Por Marcelo Tavares de Santana [*]

É notório que no Brasil temos muitos problemas com corrupção e desvio de dinheiro público que podem levar a ameaças de morte de agentes denunciantes de tais situações. Como exemplo, um caso atual que não foi efetivado graças a atuação de agente público foi o de superfaturamento de vacinas para combate no Brasil da pandemia COVID-19 [1]. Diferentemente de um agente público a população em geral não tem acesso a proteção policial especial e nem o Estado tem capacidade financeira de dar proteção a uma grande quantidade de denunciantes, e mesmo que tivesse é discutível se cidadãos deveriam colocar sua paz, rotina e família em risco por causa de corruptos e criminosos. A legislação brasileira prevê situações onde cidadãos não precisam ser identificado no  Artigo 5º, Inciso XIV, da Constituição de 1988 [2] mas somente “quando necessário ao exercício profissional”, faltando previsão de sigilo para participação cidadã como nos casos de pedidos de informação conforme Lei de Acesso a Informação [3]; argumenta-se que corruptos poderiam iniciar perseguições a cidadãos ao descobrir quem estaria pedindo vistas a dados que exporiam crimes. Os sigilos necessários às denúncias, à participação cidadã e assim à manutenção de democracias referem-se a possibilidade de anonimato, que deveria inclusive ser um direito para segurança pessoal e familiar, mas que é estigmatizado como algo ruim em clichês irresponsáveis do tipo “quem não deve não teme”, pois quem denuncia pode sim temer pela vida; no entanto não se costuma achar que empresas do tipo Sociedade Anônima (SA) são formadas por criminosos.

Existe uma outra controvérsia a respeito do anonimato que precisa ser tratada: a de ser prejudicial à investigação policial, como nas discussões de registro de conexões na Internet no Marco Civil da Internet e que felizmente não ficou abusivo graças a participação ativa da sociedade civil e academia na redação dessa legislação. Considero essa controvérsia equivocada e compreensível pois como especialista em computação, dados abertos e execução de orçamento público [4], percebo que existe uma distorção de investimentos que leva muitos a pensarem que o registro exagerado de conexões é necessário quando o correto seria dar aos agentes de segurança recursos financeiros e condições de trabalho dignos ao exercício da segurança pública. Acredito que se tivessem investimentos decentes muitos agentes achariam desnecessário diversos registros de Internet pois teriam recursos computacionais e humanos suficientes para resolver casos por outros meios, sem precisarmos do risco de se estabelecer um Estado totalitarista através da vigilância cibernética da sociedade. Enquanto isso sociedade civil e academia estão desde 2014 pedindo a lista de credores da dívida pública federal e, independente de governo ou partido político, ela não é fornecida; em 2022 foram pagos R$ 1,879 trilhão (46,3%) [5] a credores que estão até o momento em anonimato pois os relatórios federais apenas os apresentam agregados por tipo de instituição, e tem sido assim ano após ano.

Podemos perceber que também há uma distorção de onde o anonimato é usado no Estado, cidadãos denunciantes que precisam estar identificados em algum lugar, e assim não conseguem se proteger de eventuais ameaças, contrastam com instituições credoras da dívida pública federal que ficam desconhecidas enquanto são pagas com dinheiro público. Enquanto nossos congressistas não consertam essas questões é preciso saber como podemos fazer uso do anonimato para participação cidadã, preservando a integridade física de nossos entes queridos além da nossa na forma da Lei, ou seja, usar a Constituição de 1988 e falar com organizações e pessoas que estão protegidas pelo sigilo de fonte para exercício de sua profissão, podendo ser jornalistas ou instituições de fiscalização e transparência. Como essas entidades não são os denunciantes diretos estariam teoricamente protegidas pois assediar ou intimidar tais instâncias não impede a fonte de continuar a denúncia por outro canal ou jornalista, e por isso o anonimato na figura do “sigilo de fonte” é tão fundamental para a preservação da democracia, como também seria fazer pedidos de informação realmente anônimos.

Para atingir esse grau de segurança no meio digital é preciso alguns cuidados e muita atenção. Primeiro, as tecnologias de Virtual Private Network (VPN) não garantem anonimato e infelizmente estão fazendo essa associação equivocada na publicidade dessa tecnologia. Atualmente, só é possível conseguir anonimato real em programas como os do Projeto Tor [6] e serviços de e-mails anônimos, aqueles onde se pode criar contas sem a necessidade de informar dados pessoais e com um pseudônimo qualquer. Ainda é preciso utilizar essas tecnologias numa ordem específica, primeiro executar algum dos programas de navegação do Projeto Tor e dentro dele acessar serviços de e-mail anônimo para criar um conta. Sempre que for ser comunicar com jornalista ou organização de fiscalização deve-se usar sempre o navegador do Projeto Tor para acessar as mensagens da conta de e-mail anônimo; preferencialmente fazendo o acesso à Internet por Wi-Fi fora de sua moradia. Adicionalmente, pode-se fazer tudo isso numa VPN anônima – que possa usar sem fornecer dados pessoais – e nesse caso inicia-se a VPN antes de abrir o navegador do Projeto Tor.

Invariavelmente, surgirão tentativas diversionistas para prejudicar os usos legítimos de tecnologias de segurança e anonimato, ou seja, para favorecer alguma intenção obscura vão usar uma série de pseudos argumentos para criar confusão na discussão e assim impedir ou atrasar a evolução da sociedade democrática, da transparência de dados, da fiscalização e da participação cidadã. Por exemplo, dizer que o anonimato não só atrapalharia a investigação de fraude financeira na Internet mas tudo no sistema financeiro já é altamente registrado com identificação de usuário, o quê atrapalha esse tipo de investigação é a moeda em espécie, portanto cabe ao poder público criar políticas públicas que reduzam a circulação de cédulas e moedas, e também investir em mais agentes de segurança dignamente remunerados e com condições de trabalho para dar conta da demanda brasileira. Outro exemplo, podem reclamar que haveria um aumento da quantidade de falsas denúncias, mas para isso se pode investir em sistemas de Inteligência Artificial que auxiliaria as forças policiais a identificar, classificar e organizar as denúncias por tipo, região etc. Portanto, há soluções para aprimorarmos a segurança de denunciantes para participação cidadã, a depender somente das prioridades daqueles que planejam nosso orçamento, ou seja, poderes Executivo e Legislativo.

Para conhecer como funciona o Projeto Tor não é preciso buscar um Wi-Fi fora de nossa moradia pois estaríamos entrando em paranoia, que além de um estado indesejado para isso é também desnecessário. Segue sugestão de experimentação de tecnologias para anonimato:

  • Semana 1: instale o Tor Browser [7] e visite alguns sites de notícias, note que a navegação pode ser lenta mesmo em banda larga devido a tecnologia de anonimização;
  • Semana 2: estude mais sobre o Projeto Tor na Wikipedia [8];
  • Semana 3: pesquise por e-mail anônimo dentro no Tor Browser e teste duas contas em serviços diferentes para testar a troca de mensagens entre elas, JAMAIS use essas contas para trocar mensagens com amigos, parentes ou até mesmo com tuas contas sociais pois isso cria uma caminho para encontrar a todos;
  • Semana 4: pesquise por VPN anônima e tente usar, lembrando que ela jamais substituirá o Tor Browser e que deve ser encarada com uma camada a mais de segurança.

Infelizmente a humanidade não está tão evoluída a ponto de termos o anonimato como instrumento de cidadania e democracia, de forma que não é possível dar recomendações de e-mail ou VPN anônimos pois as legislações podem mudar o modo como os serviços funcionam ao redor do mundo, será preciso revisar regularmente se o serviço que usa continua com bom anonimato ou se precisará trocar para outro. Vamos torcer para vermos o anonimato um dia se tornar uma ferramenta de segurança pessoal e participação social reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos [9], quem sabe no Artigo 3.

Importantíssimo, não enviem arquivos em denúncias se não sabem como limpar ou anonimizar os metadados dos mesmos. Caso precisem escrever textos usem um editor de texto simples que seja software livre, como o Notepad++ [10]. A anonimização de metadados fica para outro artigo.

[*] Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo.

[1]https://duckduckgo.com/?q=cpi+covid+escandalo+covaxin

[2]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm

[3]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm

[4] Dissertação em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100131/tde-02022014-221236/pt-br.php

[5]https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gastos-com-a-divida-consumiram-463-do-orcamento-federal-em-2022/

[6]https://www.torproject.org/

[7]https://www.torproject.org/download/

[8]https://pt.wikipedia.org/wiki/Tor_(rede_de_anonimato)

[9]https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

[10]https://notepad-plus-plus.org/

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