Por Yuri

 

Oi, M., tudo bem?

Estou feliz que você vem no dia 30 ou 31 pra cá; vou passar uma semaninha no Rio, provavelmente do dia 12 ao 19 e então finalmente talvez possamos conversar sério. Acho que lembrei de você porque tinha uma notinha esquecida na Folha de São Paulo dizendo: “golpistas de Brasília seriam considerados terroristas na Alemanha”, e eu pensei algo como “grandes merda ser considerado ou não golpista na Alemanha”, um país que impede Achille Mbembe de falar; uma democracia tão vibrante e pluralista que teve a mesma bondosa chefe de estado durante, sei lá, vinte anos; um Estado policial onde fazer a multidão de coisas há de ser tipificado como “terrorismo”.

Vou logo ao centro dos acontecimentos, a meu ver, é bom lembrar que:

  1. Não existe Justiça no Brasil. Como você sabe, e eu sei, e todas as pessoas bem informadas tem acesso a uma farta documentação sobre isso, e as que não tem acesso a tanta informação sentem na pele etc., não existe no Brasil Justiça e nunca existiu. A rigor, para o bem ou para o mal, não existe Lei. Donde decorre que
  2. O Brasil é a terra do arbítrio e do assassinato. Onde está a punição para os mandantes e executantes do banho de sangue contra indivíduos mantidos sob custódia do Estado no Massacre do Carandiru em 1992? Nunca chegou — o brilhante Flávio Dino, o Dinossauro do Lula, até convidou um coronel do massacre para entrar do governo, no que foi impedido pelo que sobrou de não anestesiado na “opinião pública”; a gloriosa e privatizada multinacional Vale do Rio Doce assassinou 272 pessoas de uma tacada só em Brumadinho em 2019 — some com as 19 pessoas mortas em Mariana e veja quantas são — um crime humano! Antes, durante e além de ser a destruição ecológica mais chorada e divulgada que essas mortes. Pois é, este tipo ideal de terrorismo do capital que caiu sobre as pobres pessoas de Minas Gerais numa avalanche tóxica não se enquadra na nossa Lei de Terrorismo; provavelmente porque não foi intencional, afinal ninguém faz nada de propósito, são tudo acidentes; onde estão os playboys sofisticados que queimaram vivo o índio Galdino? Estão muito bem obrigado, em suas casas, com suas famílias e seus trabalhos — o juiz teve pena de colocá-los na prisão e estragar seus futuros ou algo assim etc.
  3. Esse arbítrio altamente discriminatório ficou basicamente maluco de cima a baixo em 2016. Prende o Lula, solta ao Lula é o exemplo máximo: sentar-levantar. A cada comando, a cada novo casuísmo, eles mudam a lei como um brinquedinho: Lula pode ser ministro, Lula não pode ser ministro. Crime de responsabilidade é isso, mas pode ser aquilo; cassa a chapa, não cassa a chapa: os exemplos são infinitos. Tudo são conchavos e a sacrossanta “Política”, palavra que os repressores de hoje tentam reabilitar como o suprassumo da vida humana, é isso: maquinações de poderosos que às vezes brigam entre si às vezes concordam, como estão concordando hoje. Esses poderosos manobram as massas para lá e para cá como torcidas uniformizadas que criam fotografias que engendram discursivamente um “povo” que servirá de justificativa para os próximos arbítrios. Esses exercícios fotográficos, de vestimenta e de caminhada são o que é autorizado e chamado no Brasil, pelo lado popular de direita e esquerda, de “Política”.
  4. No Brasil não existe Constituição, ela é rasgada e reescrita a todo momento e isso muito antes do golpe. Os Tribunais Supremos atuam a descoberto como lavanderias de interesses sujos e bolsas de apostas onde o poder dos políticos é testado, num sobe o desce como aqueles carrosséis de cavalinhos para crianças que eu nunca vi, exceto em filmes — também nunca vi o Supremo, local onde um bolsonarista abaixou as calças para cagar mas de onde já vinha (sempre virá?) um dilúvio de merda.
  5. Por tudo isso, é muito mais aceitável acreditar em Papai Noel do que em Lei nesse país, embora a televisão divulgue agora que o “império da lei” está restaurado no país, a volta dos que não foram, essa mesma televisão que criou todos os golpistas e extremistas, alimentando-os com seu discurso, agora se volta contra eles; nem um comichão num único músculo facial de um único desses repórteres, apresentadores e “comentaristas” denuncia o crime. São frios. Crime no sentido de filhadaputagem, cinismo, punhalada pelas costas e pela frente, não no sentido de Lei porque, enfim, não existe Lei etc. De tudo isso decorre que (colorário):

Minha opinião sobre a "Reação Democrática" aos acontecimentos de 08 de Janeiro: uma carta

Os bolsonaristas estão putos, e vão ficar mais putos. Os petistas de todos os partidos estão muito felizes. Assiste-se no país a uma orgia visual de vingança. Todo fodido quer ver alguém se foder. Há muita alucinação risível: enquanto os bolsonazis acham estar num “campo de concentração” dentro daquele galpão da Polícia Federal, a companheira Lula da Silva grava vídeos oportunistas com suas empregadas do Palácio, de quem supostamente gosta, para mostrar o sofrimento do povo ao recolher os vidros e simultaneamente como todos são bons seres que amam a pátria e odeiam a violência. Tirante esses aspectos ridículos, acho que a repressão está passando do ponto e vai se voltar contra nós direta ou indiretamente um dia. Diretamente porque essa orgia de aplauso ao aparelho de Estado fortalece um poder que recairá sobre nós, como popularidade e apoio do governo e como porrada na cabeça mesmo. O que me preocupa não é tanto o fortalecimento do “aparato repressivo” porque este sempre fez o que quis desde o começo ou, sei lá, desde 1964 pelo menos a cachorrada está solta e ninguém nunca recolocou a coleira, se coleira um dia houve.

Indiretamente pelo ressentimento gerado neles que os fortalecerá, principalmente se o PT com sua mania de lamber as botas de todos os senhores (a isso era chamado “conciliação”, “traição” ou “governabilidade” a depender da facção política de cada observador dessa Realpolitik) só pescar peixe pequeno. É o que estão fazendo até agora. Os alucinados recebem os “rigores da lei”: comem nuggets e reclamam que o banheiro está sujo. O democrata Jamil Chade acha que a prisão vai lhes ensinar “para que servem os direitos humanos”, no que eu acho que está muito errado. A prisão não ensina nada, não serve para nada, exceto para que. Claro, estou sendo injusto: a prisão ensina a humilhação e o desejo de vingança, especialmente quando se sabe que, aqui, toda a punição é um arbítrio, um capricho de um poder temporário. A associação de Advogados do Pau do Lula, vulgo grupo Prerrogativas, quer que 6 deputados federais não tomem posse. O que, com todos os deputados federais que já tivemos, sei lá, com o próprio Bolsonaro trinta anos lá falando farofa (pediu a cabeça do FHC na televisão em 1997 e ninguém fez nada) com o deputado do crime da motosserra (alguém se lembra?) o que em sã consciência significa cassar mandatos de deputados nesse momento se não dar razão ao ideograma deles: revanchismo. Com isso volto ao começo e encerro numa citação do velho poeta estruturalista que, noves fora, sabia das coisas e sabia amar, mais do que esses urubus empalhados a quem se diz “intelectuais” no petismo daqui. Cito:

“Prender alguém, mantê−lo na prisão, privá−lo de alimentação, de aquecimento, impedi−lo de sair, de fazer amor, etc., é a manifestação de poder mais delirante que se possa imaginar. Outro dia eu falava com uma mulher que esteve na prisão e ela dizia: ‘quando se pensa que eu, que tenho 40 anos, fui punida um dia na prisão, ficando a pão e água!’ O que impressiona nesta história é não apenas a puerilidade dos exercícios do poder, mas o cinismo com que ele se exerce como poder, da maneira mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Reduzir alguém a pão e água… isso são coisas que nos ensinam quando somos crianças. A prisão é o único lugar onde o poder pode se manifestar em estado puro em suas dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral. ‘Tenho razão em punir pois vocês sabem que é desonesto roubar, matar…’.”

Minha opinião sobre a "Reação Democrática" aos acontecimentos de 08 de Janeiro: uma carta

E você? Como estão as coisas na Alemanha? Imagino que iguais.

Com amor,

Y.

 

* * *

 

Salve Yuri,

Obrigado pelo texto! A mídia sendo a mídia, né? Com essa pegada ainda meio colonizada porque realmente exemplo de democracia a Alemanha não é exatamente… Por outro lado, essa situação no Brasil pode ser vista de maneira maquiavélica (no bom sentido) como uma forma de erradicar uma parte do bolsonarismo, de usar por uma vez o aparelho repressivo contra a direita. Enfim, por que não? A ver os próximos capítulos da novela…

Que bom que você vai estar esse período no rio! Vamos nos ver! Sabe em que bairro vai ficar? Vai pular o começo do carnaval?

Abração,

M.

Minha opinião sobre a "Reação Democrática" aos acontecimentos de 08 de Janeiro: uma carta

A imagem em destaque é da autoria de Edouard Manet (1832-1883). As imagens que ilustram o corpo do texto são da autoria, respectivamente, de Rembrandt (1606-1669), Vincent van Gogh (1853-1890) e Ilya Repin (1844-1930).

 

3 COMENTÁRIOS

  1. Boa lembrança do democrata Jamil e uma cartas. Que sujeito pretensioso e asqueroso.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here