Por João Bernardo
«Este é um livro interminável, por isso me permito apresentá-lo inacabado» — foi com estas palavras que iniciei a primeira edição do Labirintos do Fascismo (Porto: Afrontamento, 2003). Doze anos depois eu prevenia ainda o leitor: «Este é um livro interminável, e permanecerá tão inacabado como na primeira versão». Disse o mesmo em 2018: «Este é um livro interminável, e permanecerá tão inacabado como nas duas versões anteriores». Finalmente, na última e definitiva edição (São Paulo: Hedra, 2022) mantive o aviso: «Esta é uma obra interminável, e permanecerá tão inacabada como nas três versões anteriores».
Porém, entre todos os infindáveis percursos que eu poderia ter feito, não será estranha a quase ausência da América Latina? Mencionei Getúlio Vargas apenas duas vezes e só de passagem, embora fosse oportuna a comparação entre o Estado Novo português e o Estado Novo brasileiro como duas variantes do fascismo conservador. O próprio peronismo não fora sequer analisado na versão de 2003 e introduzi-o depois só porque me pareceu indispensável dissecar uma modalidade do fascismo que dera um peso especial aos sindicatos e também porque me interessou mostrar um tipo de articulação entre os quatro pólos do fascismo em que a incidência de cada um deles se sucedeu no tempo, só alcançando uma conjugação simultânea no plano ideológico, no justicialismo.
Essa circularidade na articulação entre os pólos do fascismo tornou muito durável o mito do peronismo, cada pessoa encontrando nele o que deseja e esquecendo o que não pretende ver. Mas, sendo assim, não deveria eu ter estudado a influência do peronismo em toda a América Latina? Parece estranho que me tivesse condenado a não usar esse campo privilegiado para a análise dos cruzamentos e convergências entre extrema-direita e extrema-esquerda que estão sempre na origem de qualquer modalidade de fascismo. Ainda hoje, e decerto amanhã, a esquerda latino-americana encontra a sua imagem em regimes que mais não são do que uma actualização do fascismo de Juan Perón e aplaude o peronismo sem o reconhecer como um dos rostos do fascismo. O problema é que não se trata só de influências ou reflexos, pois na América de língua espanhola as raízes do fascismo ultrapassam muito a Argentina, e foi este o obstáculo que me deteve.
Antes do 25 de Abril de 1974, estava eu no exílio em Paris, li na revista Política, publicada por jovens fascistas radicais portugueses, um artigo que descrevia com apreço a situação na Bolívia sob a presidência de Paz Estenssoro. Já naquela época eu me interessava pelo estudo do fascismo, nunca deixei de me interessar, particularmente nas versões radicais, em que os temas da esquerda deixam sinais visíveis, e as páginas da Política traçavam um retrato fascinante da experiência boliviana, imbricando-se esquerda e direita numa promiscuidade com que até então eu nunca havia deparado. Já não tenho a revista, decerto a deixei para trás em qualquer das várias mudanças de país, mas recordei o assunto enquanto prosseguia as pesquisas necessárias para escrever e reescrever o Labirintos.
Na primeira metade da década de 1940 dois partidos se destacaram na Bolívia, o Partido de la Izquierda Revolucionaria (PIR), marxista de orientação pró-soviética, e o Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), fundado e dirigido por Víctor Paz Estenssoro. As simpatias do MNR pelo fascismo, justificadas pela oposição ao imperialismo americano, confirmaram-se em 1943, quando colaborou com a organização militar secreta Razón de Patria para derrubar o governo civil e instaurar um novo governo, em que Paz Estenssoro ocupou a pasta da Fazenda. O MNR era considerado fascista por ambos os extremos do leque político e neste contexto é significativo que tivesse começado a mobilizar o campesinato índio, reunindo-se em 1945 um Congresso Indígena. Foi pouco, mas não seria necessário mais para me deixar curioso, pois ter-se-ia então antecipado a situação instaurada naquele país na última década e meia? Bastaria esta possibilidade para merecer o percurso, que afinal não fiz.
Foi pouco, mas houve muito mais. O governo instaurado em 1943 foi violentamente derrubado três anos depois, e quando o candidato do MNR triunfou nas eleições presidenciais de 1951 o exército interveio e formou uma junta governativa. O MNR começou então a preparar o seu regresso, separou-se da ala explicitamente fascista e procurou o apoio sindical, especialmente do sindicato dos mineiros, dirigido por Juan Lechín, um simpatizante do trotskismo que contava com a adesão dos trotskistas reunidos no Partido Obrero Revolucionario (POR), fundado no final de 1935. Ora, durante a segunda guerra mundial os marxistas pró-soviéticos tinham defendido a moderação nas lutas dos mineiros, para que não surgissem problemas com o fornecimento de matérias-primas aos Aliados, e como os trabalhadores não estavam dispostos a pagar a factura, houve muitos a abandonar o PIR em benefício do POR. Se o MNR pretendia uma base operária activa, era entre os mineiros que poderia encontrá-la, com Lechín na sua órbita e o POR como apoiante exterior. Foi neste quadro que se preparou a revolução de Abril de 1952.
Essa revolução triunfou graças aos mineiros que, chefiados por Lechín, pegaram em armas e invadiram a capital. Não foi um simples golpe, como tem havido muitos nesse país, porque nas ruas ficaram seiscentos mortos e, sobretudo, porque se operou uma reorganização política, social e económica sem precedentes. Antes de mais, o exército, que se opusera à revolução, foi dissolvido e substituído por milícias camponesas e operárias, organizadas pela Central Obrera Boliviana (COB), cujo secretário-executivo era Lechín. Na realidade essas milícias agiam como uma força armada à disposição do MNR, e era Paz Estenssoro quem controlava o governo. Para garantir uma mobilização durável dos trabalhadores foram nacionalizadas as três grandes companhias mineiras e encarregou-se da sua gestão um novo organismo público; realizou-se uma profunda reforma agrária, dissolvendo-se os latifúndios, o que libertou da servidão o campesinato indígena; e promoveu-se a organização política dos índios, concedendo-lhes o direito de voto e convertendo-os numa base de apoio governamental. Lechín, inspirado pela vulgata trotskista, apresentava este regime como um duplo poder, os trabalhadores ao lado da burguesia. Nem todos os trotskistas, porém, aceitaram essa visão benévola e em 1954 ocorreu uma cisão no POR, demasiado minúscula para pôr em perigo o governo.
Chegado a este ponto de um percurso que não fiz, mas imagino agora, e lembrando-me do artigo que lera na Política, eu averiguaria como se reorganizou o fascismo no MNR, que foi o centro da revolução de Abril de 1952. Este Movimento fora fundado em 1941, quando a hostilidade ao predomínio dos Estados Unidos, entendida como anti-imperialismo, podia legitimar-se com a invocação do fascismo. Mas entretanto os tempos haviam mudado, o Eixo fora derrotado e já não era vantajoso um governo reivindicar explicitamente o fascismo, para mais no continente americano. Eu detectaria o fascismo do MNR antes de tudo no seu nacionalismo submetido à tutela do Estado. Em seguida, encontrá-lo-ia na articulação deste nacionalismo estatal com a central sindical ou, mais exactamente, na manipulação dos sindicatos, reforçada pela conjugação entre sindicatos e milícias armadas.
E, como num espelho, formava-se o reflexo inverso. O MNR vira-se na necessidade de prescindir da invocação do fascismo e para isso tinha de eliminar os fascistas notórios. A Falange Socialista Boliviana, fundada em 1937, era o partido propriamente fascista, e a sua oposição à elite oligárquica tradicional aproximou-a do MNR, a ponto de ser convidada para se juntar à coligação que fez a revolução de 1952, mas retraiu-se no último momento e converteu-se a partir de então no principal opositor ao governo saído da revolução. Aquela síntese fascista formada à revelia do partido especificamente fascista lembra o que sucedeu na Birmânia, onde o fascismo se constituiu independentemente do partido fascista de U Saw e por fim contra ele. A Falange pagou caro, porque os seus dirigentes e militantes foram os mais numerosos a povoar os vários campos de concentração que o governo do MNR estabelecera, onde tiveram por companheiros militantes e dirigentes do antigo PIR, que em 1950 se dissolvera para se transformar no Partido Comunista da Bolívia. E assim os fascistas clássicos e os comunistas ortodoxos eram, de um lado e outro, as vítimas dos dois extremos que se haviam conjugado no fascismo radical do MNR.
Aqui eu faria uma pequena digressão, recordando a estadia de Ernst Röhm na Bolívia desde 1928 até 1930, durante o período em que estivera afastado do comando das SA. Ora, parece que Röhm exercera uma considerável influência sobre Germán Busch Becerra, que depois de ter combatido na guerra do Chaco se tornara presidente em 1937 e se declarara ditador dois anos depois, para em breve morrer, por suicídio segundo uns, dizem outros que assassinado. O importante neste caso é que a memória de Germán Busch e das leis por ele promulgadas influenciaria a revolução de Abril de 1952, traçando uma linha de continuidade entre a ala radical e social do nacional-socialismo germânico e o fascismo boliviano. Depois desta deambulação, eu regressaria ao percurso principal.
A articulação do nacionalismo estatal do MNR com os sindicatos da COB e as milícias constituiu apenas o eixo endógeno do fascismo, em boa medida gerado no próprio processo que levara à revolução de 1952, e se este eixo basta para caracterizar um movimento, ele é insuficiente para sustentar um regime. Assim, o governo emanado da revolução concentrou-se no fortalecimento do eixo conservador, exógeno, procedendo simultaneamente a reformas sociais e económicas que atenuaram ou mesmo suspenderam o radicalismo inicial. Seria aqui necessário superar uma lacuna e averiguar o papel desempenhado por um dos pólos do eixo conservador, a Igreja. Mas de 1956 em diante uma das funções dos governos hegemonizados pelo MNR foi a consolidação do outro pólo deste eixo, reconstituindo as forças armadas, que as milícias haviam substituído. Ora, essa deslocação da incidência dos eixos do fascismo, se por um lado aumentou a clivagem interna do regime e agravou o dissídio entre Paz Estenssoro e Lechín, que fundou o Partido Revolucionario de la Izquierda Nacionalista, onde acolheu muitos trotskistas saídos do POR, por outro lado fez com que ambos evoluíssem para posições cada vez mais moderadas.
O fim de tudo isto foi ignóbil, porque em 1964 Paz Estenssoro candidatou-se à presidência da República apresentando como vice-presidente o general René Barrientos, comandante da Força Aérea, mas em Novembro desse ano Barrientos e o comandante do Exército efectuaram um golpe e o MNR foi expulso do poder. Lechín imaginou então que havia chegado o momento da desforra e apoiou Barrientos, só para poucas semanas depois ser preso e exilado, ficando os militares a governar praticamente sem interrupção até 1982. Pois mesmo nesta situação, quando em 1971 o general Hugo Banzer instaurou uma feroz ditadura, o MNR apoiou-o e Paz Estenssoro foi nomeado conselheiro do governo, até que em 1974 Banzer rompeu com o MNR e com a Falange, que também lhe dera apoio.
Se o eixo endógeno do fascismo boliviano fora demasiado radical para assegurar sozinho a sobrevivência do regime, o eixo exógeno mostrou-se demasiado conservador para lhe garantir a continuidade. Esta articulação dos dois eixos operada em sucessão e não simultaneamente lembra o sucedido no fascismo argentino, e Perón veria a sua imagem, ou o seu reflexo, na esquizofrenia siamesa formada pelo duo Juan Lechín / Paz Estenssoro.
Se eu tivesse podido limitar-me a dar corpo e substância às peripécias que agora esbocei em linhas muito sumárias, o Labirintos apresentaria mais uma variante do fascismo e a obra cresceria uma dezena e meia de páginas. Nada de dramático. Mas compreendi então que para analisar o processo revolucionário de Abril de 1952 e a reorganização política subsequente teria de recuar até às três guerras fatídicas que a Bolívia travou, primeiro contra o Chile em 1879-1884, depois contra o Brasil em 1899-1903, finalmente a guerra contra o Paraguai em 1932-1935. Note-se a amplidão do arco cronológico, desde pouco depois da Comuna de Paris até às vésperas da guerra civil em Espanha. Três guerras, três derrotas esmagadoras.
Na guerra contra o Chile, a Bolívia aliou-se ao Peru para manter a soberania sobre uma área da costa do Oceano Pacífico rica em salitre e em guano. Não há motivo para nos espantarmos com o facto de homens se trucidarem durante cinco anos pela posse de fezes de pássaros e morcegos, pois eram um fertilizante muito cobiçado e já os Estados Unidos, cumprindo o seu manifest destiny, haviam iniciado a expansão no Pacífico com a ocupação de algumas ilhas cobertas de guano. Como observei no Labirintos (Hedra, vol. 4, pág. 329), «as grandes ambições podem começar pelos excrementos». Eram deploráveis as condições económicas e militares nos três países que se envolveram em guerra, mas as do Chile pareciam talvez menos más do que as da aliança boliviano-peruana, embora as condições logísticas fossem péssimas para todos. O conflito lançou a economia do Peru no caos e obrigou a perdas territoriais, além de levar a uma desagregação da elite e do aparelho político, forçando o país a assinar a paz em Outubro de 1883. Por seu lado, a Bolívia suspendeu as hostilidades no ano seguinte, completamente derrotada, sem guano nem acesso ao mar.
A guerra que a Bolívia prosseguiu contra o Brasil em 1899-1903 foi, se possível, mais desoladora ainda. Estava em causa a soberania sobre o Acre, rico em árvores-da-borracha, ou cauchu. Batendo-se num território remoto e com precárias condições logísticas, a Bolívia enfrentou não só o Brasil, mas também algumas breves tentativas separatistas e um autonomismo rudimentar da parte de ocupantes que pretendiam manter-se alheios a qualquer lei. Quando iniciou a primeira campanha a Bolívia acabara de ser dilacerada por uma guerra civil, e a instabilidade política ressurgiu esporadicamente ao longo do conflito. No final da segunda campanha, em 1903, a Bolívia reconheceu a derrota, aceitou a desmobilização das suas tropas e assinou um tratado de paz em que cedeu aos brasileiros o território do Acre. Com esta guerra lastimável, a Bolívia perdeu aproximadamente 190.000 km², que se somaram aos pouco mais de 164.000 km2 que havia já concedido ao Brasil num tratado assinado em 1867.
Três décadas depois, em 1932-1935, a Bolívia envolveu-se numa guerra contra o Paraguai pelo controle da região norte do Grande Chaco, onde se supunha então que existisse petróleo, além de este território possibilitar uma saída fluvial para o Oceano Atlântico. A derrota boliviana foi tanto mais surpreendente quanto a população paraguaia equivalia a menos de metade da população boliviana, e além disto o Paraguai saíra trucidado da guerra que desde o final de 1864 até ao começo de 1870 travara contra a Tríplice Aliança, composta pelo Brasil, a Argentina e o Uruguai, em que sofrera enormes baixas humanas. Mas, se a Bolívia acabou vencida, o Paraguai obteve uma vitória de Pirro porque, apesar de ter aumentado muito a sua superfície territorial, as economias de ambos os países ficaram à beira do colapso; e se a Bolívia perdeu cerca de 2% da população, o conflito custou ao Paraguai cerca de 3% da população.
De 1831 até 1938, em cem anos de guerras e caos político, passando por mais de quarenta governos e quase duzentas tentativas de golpe de Estado, a Bolívia perdeu mais de metade do território. As humilhações militares provocaram um ressentimento generalizado e uma reacção nacionalista, atitudes propícias à gestação do fascismo, tanto mais que aquelas aspirações geográficas eram consideradas indispensáveis ao desenvolvimento económico do país e a afirmação nacionalista se apresentava como um anti-imperialismo. Mas foi sobretudo a derrota no Chaco que assumiu as dimensões de catástrofe nacional e exerceu um efeito considerável sobre a sociedade e a cultura bolivianas, numa época em que o país começara a modernizar-se e a noção de cidadania abarcava já camadas sociais vastas. A historiografia parece unânime ao apontar uma linha de evolução que levou da derrota na guerra com o Paraguai até à revolução de Abril de 1952.
Foi precisamente aqui que comecei a hesitar, quando verifiquei que a análise da variante boliviana do fascismo me obrigaria ao estudo, necessariamente longo, de três guerras desoladoras. Mas não pretendi apenas esquivar-me a um trabalho fastidioso. É que o percurso pela Bolívia ter-me-ia levado a investigar o papel do Peru naquele contexto. Na época colonial a Bolívia era conhecida como Alto Peru, e foi nos complicados jogos de poder com José de San Martín que Simón Bolívar, cujo controle sobre o Peru estava em risco, concedeu a independência ao Alto Peru em Fevereiro de 1826, passando o novo país, em sua homenagem, a chamar-se Bolívia. Depois, o general Andrés de Santa Cruz esforçou-se por confederar os dois países no período de 1836 até 1839, mas em Janeiro de 1839, na batalha de Yungay, este projecto ficou frustrado. O estudo do Peru afigurou-se-me, então, tanto mais necessário à compreensão da situação boliviana quanto o Peru participara na guerra contra o Chile e se interessara também pelo Acre. Ora, a inclusão desse país não tornaria o percurso demasiado extenso e moroso?
A passagem pelo Peru colocaria obrigatoriamente em destaque a Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA), que durante quase um século ocupou um lugar incontornável na vida política daquele país. Fundada em 1924 por Victor Raúl Haya de la Torre, a APRA foi originariamente uma organização marxista, embora não comunista. No início a APRA não era nacionalista, pois Haya de la Torre defendia o ideal bolivariano da união dos Estados latino-americanos, mas rapidamente limitou o seu escopo ao Peru e em 1930 converteu-se no Partido Aprista Peruano. Os apristas reivindicavam a nacionalização das terras e das indústrias e defendiam, num plano estritamente político, os interesses dos índios. A minha hipótese inicial de trabalho, nesta deambulação peruana de um percurso que não fiz, consistiria em procurar ao redor do Partido Aprista os traços de fascismo. Por um lado, o aprismo ditava uma grande parte dos temas ideológicos em jogo na vida política do país e, por outro lado, essa vida política parecia ter como principal objectivo impedir a chegada do Partido Aprista ao governo. E assim este partido foi duplamente condicionado na sua evolução, perdendo a especificidade ideológica quando os adversários formulavam reivindicações semelhantes às suas e suavizando o radicalismo prático em troca de sucessivas promessas de legalização ou de partilha do poder.
Durante a depressão económica mundial da década de 1930, igualmente padecida no Peru, um movimento insurreccional assegurou aos apristas popularidade e apoio, mas sucessivos pronunciamentos militares e ditaduras impediram-nos de chegar ao poder e por vezes prenderam-nos e mataram-nos. Terminada a segunda guerra mundial, porém, os governantes e a oligarquia chegaram a um compromisso com o Partido Aprista, aceitando a sua legalização e instaurando a liberdade de imprensa e de associação, enquanto, por seu lado, os apristas se comprometeram a apoiar uma candidatura presidencial moderada, que triunfou nas urnas. Mas como o Partido Aprista havia obtido a maioria absoluta na Câmara de Deputados e constituía o grupo mais numeroso no Senado, tentou impor a sua agenda ao governo, estimulando para isso a agitação universitária e as greves, já que os sindicatos eram maioritariamente apristas. Ao mesmo tempo, as forças conservadoras opunham-se às reformas projectadas pelo governo, o que agravou o caos. Foi nestas circunstâncias que o Partido Aprista enfrentou uma coligação de todos os rivais, tanto de direita como de esquerda, entre os quais se contavam os comunistas. Este ciclo encerrou-se com o pronunciamento de Outubro de 1948, impondo um regime militar que durou oito anos.
Apesar de proibido, o aprismo continuou a beneficiar de um grande apoio popular durante a ditadura e um novo ciclo político iniciou-se em 1956, quando as negociações entre o Partido Aprista, o governo e a direita tradicional conduziram à legalização daquele partido, que em troca aceitou atenuar as reivindicações, o que haveria de levar à saída dos seus militantes de esquerda e depois à fundação do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). Entretanto foi eleito um presidente apoiado pelos apristas, e seis anos mais tarde, em 1962, efectuaram-se novas eleições. Os principais candidatos, Haya de la Torre e Fernando Belaúnde Terry, apresentavam programas populistas e pretendiam incorporar os indígenas na vida nacional. O Partido Aprista obteve os melhores resultados no norte do país e entre os trabalhadores sindicalizados, sobretudo os da cana-de-açúcar, e Fernando Belaúnde triunfou na capital e nas regiões mais modernizadas, mas também no Sul, apesar de ser a região mais rural e arcaica. Haya de la Torre conseguiu uma percentagem de votos um pouco superior à de Belaúnde, embora não o suficiente para ser eleito imediatamente, e chegou a um acordo com outro candidato que atribuiria a vice-presidência a um aprista. Porém, Belaúnde e os militares, apoiados pelos sectores mais conservadores, impediram a efectivação desse acordo e o exército tomou o poder, para no ano seguinte se realizar um novo sufrágio. Como seria de esperar, Belaúnde foi eleito presidente.
Belaúnde obtinha apoios ao mesmo tempo à esquerda e à direita do Partido Aprista. Ele era bastante mais radical do que os apristas quanto à reforma agrária, era hostil ao capital estrangeiro e crítico da liberdade de mercados, o que lhe valia uma certa simpatia dos castristas e dos comunistas pró-soviéticos; mas, como atacava o Partido Aprista, era igualmente bem-visto pelos conservadores. Ao ultrapassar pela esquerda os apristas e ao ultrapassá-los pela direita também, não estaria Belaúnde a encetar a gestação de um fascismo? Seria nesta perspectiva que eu iniciaria a minha deambulação pelo Peru, só depois evocando as décadas anteriores como background do momento culminante de 1962 e 1963. Em seguida regressaria a 1963 e acompanharia o governo de Belaúnde que, sem dispor de maioria parlamentar e perante uma crise económica acelerada pelas medidas que acabara de tomar, enfrentava, por um lado, a oposição do Partido Aprista associado à direita conservadora e, por outro lado, a oposição da extrema-esquerda, incluindo trotskistas e guerrilhas guevaristas. Nestas circunstâncias, um grupo de jovens oficiais nacionalistas defendia a necessidade de realizar reformas antes que a situação se deteriorasse e, sob a chefia do general Juan Velasco Alvarado, apoderou-se do poder em 1968.
O governo de Velasco Alvarado propunha a nacionalização de empresas estrangeiras e previa a distribuição das suas acções aos trabalhadores até que eles controlassem 51% do capital, propondo igualmente uma ampla reforma agrária que integraria os camponeses índios e transformaria os latifúndios em unidades cooperativas ou em sociedades de interesse social. O governo pretendia ainda proceder a uma reforma do ensino e alfabetizar a população, assumindo também o Estado o controle dos grandes órgãos de informação. Na política externa reconheceu os governos de Cuba e da República Popular da China e adoptou uma postura activa no grupo dos não-alinhados e, mesmo que não houvesse tudo o mais, bastaria isto para gozar do apoio praticamente incondicional do Partido Comunista Peruano. Nesse percurso imaginário eu pararia aqui, deixando o projecto de Velasco Alvarado em suspenso, sem lhe analisar o declínio suscitado pela deterioração da situação económica, com a consequente radicalização da esquerda, incluindo o Partido Comunista e a central sindical, o que levou os próprios militares a efectuarem um golpe em 1975 e a substituirem Velasco Alvarado por outro general. O novo governo regressou à ortodoxia económica e apelou para o capital estrangeiro e, na política externa, aproximou-se dos Estados Unidos. A agitação social cresceu, com seis greves gerais no período de 1977 a 1979, mas a minha digressão terminaria em 1975, porque seria à luz da experiência de Belaúnde que eu analisaria o projecto de Velasco Alvarado, não para encontrar nele qualquer indício de fascismo, porque não me parece ter havido nenhum, mas para iluminar a posteriori o governo de Belaúnde. Aliás, embora os apoiantes de Belaúnde, tal como os apristas, se opusessem ao regime de Velasco Alvarado por ter emanado de um golpe militar, dificilmente poderiam discordar de medidas que eles mesmos defendiam e nunca haviam conseguido implementar. Assim, a digressão pelo Peru exigiria longas circunvoluções.
Exigi-las-ia mais ainda porque, como o peruano José Carlos Mariátegui inaugurou uma linha de pensamento marxista que ainda hoje tem repercussão em toda a América do Sul, eu encontraria ali uma oportunidade para ampliar a análise das encruzilhadas políticas e ideológicas que de maneira ampla classifiquei como nacional-bolchevismo. Neste caso seria um indígeno-bolchevismo, um etno-bolchevismo que esclareceria não só o século passado, mas até os dias de hoje ou mesmo de amanhã, porque Pedro Castillo foi eleito presidente em Julho de 2021 proposto pelo partido Perú Libre, que a si mesmo se define como marxista-leninista-mariateguista. Rapidamente Castillo se distanciou deste partido para se lançar numa busca acelerada de apoios sem outro critério além da utilidade imediata, com uma rotação de mais de quatro e meio ministros por mês, que afinal lhe precipitou um estrondoso fim político em Dezembro de 2022 e deixou o país num caos sangrento. Durante o ano e meio do seu mandato, porém, destaca-se o facto de ele ter apressado a saída de prisão do fascista Antauro Humala, chefe do Movimiento Etnocacerista, uma libertação aplaudida por Vladimir Cerrón, fundador e dirigente do Perú Libre. Com efeito, os seguidores de Antauro Humala haviam apoiado Castillo na segunda volta das eleições de 2021. O aparente ziguezague tem raízes profundas, porque o etnocacerismo é uma ideologia racialista, ou mesmo francamente racista, baseada numa referência mítica aos Incas, e defende um nacionalismo étnico, propondo como figuras inspiradoras o general Andrés Avelino Cáceres, que lutou na guerra contra o Chile, e o general Velasco Alvarado. Esta convergência de extrema-esquerda com extrema-direita numa plataforma etno-racial resulta, por sua vez, de outra convergência, já que Isaac Humala, pai de Antauro e fundador do etnocacerismo em 1989, havia militado no Partido Comunista Peruano e depois no MIR, antes de formular o seu socialismo racial. Os desdobramentos são infindáveis.
Depois das circunvoluções desta longa digressão, voltaria ao ponto de partida para constatar que foi sobre uma rede cujas malhas abarcaram vários países da América Latina que se repercutiram as influências do peronismo. Se eu tivesse ampliado assim o Labirintos teria podido analisar cruzamentos e interferências que matizaram o fascismo sul-americano, porque seria mais fácil entender o marxismo específico deste continente em que, de uma forma ou de outra, o nacional-desenvolvimentismo usa o argumento anti-imperialista para reforçar as credenciais nacionalistas, deixando aberta a possibilidade de uma convergência com a extrema-direita, geradora de novas formas de fascismo. O caleidoscópio ficaria mais subtil. Basta pensar que se compreenderia melhor a influência que as ideias do principal mestre do corporativismo fascista, Mihail Manoilescu, tiveram sobre Raúl Prebisch e a formação da CEPAL e, por aí, sobre o nacional-desenvolvimentismo e sobre o marxismo latino-americano. E também me seria possível tecer uma rede mais estreita entre os fascismos clássicos e os fascismos do pós-fascismo que proliferam no Terceiro Mundo, hoje crismado de Sul Global.
Por que motivo, então, não segui o percurso que agora esbocei?
Seria um trabalho enorme se medido em esforço e em número de páginas, demasiado ambicioso para uma obra que cada vez ficava mais volumosa, e sobretudo exigindo muito tempo, quando já não tenho idade para me lançar em longas aventuras. Não sou Jacques Barzun, que aos oitenta e quatro anos começou a escrever um livro imenso, From Dawn to Decadence, uma jóia da historiografia. De qualquer modo, a minha justificação já estava apresentada, pois eu começara por prevenir que o Labirintos do Fascismo permaneceria sempre inacabado. E permanecerá.
As ilustrações reproduzem quadros do pintor boliviano Alfredo da Silva (1935-2020) e tapeçarias do artista tecelão peruano Máximo Laura (n. 1959).
Pode ler o segundo percurso aqui e aqui o terceiro percurso.
OXE!
Labirintos do Fascismo é uma obra aberta, segundo Zer0berto Eco.
From Dawn to Decadence
aqui: https://libgen.rs/book/index.php?md5=26EF363B9BEC7987926C930F9AB00AD5
Mariátegui certamente seria um capítulo à parte. Seu período vivendo na Itália, o contato com os sindicalistas revolucionários, sua relação com d’Annunzio. Está tudo lá em suas Cartas de Itália (https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/cartas_de_italia/index.htm).
Os sete ensaios vêm todos depois disso.
Deve estar havendo algum engano, Mariátegui era anfascista, eu vi no twitter. https://twitter.com/tsaeditora/status/1632863634857574401?s=20
O antifascismo é o pior produto do fascismo.
Antifascistas do mundo, uni-vos: sois a ala esquerda do kkkapital!
A aproximação entre o professor Nildo Ouriques (e o que ele vem defendendo há tempos) e a Nova Resistencia mostra mais uma vez os fios que se misturam nesse labirinto do fascismo.
https://www.youtube.com/live/6ox8wVOkecw?feature=share
Caro K,
Colocar o movimento operário ao serviço do nacionalismo — ou ao serviço de qualquer presumida identidade, racial ou sexual — é invariavelmente o mecanismo gerador do fascismo. É precisamente esta a função operativa do conceito de nação proletária, formulado ao mesmo tempo por Kita Ikki no Japão e Enrico Corradini em Itália. Desde então este processo não deixou de se repetir, arrastando figuras maiores e menores, de ambos os extremos políticos, no mesmo movimento de pêndulo. O fascismo já catalogado é o menos perigoso. Pior é o que nos nasce debaixo dos pés.