Por Jan Cenek

Eduardo Galeano apreciava a grandeza das coisas pequenas. Dizia que teve pouca educação formal, teria se formado escutando histórias nos cafés de Montevidéu. Gostava de citar a poeta estadunidense Muriel Rukeyser, que dizia que o mundo é feito de histórias e não de átomos [1]. Era como se ao escritor coubesse descobrir e ouvir histórias para recontá-las. Quando leio os textos de Galeano tenho a sensação de estar diante de uma sabedoria, e não exatamente de uma literatura. Para ser capaz de falar, saber escutar. Para não ser mudo, começar por não ser surdo. A escrita de Galeano se aproxima de maneira interessante da oralidade, não exatamente pelas palavras e pela linguagem, mas pelo que é ouvido e, posteriormente, recontado. O título do último livro publicado por Eduardo Galeano é certeiro: O caçador de histórias.

1901. Espanha. Duas mulheres se encontram num curso para professoras e experimentam um amor urgente e proibido. Elisa Sánchez e Marcela Gracia. A mãe de uma descobriu e tentou separar a filha da outra. Mas tempos depois elas se reencontraram. Talvez por um veio anarquista, ou legítima vontade de cuspir na cara dos moralistas: decidiram casar na igreja. Elisa se transformou em Mario, casaram com direito à certidão. Há uma foto do casamento em que elas parecem rir por dentro. Tempos depois, descoberta a fraude, foram caçadas. Fugiram para Portugal, foram presas na cidade do Porto. Escaparam. Atravessaram o oceano Atlântico. Foram vistas pela última vez em Buenos Aires.

A poeta Alfonsina Storni também foi para Buenos Aires na primeira metade do século XX, levava sapatos velhos e um filho novo. Trabalhou como pôde. Quando sobravam, comia migalhas dos pães que o diabo amassava. Mas abriu brechas e atravessou as muralhas do mundo masculino. “Sua cara de camundongo travesso nunca falta nas fotos que reúnem os escritores argentinos mais ilustres” – a frase é de Eduardo Galeano. Os poemas de Alfonsina falam do rio caudaloso e do mar enorme: “Yo tengo el corazón como la espuma. Mar, yo soñaba ser como tu eres.” Ela se considerava uma flor perdida, nascida na beira de um rio caudaloso, entre plantas e ervas. Com 43 anos, descobriu um câncer. Com 46 anos, se matou. Escreveu o poema Voy a dormir, enviou ao jornal da cidade e se lançou no mar: “Pela branda areia que lambe o mar, sua pequena pegada não volta mais”a frase é, também, de Eduardo Galeano. Imagino as pegadas de Alfonsina nas areias de Mar Del Plata: os passos levam para o mar, desaparecem aos poucos.

1904. Espanha novamente. Nasce uma menina que não foi batizada, o que não era comum. Matilde Landa cresceu e se aproximou do movimento popular. Em 1936, ingressou no Partido Comunista. Lutou ao lado dos antifascistas na guerra civil espanhola: recebeu treinamento militar, organizou hospitais, apoiou a retirada de combatentes, auxiliou os refugiados. Em 1939, foi presa: organizou as detidas e resistiram como puderam, evitaram execuções, melhoraram as condições do cárcere. Em 1940, foi presa novamente: novamente organizou as detidas e resistiram como puderam, evitaram execuções, melhoraram as condições do cárcere. Mas a tenacidade e a coerência de Matilde Landa eram um exemplo a apagar. Em 1942, o regime – apoiado pela igreja – decidiu batizá-la à força. Ela – que não acreditava em Deus – devia se arrepender de todos os pecados. Matariam dois coelhos com uma única cajadada: fariam propaganda e golpeariam o moral dos que resistiam. No dia marcado para o batismo, ela se lançou do telhado. A cerimônia foi realizada mesmo assim. Batizaram o corpo caído. Matilde Landa resistiu até o último suspiro. Morreu resistindo. Resistiu morrendo.

1945. Itália. Elio Vittorini, escritor e membro da resistência, publicou o romance Homens e não [2]. O tema é a luta antifascista, a ação ocorre durante a segunda guerra mundial. É um romance curto, mas não deve ser lido numa única tacada. Perto do fim é preciso parar, tomar um café e respirar fundo antes de continuar a leitura. Os personagens não têm nome, como são combatentes, se tratam por apelidos, siglas e números. O título sempre me intrigou, talvez porque remete à Itália que aprendi a amar por conta de homens que resistiram, mas, sobretudo, pela palavra não estampada na capa espessa. O nome do autor quase não aparece. Quem passa o olho rapidamente lê Homens não. No romance de Vittorini também as mulheres compõem a resistência e são identificadas por apelidos, siglas e números.

Há uma edição com saborosos textos de Eduardo Galeano [3] sobre mulheres que, de diversas maneiras, resistiram e disseram não. Entre elas Elisa Sánchez, Marcela Gracia, Alfonsina Storni e Matilde Landa. Às vezes fico imaginando um livro que gostaria de encontrar e ler. Seria meio Galeano, meio Vittorini. A sabedoria do escritor uruguaio, o realismo do escritor italiano. Seria infinito, absurdo, preciso. Entrariam Elisa Sánchez, Marcela Gracia, Alfonsina Storni, Matilde Landa… Chamaria Mulheres e não. Contaria as histórias individuais e coletivas de todas as mulheres que resistiram e disseram não, especialmente as anônimas.

Notas

[1] Essa e outras falas do escritor uruguaio podem ser conferidas no documentário Eduardo Galeano Vagamundo.

[2] Elio Vittorini. Homens e não. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

[3] Eduardo Galeano. Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2015.

1 COMENTÁRIO

  1. ERRATA

    Um grande camarada – latino-americano, meio baiano, meio argentino – alertou-me sobre um equívoco que cometi no texto. “Pela branda areia que lambe o mar, sua pequena pegada não volta mais” não é de Eduardo Galeano, como registrei. Trata-se de verso da canção Alfonsina y el mar, de Ariel Ramírez e Félix Luna, que foi gravada por Mercedes Sosa.

    Conferi na edição que citei do livro Mulheres. O texto sobre Alfonsina Storni está nas páginas 45 e 46. Mas a frase não está lá. O erro foi meu. Não entendi a minha confusão.

    Favor desculpar o equívoco e considerar a autoria correta. Os versos “Pela branda areia que lambe o mar/ sua pequena pegada não volta mais” são de Ariel Ramírez e Félix Luna.

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