Por Juliana Antunes
Compreender aquilo que o presente texto se dispõe a discutir, referente à dimensão simbólica existente nos atos fascistas desencadeados em Brasília (DF) no dia 08/01/2023 requer, em um primeiro momento, o esforço acerca da realização de uma análise do contexto que abraça os atos de caráter golpista desencadeados no Brasil.
As articulações que compõem esse todo, desembocando em um ataque indimensionável à Praça dos Três Poderes no Brasil, têm seus passos marcados em um recorte temporal de vários anos. Isso porque a constituição de uma base bolsonarista não se realiza especificamente em 2022 ou 2018; depreender a organização desse grupo requer visualizar uma série de aspectos de ordem política, econômica, social e cultural.
Todavia, no intuito de estabelecer aqui uma análise que não se torne um tanto quanto jocosa, é interessante pensar, nesse primeiro momento, apenas no que tange ao recorte estabelecido entre 2022 e 2023, diante da crise desencadeada no período eleitoral polarizado no país. Por ora, no que se refere à consolidação da base golpista brasileira, é suficiente afirmar que esta não se esgota na imagem de Jair Bolsonaro (PL). As camadas referentes à extrema-direita brasileira vão além de sua imagem, sendo atreladas a um caráter mais profundo, totalitarista e contrário ao Estado democrático de direito.
Porém, retornando à linha argumentativa aqui proposta, pensar no que diz respeito aos antecessores à invasão à Praça dos Três Poderes diz respeito a se pensar no contexto referente aos meses que antecederam as eleições presidenciais de 2022, mas sobretudo nas semanas que antecederam o seu segundo turno.
Nos meses que antecederam o primeiro turno presidencial, dado que as pesquisas referentes à intenção de voto já demonstravam quase que hegemonicamente um cenário de derrota de Jair Bolsonaro [1] seus eleitores — os quais, reafirmo aqui, não são compostos apenas essencialmente por bolsonaristas, mas também por toda uma massa de sujeitos que vislumbra na imagem de Bolsonaro uma áurea de rompimento com o establishment responsável por lhe trazer um aquecimento no peito, ainda que o candidato não fosse o reflexo perfeito de suas convicções — apontavam de modo praticamente unânime para uma suposta “fraude”, responsável pelo favorecimento de Luís Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições.
Essa performance referente à criação constante de uma espécie de “realidade paralela” é algo que se encontra constantemente em voga no âmbito da extrema-direita brasileira. Mais ainda, para além dessa realidade paralela, acredita-se de modo ferrenho em uma suposta perseguição constante às “pessoas de bem”, representadas pelo seu grupo político. Com isso, sistematicamente se criam cenários onde os “patriotas são perseguidos em prol da instauração de uma ditadura comunista no país”. Com isso, ações que tenham o intuito de estabelecer um rompimento em relação a isso, independente de quão radicais possam vir a ser, se tornam úteis e bem-vindas.
Uma prova dessa tendência à radicalização em prol do alcance de seus objetivos se insere na própria recepção do grupo ao atentado promovido pelo ex-deputado federal Roberto Jefferson em 2022, quando este, ao desrespeitar uma ordem de prisão promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), atacou dois policiais com tiros de fuzil e granadas [2]. Na ocasião em questão, houve um fulgor em grupos compostos por indivíduos extremistas em aplicativos para troca de mensagens em prol de uma defesa não apenas à ação do mesmo, mas também favoráveis à organização de uma resistência armada que viesse a defender o ex-parlamentar.
Isso demonstra, por sua vez, que uma tendência à radicalização desses grupos já era provável. Quando o resultado eleitoral do segundo turno presidencial aponta para a derrota de Jair Bolsonaro, os diálogos de radicalização se intensificam, de maneira que, horas após a apuração dos votos, rodovias brasileiras se encontravam tomadas em prol de uma intervenção militar no Brasil. Foi nesse momento que se tornou ainda mais claro que o dito “bolsonarismo” — ou simplesmente a extrema-direita brasileira — independe da figura de Bolsonaro.
A reivindicação de uma intervenção das Forças Armadas Brasileiras, com base na leitura golpista do Art. 142 da Constituição Federal, se mesclava às narrativas de que as urnas eletrônicas eram fraudulentas e complacentes a uma imaginária ditadura do Supremo Tribunal Federal (STF). A partir do momento em que a Polícia Federal brasileira passa a atuar na realização de desbloqueios das rodovias brasileiras, estas se tornam “inimigas dos patriotas”, além de que as manifestações estabelecem uma migração rumo às portas de quartéis militares em diferentes estados.
O silêncio de Bolsonaro, a posse de Lula, os comentários dos meios de comunicação em repúdio às ações dos manifestantes e de diversos personagens institucionais da extrema-direita em favor de uma construção dos atos apenas por vias legais, atuaram enquanto a última gota d’água para uma maior radicalização desse movimento.
É assim que, no dia 08 de Janeiro de 2023, milhares de pessoas invadem o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Com camisetas da seleção brasileira de futebol, bandeiras do Brasil penduradas às costas, palavras de ordem contra o atual governo e contra o ministro Alexandre de Moraes, esse grupo de pessoas destrói as vidraças dos prédios e transforma seu interior no cenário de um pesadelo.
Movimentos de caráter supraclassista dependem de símbolos para seu funcionamento [3]; isso porque são esses símbolos que permitem uma sensação de identificação das massas às suas propostas, cedendo-lhes um sentimento de representação de seus anseios a partir das pautas estabelecidas. Mas, simultaneamente, é quando a política passa a ter um formato estético que abrem-se portas para o fascismo e/ou para a guerra [4].
A extrema-direita brasileira possui uma estética que a acompanha. O fulgor religioso, a presença constante de terços, Bíblias, canções, pregações em seus atos; o nacionalismo exacerbado, representado pelo emprego do vulgo constante de “patriotas”, o uso de hinos brasileiros em todas as possibilidades, a utilização de vestes que remetam ao Brasil — sejam estas baseadas no caráter militar, em palavras de ordem em prol da suposta “libertação do país”, ou simplesmente camisetas da seleção brasileira — são apenas algumas das exemplificações mais evidentes de como a política se tornou uma estética em tal movimento.
As ações de caráter terrorista que se deram na Praça dos Três Poderes no dia 08 de Janeiro de 2023 não foram despidas do caráter simbólico. Vislumbrando aquilo que foi destruído pelos golpistas é possível a elaboração de uma lista que compreende os seguintes itens: as cadeiras dos ministros do STF; as portas do armário onde se guarda as togas de Alexandre de Moraes; objetos diversos da sala de Janja da Silva (primeira-dama do país); vidraças do STF; janelas do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF; galeria dos presidentes da república; presentes de autoridades estrangeiras; a escultura “A Justiça”; o busto de Rui Barbosa; o busto do abolicionista Joaquim Nabuco; o roubo de uma cópia da Constituição Federal, que estava exposta no Salão Branco da Suprema Corte e retirada do brasão da república do plenário do STF.
Além desses objetos, uma série de obras de arte que estavam presentes nos prédios, assinadas por autores aclamados como Sônia Ebling, Di Cavalcanti ou Bruno Giorgi também foram depredadas.
A ação dos golpistas chegou a ultrapassar o caráter de depredação, chegando também ao furto — constata-se que outras obras de arte como A Bailarina, escultura de Victor Brecheret, uma série de aparelhos eletrônicos e armas foram roubados — e à degradação natural — vídeos exibem manifestantes defecando e urinando no interior dos espaços invadidos, além de que jornalistas que estiveram nos arredores do mesmo relatam um forte odor de fezes e urina.
Assim, embora o caos pareça ter sido generalizado nas dimensões de Brasília no dia 08 de Janeiro, a escolha do local e de alguns dos objetos que foram depredados se demonstra galgada em uma estratégia simbólica. Grande parte das depredações, como é possível vislumbrar na lista anteriormente elaborada, foi acometida contra objetos, ou que pertenciam ao STF, ou que remetiam à imagem de Alexandre de Moraes, intitulados pelos golpistas enquanto ditadores e enquanto alguns de seus maiores inimigos. A própria depredação do busto de Rui Barbosa, para além disso, também se refere a esse ódio generalizado ao STF — posto que Barbosa foi o responsável pela implementação do modelo de STF em vigor na atualidade.
Outra exemplificação é referente ao próprio ataque à galeria dos ex-presidentes. Talvez em referência a uma reflexão que compartilhei em linhas anteriores, referente a uma sensação de esgotamento da extrema-direita em relação à política institucional, todos os quadros que exibiam fotografias de ex-presidentes foram quebrados, ao passo em que algumas fotos chegaram a ser rasgadas de maneira a causar uma ilusão de “decapitação” dos retratados.
Em suma, o que se visualiza é que a política no Brasil ultrapassou o caráter meramente institucional, apresentando-se enquanto paixão estética que se comporta de maneira a cegar as pessoas em prol de um objetivo comum de viés totalitarista. Os símbolos dispostos no interior dos movimentos da extrema-direita no país corroboram com a fixação de narrativas que corroboram à sua noção de existência em uma realidade totalmente ímpar àquela que nós, de fora de sua bolha, vivemos e enxergamos.
No passado, vimos as consequências de tal processo. Deixá-lo se repetir, de mãos ao alto, é ser conivente a tal barbárie.
Notas
[1] Ainda em 15 de Agosto de 2022 as pesquisas eleitorais já apontavam para um cenário onde Lula possuía 44% de intenção de voto, ao passo em que Bolsonaro possuía 32% (Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/pesquisa-eleitoral/noticia/2022/08/15/ipec-lula-tem-44percent-e-bolsonaro-32percent-no-1-turno-de-2022.ghtml>)
[2] Veja mais em: <https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/noticia/2022/10/23/roberto-jefferson-resiste-a-ordem-de-prisao-do-stf-e-fere-a-tiros-policiais-federais.ghtml>
[3] Veja mais em: Labirintos do fascismo: Fascismo como arte (João Bernardo. Editora Hedra, 2022).
[4] Walter Benjamin descrevia: “O fascismo vê a sua salvação no facto de permitir às massas que se exprimam mas, de modo nenhum, que exerçam os seus direitos. As massas têm direito a exigir uma alteração das relações de propriedade; o fascismo pretende dar-lhes expressão, conservando essas relações. Por conseguinte, o fascismo acaba por introduzir uma estetização na vida política. […] Todos os esforços para introduzir uma estética na política culminam num ponto: a guerra.” (O ensaio completo pode ser lido no seguinte link: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4179833/mod_resource/content/1/A%20OBRA%20DE%20ARTE%20NA%20ERA%20DE%20SUA%20REPRODUTIBILIDADE%20T%C3%89CNICA.pdf>).