Por João Bernardo

O fascismo pretendia conciliar o inconciliável com o argumento de que superara ambos os termos, e esta proeza mental exigia a transposição da realidade para símbolos e mitos, ou seja, requeria a sua apresentação no plano estético. Tal como Walter Benjamin observou, o fascismo «tende naturalmente a uma estetização da vida política». Os fascistas sabiam-no melhor do que ninguém e reivindicaram-se disso. Após a vitória aliada e enquanto aguardava que o fuzilassem, Robert Brasillach definiu o fascismo como um mito estético e Pierre-Antoine Cousteau, sobrevivendo a uma condenação à morte que afinal fora comutada, pretendeu que «a estética está no campo fascista». Mais tarde alguns historiadores tiveram a mesma percepção. Joseph Billig, por exemplo, depois de escrever que «o nazismo é um artifício total», acrescentou que «a ficção flagrante aparenta-se a uma obra de arte», e para Zeev Sternhell «a síntese fascista significa que a estética se converteu numa parte integrante da política e da economia». Mas para quê alinhar citações? Basta recordar que os principais chefes fascistas se consideraram a si mesmos, antes de mais, como artistas e a sua política como arte.

Quando tratei esta questão no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022, vol. V) tentei ir um pouco mais longe e sublinhei que só no plano da estética o fascismo adquirira a coerência que lhe faltara em tudo o resto. Houve, sem dúvida, notáveis pintores fascistas, como houve notáveis escultores, notáveis arquitectos, notáveis escritores, notáveis músicos, mas não se trata de uma mera soma de casos individuais. O que me interessa aqui é uma concepção global da política enquanto forma estética, a compreensão de que o fascismo se apresentou a si mesmo como uma obra de arte, superior e suprema. A partir desta constatação eu teria podido reinterpretar outras épocas e outras sociedades, inspirando-me por exemplo numa passagem de Jacob Burckhardt, que atribuiu ao Renascimento italiano a criação de «um novo facto histórico» — «o Estado enquanto obra de arte». Este seria mais um dos percursos que não fiz, mas é outra lacuna que pretendo agora ilustrar, sugerida pelo fascismo enquanto reencenação de épocas pretéritas ou, mais exactamente, de mitos e deformações históricas.

Se o fascismo, como repetidamente insisti, resulta de um cruzamento entre extrema-direita e extrema-esquerda, ecoando em cada um dos lados os temas provenientes do lado oposto, o mesmo sucedeu no plano estético, em que a lição do modernismo funcionalista e depurado das primeiras décadas do século XX sofreu a repercussão dos grandes temas artísticos da cultura burguesa do século XIX, centrados nas ruínas, enquanto meditação sobre a fugacidade do tempo histórico, e no sublime, entendido como o fascínio do terror à beira do abismo. Mas — e aqui se inicia este caminho que não percorri —a arte burguesa não se esgota no sublime e nas ruínas, porque além dos temas há a maneira de os tratar. Recordo que terminada a segunda guerra mundial e contrapondo-se à perspectiva que concebia o fascismo como uma estetização da política, Karl Jaspers defendeu que deveríamos considerar o nacional-socialismo não como uma entidade estética, mas como uma obra de fancaria. Teve razão em realçar a trivialidade, mas não em lhe recusar o carácter estético, porque a banalidade na arte tem um nome, chama-se kitsch.

Na arte burguesa do século XIX alcançara uma enorme visibilidade, se não mesmo a supremacia, um academismo meramente imitativo a que depreciativamente, e com uma etimologia muito discutida, se chamou pompier. Não se tratava de uma alteração de temas, mas de um declínio do estilo, resultante da renúncia à originalidade. Ora, o academismo pompier é a antecâmara do kitsch ou, invertendo o sentido do processo, o kitsch é a banalização do pompier. Se o pompier é arte em segunda mão, o kitsch são saldos. A definição é dinâmica, porque o academismo não se congela no tempo e cada experiência vanguardista vê-se em seguida imitada sem aquilo que a caracterizara — a busca, a tentativa, a antecipação. Sucedeu mesmo que alguns vanguardistas, com o decorrer dos anos e ao envelhecerem, acabassem pompiers. Assim, se cada época estética se define pela irrupção de uma vanguarda, nela se reproduz também um academismo decorrente da vanguarda anterior, e a história da arte tem o seu reflexo, com atraso e sem génio, numa história do pompier que, por sua vez, dá posteriormente lugar a uma história do kitsch. Aliás, se o filistinismo é o exclusivo apreço pela estética pompier, como chamar àqueles que só apreciam o kitsch? Será que não existe palavra? Basta esta hesitação terminológica para mostrar como, desde o século XIX até hoje, se manteve fluida a delimitação entre a criação artística e o consumo do kitsch.

A distinção entre high art e low art, entre a arte erudita e o produto de massas, confunde aqui mais do que esclarece. Pelos processos técnicos como é elaborada a arte pompier pode não se distinguir da arte de vanguarda e diferenciar-se apenas pela falta de originalidade e de audácia da sua forma estética. Quanto ao kitsch, embora seja um produto de massas e se integre na low art, ele define-se não por ser um qualquer produto de massas mas, em primeiro lugar, por tomar como termo de referência a high art e, em segundo lugar, por escolher como modelo uma high art já deteriorada na forma pompier. Tanto o pompier como o kitsch, portanto, só devem entender-se como sucessivos estados de declínio de um padrão último, que é a high art de vanguarda. O desfasamento temporal é um factor indispensável nesta sequência de degradações. E é precisamente neste ponto do percurso que entra o fascismo.

Todos os fascismos, enquanto nacionalismos ou racismos que, para se legitimarem, invocavam raízes lançadas no tempo, pretenderam reencenar o passado. Não se tratava de reconstituí-lo historicamente, mas em datas escolhidas, em celebrações e festivais, representava-se no presente alegorias do passado. No fundo, tudo se limitava a um carnaval, resumindo o passado a adereços e trajes. Aliás, que passado era esse? O passado é um processo no tempo, não é possível aprisioná-lo num momento único. O passado que os fascistas reencenavam era cortado em fatias, escolhidas consoante mitos gloriosos, e estes pedaços de tempo juntavam-se ou sobrepunham-se sem outro critério que não o de ornamentar um espectáculo. E assim, derradeiro paradoxo, os fascistas tornaram o tempo atemporal. Ora, se o kitsch é a vulgarização e a banalização de algo que lhe serve de referência última, então a historicidade mítica dos fascismos, expressa em arremedos de passado sem espessura e degradados em cópias carnavalescas, foi obrigatoriamente kitsch.

Um exemplo de Grande Arte Germânica – Adolf Wissel (Família camponesa de Kahlenberg, 1939)

Eu recorreria aqui a um dos raros episódios taxativos, que pode por isso servir de marco aos demais. No Terceiro Reich a rigorosa delimitação estabelecida entre a Grande Arte Germânica (Große deutsche Kunst) e a Arte Degenerada (Entartete Kunst) oficializou a distinção entre o pompier e as vanguardas. Imposta pelo partido e apresentada como um dos focos da política nacional-socialista, foi uma demarcação muito mais estrita do que aquela que no Paris do século XIX opusera o Salon oficial e os refusés, e aliás os seus pressupostos foram também muito mais profundos, porque Entartete tem conotações eugenistas e raciais que o termo degenerada não torna explícitos. Neste percurso inédito, depois de chamar brevemente a atenção para a faceta racista que acompanhou todas as manifestações do nacional-socialismo, eu deveria dar um passo adiante porque, sendo o kitsch a vulgarização do pompier, quanto mais hegemónica se tornasse a indústria cultural de massas, tanto mais se aceleraria a formação do kitsch e mais ele se expandiria. Ora, os fascismos foram notórios antecipadores da indústria cultural.

Um exemplo de Arte Degenerada – Max Beckmann (A Noite, 1918-1919)

Albert Speer foi muito lúcido a este respeito nas suas declarações finais no julgamento de Nuremberga. «A ditadura de Hitler», afirmou ele, «foi a primeira ditadura de um Estado industrial nesta era da técnica moderna, uma ditadura que, para dominar o seu próprio povo, utilizou com grande perfeição todos os meios técnicos. Graças a meios técnicos como a rádio e os altifalantes, oitenta milhões de homens puderam ser submetidos à vontade de um único indivíduo». Speer continuou a explicar que «o telefone, o telex e a rádio permitiram que as mais altas instâncias transmitissem imediatamente as suas ordens aos escalões inferiores, que as aplicaram sem discussão, devido à alta autoridade de que emanavam. Numerosas repartições e departamentos receberam por esta via directa as suas ordens funestas. Estes meios tornaram possível submeter os cidadãos a uma vigilância muito ramificada, ao mesmo tempo que ficou muito fácil manter em segredo os procedimentos criminosos». E aproximamo-nos agora do ponto nevrálgico. «As ditaduras anteriores tinham tido necessidade de colaboradores qualificados, mesmo nos cargos subalternos, de pessoas capazes de pensar e agir por iniciativa própria. Isto é prescindível num sistema autoritário da nossa era técnica, pois bastam-lhe os meios de informação para mecanizar o trabalho dos órgãos subalternos. O resultado é aquele tipo de indivíduo que recebe uma ordem sem a discutir».

O que Speer ali descreveu foi uma antecipação dos mecanismos que, entre tantas outras consequências, geraram a indústria cultural de massas. Mas estes mecanismos têm hoje uma amplitude incomparavelmente superior porque o telefone, o telex e a rádio foram substituídos pelo telemóvel (celular), pela proliferação de câmaras de vídeo e pela internet, onde funcionam as redes sociais, muitíssimo mais tentaculares do que tudo aquilo a que as técnicas do Terceiro Reich puderam aspirar ou sequer sonhar. Ora, o recurso a uma embrionária indústria cultural de massas num regime que levara a um grau sem precedentes a distinção entre academismo e vanguardas fez com que no Terceiro Reich o kitsch tivesse óptimas condições para prosperar. Aliás, dando o seu ao seu dono, a Igreja católica fora uma precursora do kitsch no final do século XIX, com aquilo a que os franceses chamam le style de Saint-Sulpice, da igreja do mesmo nome, em Paris. Teria o fabrico em série de imagens religiosas antecipado a indústria cultural de massas? Uma hipótese pendente.

Por importantes que sejam, estas considerações servir-me-iam apenas de preâmbulo no percurso que não desbravei, porque eu derivaria rapidamente para outro atalho que me levaria à Exposição do Mundo Português, edificada em Lisboa em 1940, que Nuno Teotónio Pereira e José Manuel Fernandes classificaram como «laboratório máximo da adulteração da linguagem modernista». Afinal, no plano estético em que se projectou, o fascismo pode resumir-se a essa adulteração do modernismo, o que me permitiria considerar a exposição portuguesa de 1940 como um local emblemático da síntese estética fascista. Assim, talvez pareça estranho que José Ângelo Cottinelli Telmo, o arquitecto que se encarregou da planificação geral e da direcção imediata daquela exposição e para ela concebeu o belíssimo Padrão dos Descobrimentos, tivesse também elaborado o projecto arquitectónico do campo de concentração do Tarrafal, onde o fascismo encerrou muitos presos políticos e, mais tarde, muitos dos que lutavam pela libertação das colónias. Parece estranho, mas talvez não seja.

Se Cottinelli Telmo chamou à Exposição de 1940 «cidade de ilusões», seria o Tarrafal uma cidade de desilusões? A Exposição Colonial, que em 1934 celebrara o primeiro ano do Estado Novo de Salazar, havia incluído um verdadeiro zoo humano, com reconstruções de aldeias africanas e asiáticas onde o público podia apreciar, como um espectáculo, exemplares dos povos das colónias. Passados seis anos, na Exposição do Mundo Português, nativos de todo o Império foram novamente levados para povoar aldeias fictícias e bastava esta assimetria de posições, uns a verem e os outros a serem vistos, para que a assistência se sentisse confortada na sua superioridade. Do mesmo modo, no Terceiro Reich os campos de concentração e os ghettos onde se fechavam os judeus eram também considerados como espectáculos que manifestavam a supremacia da raça de senhores. Durante vários anos organizaram-se excursões ao ghetto de Varsóvia e os visitantes, além de fotografarem como curiosidades os judeus famintos e miseráveis, podiam divertir-se a chicoteá-los, sucedendo o mesmo noutros ghettos. Também os SS que se encarregavam de guardar e administrar os campos de concentração confirmavam nesse cenário a supremacia racial da milícia a que pertenciam, por contraste com a anti-raça dos presos, onde se mesclavam delinquentes e subversores e judeus e eslavos. Se a política era entendida como uma grande encenação e se o sistema concentracionário residia no âmago da política, então era lógico que ele fosse igualmente objecto da percepção estética.

Mas a desumanização dos presos nos campos de concentração ou dos nativos das colónias nas exposições ou dos judeus nos ghettos evitava que os carcereiros ou o público se sentissem ameaçados por qualquer terror e, portanto, era-lhes vedada a experiência do sublime, tal como Edmund Burke a definira. «Tudo o que for de qualquer modo capaz de estimular as ideias de dor e perigo, quer dizer, tudo o que for de qualquer modo terrível […] provoca o sublime», escrevera Burke, embora em seguida prevenisse: «Se o perigo ou a dor ameaçarem de demasiado perto serão simplesmente terríveis e incapazes de dar prazer, mas a uma certa distância, e com certas alterações, podem dar prazer, e dão-no […]». É certo que nos campos de concentração e nos ghettos, bem como nas exposições coloniais, essa «certa distância» estava assegurada; porém, o aviltamento dos prisioneiros ou dos judeus ou dos nativos impedia que servissem de espelho aos carcereiros ou ao público, a quem, por isso, não podiam inspirar o frisson do horrível. Se recordarmos Le Carceri d’Invenzione de Giovanni Battista Piranesi, então faltava a estes outros cárceres a dimensão trágica. E assim, no desvirtuamento do sublime, que fora um dos grandes eixos da arte burguesa, a estetização fascista da política roçou o kitsch. Quando escrevi e reescrevi o Labirintos hesitei em deambular pelas circunvoluções do kitsch e confesso que, além da falta de tempo, foi a falta de paciência para me dedicar a um assunto tão pouco atraente que me impediu de seguir este percurso.

Se o tivesse seguido, talvez evocasse o Reichsmarschall Hermann Göring como a primeira figura de relevo. Li, não me recordo onde, a descrição do seu casamento com Emmy Sonnemann, ou Köstlin, em Abril de 1935. Depois da cerimónia nupcial, em que Hitler interveio como padrinho, os convidados da esplendorosa festa de noivado assistiram ao espectáculo de um búfalo macho, ou não me lembro agora se qualquer outro desses animais possantes, a cobrir a fêmea, no que certamente pretendia ser uma restauração dos antigos cultos da fertilidade, mas que não foi mais do que uma réplica irrisória e, por isso, kitsch.

Bastaria o descomedido aparato de que Göring se rodeava para lhe conferir o kitsch, assumindo proporções cada vez mais exageradas, até ao ponto de o Führer, ao examinar o plano do palácio onde deviam agrupar-se todos os serviços que o Reichsmarschall superintendia, ter exclamado que «Göring tem pretensões excessivas, este edifício é demasiado vasto». Mas as pretensões excessivas não se limitavam aos edifícios e durante a guerra Göring exibia com orgulho aos convidados a copiosa colecção de quadros e outros objectos de arte que, com uma paixão obsessiva, requisitava e roubava.

O despropósito é outro fautor de kitsch, que atingiu no Reichsmarschall o verdadeiro insólito em Fevereiro de 1943, quando a vitória soviética em Stalingrado profetizou o fracasso do Reich. No dia 18 desse mês, logo depois de ter pronunciado o seu discurso lançando a Guerra Total, Goebbels procurou Speer e pediu-lhe que fosse falar com Göring, para que eles os três se contrapusessem à influência que Bormann e Lammers estavam a deter sobre o Führer — uma conspiração frustrada como as demais. As relações de Goebbels com Göring não eram boas, daí a conveniência de um intermediário e, apesar dos fracassos da Luftwaffe, o Reichsmarschall continuava a ser a segunda figura do regime, o que lhe conferiria peso naquela manobra de bastidores. Speer encontrou-se com Göring em 28 de Fevereiro e nas suas memórias mostrou-se «bastante surpreendido» «por ver que ele tinha as unhas pintadas de vermelho e maquilhara as faces com rouge». Não lhe causou espanto o amplo robe de chambre de veludo verde, ornamentado com um enorme rubi, em que Göring se envolvia para «assumir poses românticas», porque já conhecia essa indumentária de um encontro no ano anterior, e o que o deixou mais perplexo, disse Speer, foi o facto de que Göring «me ouviu tranquilamente, enquanto se distraía a deslizar entre os dedos algumas pedras preciosas que de vez em quando tirava do bolso». É impossível que este assombroso comportamento, num Reich em escombros e à beira da ruína definitiva, não nos recorde o estafado cliché de Nero durante o incêndio de Roma. Se na história a reprodução descabida de uma tragédia é uma farsa, na arte ela é o kitsch.

Ao ler estas descrições quando estava a escrever o Labirintos, não pude deixar de estabelecer uma comparação entre Göring e Liberace, e foi precisamente então que pela primeira vez me surgiu a ideia de tratar o tema do kitsch.

Vejam este vídeo até ao minuto 3:25.

A semelhança entre Göring e Liberace é surpreendente. Speer contou que em Maio de 1945, na iminência da capitulação, naquela espécie de terra-de-ninguém da cronologia que foi o governo do almirante Dönitz, ao ouvir um personagem de segundo plano lastimar tudo o que perdera, Göring teria exclamado: «Ah, não diga isso, não tem nenhuma razão de queixa! Afinal, o que é que o senhor possuía? Mas eu, eu que tinha tanta coisa!». Porém, apesar de ostentar o tipo de vaidade de um parvenu, Göring não o era. Nascera numa família relativamente abastada e durante a primeira guerra mundial combatera com êxito na força aérea alemã, chegando a pertencer ao esquadrão de von Richthofen, a quem sucedeu no comando depois da sua morte, tudo isto lhe valendo numerosas condecorações. Terminada a guerra, frequentou a boa sociedade, incluindo a alta nobreza, bem como os meios sociais endinheirados — o que era uma raridade no incipiente partido nacional-socialista, constituído quase exclusivamente por uma ralé que ansiava por tomar o lugar da elite. Ora, um membro da elite que se comporta como um parvenu é, no plano social, a exacta analogia da vulgarização kitsch de uma obra de arte, e também Liberace preferiu transformar em kitsch as obras que tocava. Ele fora um menino-prodígio, tivera uma boa preparação musical e podia ter sido um pianista clássico com êxito, pois beneficiara do aplauso da crítica quando executara o segundo concerto para piano de Liszt acompanhado pela Orquestra Sinfónica de Chicago regida por Hans Lange, que havia sido assistente de Toscanini — para afinal tocar de uma maneira tão vulgar como era vulgar a atitude de Göring. Mas não se trata aqui de casos particulares. O que em Göring poderia ser uma mera mania deve considerar-se como expressão de um comportamento geral.

Para abarcar esse comportamento, quantas deambulações deveria eu fazer através dos fascismos, na multiplicidade das suas variantes! Demoraria muito, porque teria de revisitar tudo e mais ainda. Não conheço nenhuma obra que analise exclusiva e especificamente o kitsch no fascismo e ser-me-ia necessário ler a contrapelo os estudos de arte propriamente ditos. E conseguiria eu aperceber-me do kitsch numa cultura estética como a japonesa, tão diferente daquela em que fui formado? Inúmeras dificuldades, que me levaram a desistir do percurso.

Mas sei em que pontas poderia pegar, pois à primeira vista dificilmente se encontra algo mais kitsch do que o desfile militar, que inspirou a coreografia dos rituais de massas do fascismo. No regime de Salazar, porém, em que o pólo clerical acabou por prevalecer sobre o pólo militar, foram as romarias, não as paradas, o modelo da estetização da política. Então, e contrariamente às normas que presidem à exposição de um tema, eu começaria pela excepção em vez de começar pela regra geral e analisaria o kitsch salazarista.

No Estado Novo português os motivos de religiosidade popular foram banalizados e, perdida a conotação mística ou mesmo pagã, ficaram convertidos em código de espectáculos popularuchos. O kitsch resultou dessa profusa colecção de detalhes retirados do contexto. Foi uma operação idêntica à que Raul Lino efectuara na arquitectura, em que os elementos tradicionais de várias proveniências se baralhavam e confundiam nas mesmas edificações e, distanciados do vernáculo original, os detalhes eram adulterados pela vulgarização. O aspecto geral podia até ser sóbrio, não se tratava de uma arquitectura barroquizante, mas isto não impedia que o carácter marcante dos edifícios lhes fosse conferido por elementos oriundos de uma pluralidade de regiões e que ali adquiriam um valor meramente decorativo. A etimologia da palavra folclore é a história deste desvirtuamento das tradições, passando-se de folklore, a sabedoria ancestral de um povo transmitida oralmente, para o Oh i, oh ai e os galos de Barcelos. Neste percurso que não fiz eu atribuiria um lugar central à arquitectura de Raul Lino, porque fornece uma das chaves para a compreensão visual do Estado Novo.

Interessante na obra desse arquitecto é sobretudo o facto de ter antecipado esteticamente o fascismo português. Tal como escreveu José Luís Quintino, «a proposta arquitectónica de Raul Lino» foi convertida «no formulário oficioso do Estado Novo». Com este exemplo eu poderia ilustrar um facto nem sempre tido em conta — se o salazarismo criou muito, assimilou também muito do que já existia, o que contribui para lhe explicar a insólita longevidade.

Raul Lino – Casa Jorge O’Neill

Ora, caberia aqui salientar que, embora invocasse o pretexto da ligação à natureza, Raul Lino desenhava casas de paredes opacas e janelas estreitas, que resultavam em interiores sombrios, quase conventuais. O exemplo extremo é a casa projectada para Jorge O’Neill, situada à beira do mar, na bela baía de Cascais, e cujo interior é escuro, fechado à maravilhosa luz e à amplidão do oceano.

Raul Lino – Casa Jorge O’Neill (interior)

De uma maneira não menos óbvia, embora de dimensões muito modestas, a pequena casa que Raul Lino desenhou para si próprio numa escarpa em Azenhas do Mar, pendurada sobre o oceano no alto de pedra rude, em vez de se abrir à paisagem parece proteger-se dela pelos planos de paredes fechadas e pela escassez e estreiteza das janelas.

Raul Lino – casa em Azenhas do Mar

A verdadeira ligação à natureza foi o modernismo funcionalista que a conseguiu, com a transparência resultante do emprego extensivo do vidro. Mas numa entrevista concedida em 1933 Raul Lino afirmou que o «internacionalismo na arquitectura devia ser proibido superiormente se não houvesse já razões de ordem técnica e material para ser condenado». Com efeito, o funcionalismo é necessariamente internacionalista, visto que o carácter nacional de uma arquitectura resulta sobretudo da decoração, que é exterior ou suplementar à função, e era a decoração que Raul Lino estimava para conferir o carácter alegadamente português à sua idealizada Casa Portuguesa.

A Casa Portuguesa de Raul Lino é o modelo antecipador do enclausuramento no Estado Novo de Salazar, e neste ponto eu deveria fazer uma pequena excursão, mostrando o significado predominantemente simbólico da natureza para o salazarismo e, por aí, para toda a ecologia fascista, por contraste com a acepção técnica, não mística, como a sociedade industrial encara a natureza. Reforçaria assim as bases da minha crítica aos movimentos ecologistas.

Em seguida eu compararia a arquitectura e as ideias de Raul Lino com as de Paul Schulze-Naumburg, igualmente especializado em residências campestres e que se contou entre os primeiros críticos alemães da Bauhaus e do funcionalismo. Ora, é curioso, e talvez definidor, que em 1930 a questão de Schulze-Naumburg tivesse iniciado a discussão que levaria à ruptura de Otto Strasser com Hitler, mas apesar disto foi a arquitectura de Speer a adquirir o predomínio no Terceiro Reich e Schulze-Naumburg foi posto de lado. Em Portugal, pelo contrário, a estética de Cottinelli Telmo não conseguiu ostracizar a de Raul Lino. E os aparentes acasos da história uma vez mais são simbólicos, porque Cottinelli morreu cedo, em 1948, ainda não perfizera cinquenta e um anos, enquanto Raul Lino, nomeado em 1947 para Director dos Monumentos Nacionais, um cargo que lhe permitia ditar à vontade o gosto oficial, durou tanto quanto durou o regime que ele tão bem representou, morrendo com noventa e três anos, menos de dois meses depois da revolução de 25 de Abril. A diferença entre o Terceiro Reich e o Estado Novo português fica sintetizada no contraste entre Speer e Raul Lino.

Neste vaivém eu regressaria ao Terceiro Reich para mostrar que o facto de a depurada arquitectura de Speer ter servido de cenário a desfiles e cerimónias kitsch não é mais espantoso do que o modernista António Ferro, que fora editor do Orpheu, uma vez colocado à frente do Secretariado da Propaganda Nacional ter apadrinhado o kitsch decorativo. Referindo-se à actuação deste Secretariado nas artes plásticas, Fernando Rosas observou que ele procurara «casar o modernismo estético com os valores ruralistas e conservadores do discurso oficial». Ora, este casamento era necessariamente gerador de kitsch. E neste ponto eu deveria recordar um passo do Labirintos, quando afirmei que «se for exacta esta interpretação, que considera a deficiência de política do Estado Novo como razão para que o regime se concentrasse na encenação artística, então o insuperável kitsch dos festivais salazaristas deverá servir de modelo para analisar o estilo dos demais fascismos» (vol. V, pág. 46).

Seriam muitas as circunvoluções e as digressões e, neste longo caminho que não percorri, só depois de ter tratado dos aspectos do kitsch mais flagrantes, por isso mais superficiais, é que poderia atingir o cerne recôndito do fascismo enquanto estética kitsch.

Mas aqui eu depararia com uma hipótese fascinante. O sonho da ascensão hegemónica de uma nova elite, que é o motor de qualquer fascismo, inspirou a Universal Negro Improvement Association (UNIA), fundada e chefiada por Marcus Garvey, e constituiu a única razão de ser do «regresso a África», a imposição súbita e em bloco dos negros americanos sobre as populações africanas nativas, para quem eles apareceriam como outra elite. «Nós fomos os primeiros fascistas», declarou Garvey três anos antes da sua morte. «Disciplinámos homens, mulheres e crianças e preparámo-los para a libertação da África. As massas negras viram que só neste nacionalismo extremo podiam depositar as suas esperanças e apoiaram-no de imediato. Mussolini copiou de mim o fascismo, mas os reaccionários negros sabotaram-no». Não era só uma emigração em massa que Garvey se esforçava por organizar, mas queria sobretudo transplantar um aparelho de Estado completo, inaugurando uma colonização de novo tipo. Ora, não encontro nada mais kitsch do que a UNIA. Os trajes pseudo-napoleónicos ou pseudo-wellingtonianos, os títulos nobiliárquicos apócrifos, as damas da corte ornamentadas com jóias que presumo serem falsas, e se fossem verdadeiras seriam mais kitsch ainda, um sumo sacerdote de fantasia, tudo isto imitado e mal imitado dos próprios padrões que Garvey pretendia repudiar. Se esta perspectiva for exacta e o fascismo tivesse aqui assumido a sua máxima expressão kitsch, então a UNIA poderia ser tomada como chave de interpretação não só dos demais movimentos fascistas, mas também dos regimes fascistas, já que Garvey conferiu ao seu movimento características de regime, criando um governo imaginário, uma ficção de forças armadas e um fantasma de Igreja. Não deveria eu então, neste percurso, dar o lugar de maior relevo a Garvey em vez de Göring?

E assim, depois de uma circunvolução, volto ao início.

Referências

A citação de Walter Benjamin encontra-se em Walter Benjamin, L’Œuvre d’Art à l’Ère de sa Reproductivité Technique, em L’Homme, le Langage et la Culture. Essais, [s. l.]: Denoël / Gonthier, 1971, pág. 179. Para a definição de Robert Brasillach, do fascismo como um mito estético, ver Dietrich Orlow, The Lure of Fascism in Western Europe. German Nazis, Dutch and French Fascists, 1933-1939, Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2009, pág. 32 e Paul Sérant, Le Romantisme Fasciste. Étude sur l’Œuvre Politique de quelques Écrivains Français, Paris: Fasquelle, 1959, pág. 230. A afirmação de Pierre-Antoine Cousteau está em Lucien Rebatet e Pierre-Antoine Cousteau, Dialogue de «Vaincus», Paris: Berg International, 1999, pág. 62. As duas citações de Joseph Billig encontram-se em Joseph Billig, L’Hitlérisme et le Système Concentrationnaire, Paris: Presses Universitaires de France, 2000, pág. 88. A citação de Zeev Sternhell foi extraída de Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri, The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, pág. 29. As frases de Jacob Burckhardt estão em Jacob Burckhardt, The Civilisation of the Renaissance in Italy. An Essay, Londres: The Folio Society, 2004, pág. 4. A opinião de Karl Jaspers está mencionada em Wolf Lepenies, The Seduction of Culture in German History, Princeton, Nova Jersey e Oxford: Princeton University Press, 2006 [e-book], pág. 193. A passagem do discurso de Speer no julgamento de Nuremberga está em Albert Speer, Au Cœur du Troisième Reich, [Paris]: Fayard (Le Livre de Poche), 1971, págs. 676-677. A citação de Nuno Teotónio Pereira e José Manuel Fernandes provém de Nuno Teotónio Pereira e José Manuel Fernandes, «A Arquitectura do Fascismo em Portugal», em O Fascismo em Portugal. Actas do Colóquio Realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980, Lisboa: A Regra do Jogo, 1982, pág. 543. Cottinelli Telmo está citado em «A Exposição do Mundo Português», Os Anos 40 na Arte Portuguesa, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, vol. I, pág. 56. As passagens de Edmund Burke provêm de Edmund Burke, A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, em David Womersley (org.) Edmund Burke. A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful and other Pre-Revolutionary Writings, Londres: Penguin, 1998, pág. 86. As descrições feitas por Speer do comportamento de Göring podem ler-se em Albert Speer, op. cit., págs. 184, 277, 342-343, 347, 433 e 652. A opinião expressa por José Luís Quintino encontra-se em José Luís Quintino, Raul Lino, 1879-1974, Lisboa: Blau, 2003, pág. 11. A declaração de Raul Lino consta de uma entrevista ao Diário de Lisboa, 15 de Dezembro de 1933. A afirmação de Fernando Rosas foi extraída de Fernando Rosas, «O Salazarismo e o Homem Novo: Ensaio sobre o Estado Novo e a Questão do Totalitarismo», Análise Social, vol. XXXV, nº 157, 2001, pág. 1043. A declaração de Garvey encontra-se citada em Edmund David Cronon, Black Moses. The Story of Marcus Garvey and the Universal Negro Improvement Association, Madison e Londres: University of Wiscosin Press, 1968, pág. 199 e George Padmore, Panafricanisme ou Communisme? La Prochaîne Lutte pour l’Afrique, Paris: Présence Africaine, 1960, pág. 106.

A imagem de destaque representa a escultura O Vingador, de Ernst Barlach (1870-1938),
um artista incluído na Arte Degenerada.

Pode ler o primeiro percurso aqui e aqui o terceiro percurso.

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