não a resposta para a tragicomédia bolsonarista, ao menos um caminho e uma possibilidade. Bolsonaro é escrachado, bisonho e trapalhão, atuou como personagem de comédia erótica, suas negociatas e destruições aparecerão cada vez mais quando ele estiver fora do governo, e não houver uma tropa de choque institucional com força para protegê-lo. Será uma possibilidade. Se a sociedade brasileira não passar o atavismo moralista e destrutivo a limpo, a Bozochanchada vai se repetir atualizada e piorada.

Bolsonaro destruiu o que pôde, inclusive vidas foram ceifadas antes e, principalmente, durante a pandemia de Covid-19. O que vai se fazer com ele fora do poder? Aceitar tudo como se não tivesse acontecido nada? Como se fosse uma sessão de pornochanchada? Como se tivesse sido uma brincadeira ou algo inevitável? Como se fosse um desvio perdoável? Esquecer com um grande acordo, à moda brasileira?

Imediatamente após a vitória de Lula, muita gente vestiu camisa vermelha e se manifestou contra Bolsonaro, o “assassino genocida” que governou o Brasil. Não eram só petistas e lulistas, nem eram apenas pessoas com ilusões no novo governo, era um sentimento entalado e desesperado (que não espera muita coisa de Lula e do PT, mas que quer se livrar definitivamente da tragicomédia bolsonarista). É essa energia que precisa ser fortalecida, sustentada e mobilizada para passar a Bozochanchada a limpo. É isso ou será um grande problema. Se a sociedade brasileira não enfrentar seus atavismos, outros personagens de pornochanchada serão mobilizados para promover a destruição. A chance é agora. O tempo é escasso. Se não, amanhã será pior!

4 COMENTÁRIOS

  1. Porque razão tenho de me esforçar para passar a Bozochanchada a limpo,por que não por minha energia pra superar essa esquerda de baixo impacto,uma extrema esquerda que vive puramente na virtualidade e narrativas que só causam bocejos?
    Não é melhor construir rupturas ao invés de revisitar velhos e novos cadáveres Jan?

  2. Cara Nina, tenho dúvidas. Bolsonaro é um cadáver? É possível construir rupturas sem passar o bolsonarismo a limpo? É possível separar uma coisa da outra?

  3. Jan…recorte interessante este que fizeste. Não exatamente um “recorte”, uma vez que é uma leitura das linhas gerais do bolsonarismo. Mas captura uma linha geral das expressões básicas sob as quais se ajuntam os componentes do fenômeno. Para qualquer um que acompanha mais de perto as páginas políticas dos noticiários, a política na alcova não é novidade. Mas, se o bolsonarismo foi transparente e escancarou as portas do lupanar, como você percebeu ao expor que “…personagens como Bolsonaro ocuparam o horário nobre e escancararam o que, nas pornochanchadas, pareciam ser possibilidades limitadas e residuais da sociedade brasileira. Bolsonaro atravessou a fronteira que os personagens das comédias eróticas se limitaram a tangenciar”, conseguiu a proeza de fazê-lo sob um discurso conservador. As prevaricações da incontinente ex-primeira dama – se não quisermos esquecer as insinuações pedófilas do “imbrochável” capitão – invocam incontinenti Nelson Rodrigues, que disse que não existe família sem adúltera. Essa transparência encoberta do bolsonarismo eleva um dos memes viralizados durante seu governo à condição de dístico nacional inscrito na bandeira pátria: corno acima de tudo, manso acima de todos.

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