Por João Bernardo

1. Respostas?

Em Fevereiro deste ano publiquei aqui um artigo sobre o chamado capital fictício e, tal como tencionara, deixei coléricos vários leitores. Em resposta ao mais persistente e verboso desses indignados, Manolo escreveu um comentário admoestando-o: «Há alguns problemas de fundo em sua argumentação, problemas que antecedem até a escolha e recorte das citações. O maior deles é que você pretende explicar um sistema ideológico pelo outro. Nomeadamente, você quer aferrar o sistema econômico proposto por João Bernardo na Economia dos conflitos sociais ao sistema de Marx n’O Capital, como se fossem equivalentes pelo fato de que João Bernardo se vale de alguns conceitos do sistema de Marx. Ora, nós dois sabemos bem que não é esse o caso, e me reservo o direito de não me estender muito no assunto. A aparente semelhança pelo recurso à mais-valia como pilar de sustentação dos dois sistemas cai por terra quando Marx (e também Engels) recorrem abundantemente a anacronismos conceituais como “economia natural” (“anacronismos” pelos olhos de hoje), ou a explicações com base em modelos abstratos onde o capitalismo inteiro é tomado como uma só empresa, quando, além da exploração da mais-valia do trabalho, funciona à base das defasagens entre empresas, defasagens que deveriam estar desde o início nesses modelos abstratos e resultam em modelos muito distintos».

É talvez ingenuidade da minha parte, e decerto não é por ironia que agora o confesso, mas não me tinha apercebido de que o meu distanciamento relativamente à obra de Karl Marx fosse tão acentuado como Manolo afirma. Esta perplexidade, no entanto, não terá razão de ser, porque ninguém conhece o meu trabalho e o meu percurso melhor do que Manolo, como ainda recentemente o comprovou numa extensa resenha publicada na revista Estilhaço. Se ele o disse, deve estar correcto.

Ora, sucede que pouco tempo depois me chegou às mãos, ou aos olhos, a tradução francesa de um prefácio que escrevi em 1977 para a edição espanhola de um livro publicado em Portugal dois anos antes (Para una Teoria del Modo de Producción Comunista, Bilbao e Madrid: Zero-Zyx, 1977; edição portuguesa: Porto: Afrontamento, 1975). Esta coincidência levou-me a reler algumas linhas desde há muito esquecidas e, tendo em conta o que Manolo observara acerca do meu afastamento da obra de Marx, reflecti então sobre o caminho percorrido. Começa assim aquele prefácio, que reproduzo aqui a partir do manuscrito original em português:

«Este livro encontrou o seu ponto de partida teórico no momento em que articulei num sistema único as duas definições de valor que podem encontrar-se na obra de Marx (tempo de trabalho incorporado; tempo mínimo de trabalho incorporado). Marx emprega estas definições alternativamente ou, noutros casos, aparece uma como especificação da outra. Porém, se as articularmos de forma a constituir em duas determinações a lei do valor, podemos extrair da lei assim reformulada consequências de grande alcance».

Note-se antes de mais que, se Marx tivesse sido coerente consigo próprio, a definição da mais-valia exclusivamente em termos de tempo tê-lo-ia libertado da subserviência à noção oitocentista, iluminista, de matéria, que tão gravemente afecta o marxismo desde a origem até aos dias de hoje. Ora, já as teorias de electromagnetismo vigentes na época de Marx teriam podido inspirar um quadro de interpretação do trabalho que não estivesse estritamente apegado a qualquer materialidade do produto.

Mas os efeitos da articulação das duas definições de valor num sistema único são muitíssimo mais devastadores, porque basta raciocinar a partir da meia-dúzia de linhas com que iniciei o prefácio e extrair-lhe as consequências lógicas, tal como se faz numa equação matemática, para alterar substancialmente o marxismo. Afinal, desde então, e mesmo na extensa obra que dediquei ao regime senhorial, não fiz outra coisa senão desfiar aquelas consequências lógicas.

Num sistema em que o valor é genericamente definido como tempo de trabalho incorporado, mas o valor efectivo é determinado pelo tempo mínimo alcançado num dado processo de produção, o capitalista que encabeça este processo consegue impor a todos os outros o seu padrão de referência e condenar como desnecessário o tempo excedente despendido nos restantes processos. Isto significa que a concorrência entre capitalistas ocorre fundamentalmente na esfera da produção, cada um se esforçando por incorporar no produto o mínimo de tempo de trabalho, antes de essa concorrência se verificar eventualmente no mercado. Noutras palavras, a base da concorrência é a competição pelo aumento da produtividade.

Ora, a concorrência na produção implica a eliminação de um modelo usado por Marx em O Capital, onde ele supôs que a totalidade do capitalismo funcionasse como uma empresa única e, inversamente, uma empresa solitária pudesse servir de exemplo de todo o capitalismo. Passei então a adoptar uma perspectiva em que a globalidade do capitalismo é desde início concebida como um todo estruturado, e esta diversidade interna da esfera da produção assenta na articulação entre Condições Gerais de Produção e Unidades de Produção Particulares. As condições gerais de produção são as infra-estruturas físicas, técnicas e sociais necessárias para o funcionamento colectivo do sistema. Elas são os elementos integradores que impedem cada processo específico, ou seja, cada unidade de produção particular, de se manter isolado e, assim, sustentam a coerência do conjunto. Trata-se de uma articulação essencialmente competitiva, porque as unidades particulares que conseguirem estabelecer relações preferenciais com as condições gerais estarão em melhor posição para aumentar a produtividade e reduzir a um mínimo o tempo de trabalho incorporado. Em suma, a concorrência na produção assenta na diferenciação das relações existentes entre cada unidade particular e as condições gerais.

Não é difícil deduzir que esta noção de uma concorrência na esfera da produção obriga imediatamente à reformulação das classes sociais e das relações entre elas.

Por um lado, a existência combinada de condições gerais de produção e unidades de produção particulares leva a dividir os capitalistas em duas classes sociais, consoante uma clivagem estabelecida entre a burguesia, vocacionada para a particularização da propriedade e, portanto, decorrente das unidades particulares, e os gestores, vocacionados para formas colectivas de propriedade e, por isso, decorrentes das condições gerais. Tanto os burgueses como os gestores se definem enquanto capitalistas porque controlam o tempo de trabalho alheio e não têm o seu próprio tempo de actividade controlado exteriormente, o que implica uma apropriação de mais-valia. Mas os moldes desta apropriação são distintos, porque enquanto os burgueses são proprietários pessoais, individualmente considerados, os gestores apoderam-se de mais-valia apenas enquanto membros de uma administração colectiva e não a título pessoal. Assim, no conjunto dos capitalistas a concorrência na produção exprime-se socialmente na articulação contraditória estabelecida entre a burguesia e os gestores.

É certo que podem existir também gestores nas unidades de produção particulares detidas por burgueses, mas têm aí uma posição subordinada, enquanto membros de uma administração colectiva presidida por um ou mais elementos da burguesia. E é certo também que algumas condições gerais de produção podem apresentar-se formalmente como propriedades burguesas, mas nesta situação os burgueses agem estritamente como gestores e toda a estrutura dessas empresas obedece ao modelo da administração colectiva. Em ambos os casos, portanto, se mantém a vocação preferencial da burguesia para as unidades particulares e dos gestores para as condições gerais, com a respectiva diferença nas formas de apropriação da mais-valia.

Por outro lado, a concorrência na esfera da produção implica que a globalidade dos trabalhadores seja colectivamente explorada pela globalidade dos capitalistas. A exploração não se circunscreve ao quadro de cada empresa, num sistema em que a exploração total resultaria da soma, ou da média, das múltiplas explorações particulares e em que, por conseguinte, haveria uma equivalência entre a globalidade do capitalismo e uma empresa solitária, e inversamente. No modelo que apresento, a totalidade dos capitalistas apropria-se globalmente da mais-valia produzida pela totalidade dos trabalhadores, e é a concorrência na esfera da produção, visando reduzir a um mínimo o tempo de trabalho incorporado, que leva alguns capitalistas a situarem-se num plano preferencial na repartição da mais-valia.

Assim, do mesmo modo que a noção de concorrência na produção obriga a reformular as relações entre os capitalistas, leva também a pensar de outra maneira as relações entre trabalhadores e capitalistas, colocando o centro desse antagonismo directamente nas relações sociais de trabalho e não nos limites jurídicos de cada empresa. O foco são as relações de produção e nunca as relações de propriedade. Ou, reformulando esta conclusão noutra perspectiva, o mercado livre-concorrencial pode desaparecer sem que por isso se extinga a exploração de mais-valia, que decorre das relações de trabalho, e também sem que se elimine a concorrência entre capitalistas, que tem lugar na esfera da produção e não nas relações de propriedade.

Chegamos aqui ao ponto em que a reestruturação das teses de Marx tem as consequências práticas mais devastadoras, porque se a luta anticapitalista deve visar a transformação das relações de trabalho e não apenas das relações de propriedade, então as nacionalizações, que na verdade consistem numa estatização, dizem exclusivamente respeito ao conflito entre os gestores, interessados pelo carácter colectivo da propriedade, e os burgueses, circunscritos às propriedades particulares. A ambiguidade semântica do termo esquerda cobre a ambiguidade de um secular processo histórico em que os gestores têm conseguido atrelar os trabalhadores aos seus interesses, escamoteando a alteração das relações de trabalho sob a simples mudança do sistema de propriedade, e as variadas correntes políticas que se reivindicam do marxismo têm sido um elemento activo neste processo.

A devastação ocasionada pela noção de concorrência na esfera da produção tem repercussões práticas ainda mais amplas. Com efeito, se a globalidade dos trabalhadores é explorada pela globalidade dos capitalistas, então fica sem fundamento a noção geopolítica de imperialismo, que atribui à população dos países mais desenvolvidos, capitalistas e trabalhadores amalgamados, a capacidade de explorar os trabalhadores dos países menos desenvolvidos ou de beneficiar dessa exploração. Pelo contrário, na perspectiva que aqui apresento o imperialismo é uma parte componente da concorrência na esfera da produção, que se processa entre capitalistas. E é precisamente porque os capitalistas dos países ou regiões menos desenvolvidas estão numa posição de inferioridade no acesso às condições gerais de produção mais sofisticadas e de repercussões mais vastas que eles se mantêm em patamares inferiores da mais-valia relativa ou mesmo se circunscrevem à mais-valia absoluta, com menores lucros e com as respectivas consequências sobre os salários do pessoal que aí labora. Mas isto significa que os trabalhadores dos países desenvolvidos são mais explorados, porque se inserem em patamares superiores de mais-valia relativa, que exigem melhores qualificações e mais intensidade do esforço, ou seja, requerem uma maior complexidade do trabalho. E é a produtividade inerente à mais-valia relativa que permite aos trabalhadores inseridos neste processo auferirem salários que nominalmente parecem mais elevados, mas que correspondem a um maior desfasamento (defasagem) entre o tempo de trabalho despendido no processo de produção e o incorporado nos bens e serviços adquiridos pelos trabalhadores. Entretanto, é este superior grau de produtividade, pressionando à definição do tempo de trabalho como tempo mínimo, que garante lucros superiores aos capitalistas das empresas de ponta, enquanto os capitalistas dos países ou regiões menos desenvolvidas, ligados a processos menos produtivos, têm menores lucros, embora os trabalhadores desses países e regiões estejam sujeitos a um grau de exploração menor, devido ao menor grau de complexidade do trabalho que executam. As ilusões criadas por este aparente paradoxo sustentam a conversão da noção económica de imperialismo numa noção geopolítica. Uma vez mais, a ambiguidade semântica do termo esquerda cobre a ambiguidade de um processo histórico em que os capitalistas dos países e regiões retardatárias procuram atrelar os trabalhadores desses países e regiões à sua luta política contra os capitalistas das empresas mundialmente mais desenvolvidas, e directa ou indirectamente o marxismo tem servido de inspiração ou de justificação para essa ambiguidade. Foi assim que o marxismo deslizou da luta de classes para a geopolítica.

No âmbito teórico, a reformulação das noções de Marx tem efeitos igualmente vastos. Se a extorsão de mais-valia resulta de dadas relações de trabalho e se o carácter social dos produtos não decorre da existência de um mercado livre-concorrencial, mas advém directamente da competição entre as empresas na esfera da produção, então o mercado deixa de ser o lugar central das relações sociais no capitalismo e passa para um plano acessório — o que, aliás, obriga a encarar sob outra óptica a questão da transformação do valor em preços, que tantas rasteiras passou a Marx. O estabelecimento do mercado não é uma característica definidora do capitalismo e sabemos agora da existência de mercados nos modos de produção anteriores, inclusivamente onde não ocorria sequer produção mercantil. Mas neste aspecto, além de ter sido aprisionado pelos seus próprios erros de perspectiva, Marx ficou necessariamente cativo dos conhecimentos historiográficos da sua época, em que mal se esboçavam os primeiros ensaios de antropologia económica. Verdadeiramente lastimável é o facto de hoje, quando tanto se descobriu e avançou no estudo destas questões, um enorme número de marxistas preferir aprender com Marx aquilo que Marx ignorava. Ora, a reformulação das concepções marxistas relativas ao mercado exige que se reformule também a concepção marxista de dinheiro.

Há muitos anos, quase cinquenta anos, quando reli O Capital para preparar o Marx Crítico de Marx, duas coisas me incomodaram sobremaneira: o tratamento do dinheiro e a ausência de uma reflexão sobre o Estado.

Quanto à ausência do Estado, ainda hoje não entendo por que motivo Marx adoptou em O Capital a visão manchesteriana de Ricardo quando, conhecendo nós as suas preocupações, pareceria mais lógico que se inspirasse em Adam Smith, para quem a economia não decorria de automatismos, mas de uma interligação com as instituições. Em vez de tomar a Grã-Bretanha como modelo exclusivo, Marx deveria ter confrontado o caso britânico com o Segundo Império francês, e o modelo que resultasse desse exercício de história comparada teria aberto perspectivas que seriam valiosas nos séculos seguintes.

A minha noção de Estado Amplo visa colmatar aquela lacuna de Marx. Por oposição ao Estado Restrito, que defino como o Estado capitalista clássico, ou seja, o governo, o parlamento e o poder judiciário, defino o Estado Amplo como o exercício da soberania pela globalidade das empresas. Antes de mais, as empresas, dentro de limites legais muito latos, são soberanas relativamente à sua força de trabalho, porque não pode haver maior autoridade do que aquela que se exerce ao controlar o tempo alheio. Novamente atribuo o lugar central às relações de trabalho, que são o fundamento e o principal pilar da soberania detida pelas empresas. E assim, mesmo nos casos em que a interferência do Estado Restrito na economia possa ser mínima, a noção de Estado Amplo impede o recurso exclusivo à perspectiva de Ricardo e obriga a reatar com a perspectiva institucional de Adam Smith. A definição de Estado Amplo e a sua articulação com o Estado Restrito resultam de uma tentativa de superar aquela que me pareceu a mais grave lacuna de O Capital.

Quanto ao modo como Marx tratou o dinheiro em O Capital, deixou-me profundamente insatisfeito o seu apego a uma modalidade arcaica de dinheiro, proveniente do mercantilismo, que o levou a pôr de lado e desprezar os esboços de formas pecuniárias inovadoras e adaptadas às exigências do capitalismo. Para dizer em poucas palavras algo que deveria ocupar algumas centenas de páginas, aquela noção mercantilista de dinheiro estava intimamente ligada à noção iluminista de matéria, ambas deixando O Capital refém de concepções que, se já então eram retardatárias, hoje são verdadeiramente defuntas. Aliás, foi este o cerne do artigo em que satirizei a noção de capital fictício.

Logo depois de ter terminado o Marx Crítico de Marx comecei a estudar os prolegómenos do dinheiro no capitalismo e depressa entendi que as formas pecuniárias do mercantilismo foram o termo de uma longa evolução. Decidi então averiguar a questão a partir da raiz e gastei vinte e quatro anos a pesquisar e escrever o Poder e Dinheiro. Talvez mais do que todos os outros aspectos, é a abordagem do dinheiro que pior envelheceu na obra de Marx, e apesar disso é ela que algumas correntes do marxismo mais invocam na crítica ao capitalismo actual.

Todavia, as concepções de dinheiro em O Capital não padecem apenas dos limites intrínsecos dessa obra, mas sofrem igualmente, ou talvez mais, com a ignorância de sistemas económicos e pecuniários que só haveriam de ser revelados pelos progressos da antropologia e da historiografia nos finais do século XIX e ao longo do século XX. Assim, uma análise crítica da concepção marxista de dinheiro deverá partir do estudo comparado de uma multiplicidade de formas pecuniárias arcaicas numa variedade de sistemas económicos, para então esboçar um modelo geral do dinheiro, que integre todas essas formas. Só em seguida será possível analisar o dinheiro no capitalismo.

Praticamente não houve sociedades sem dinheiro, quaisquer que fossem os seus suportes materiais, e em várias sociedades circularam paralelamente diferentes tipos de dinheiro, cada um em circuitos próprios e com funções específicas. Mas o estudo comparado serve para reduzir a complexidade a traços comuns, e vemos então que em qualquer das múltiplas formas que tem adoptado ao longo de milénios, o dinheiro é composto por sistemas de signos convencionais destinados a satisfazer simultaneamente duas funções: a de sinalizar e a de articular relações sociais. E conclui-se então que, definido como veículo de informação e agente de relacionamento, o dinheiro é uma modalidade de linguagem. É no quadro de uma teoria geral do dinheiro assim esboçada que podemos entender os mecanismos pecuniários específicos do capitalismo.

No capitalismo o dinheiro tem duas funções óbvias, a de constituir uma forma de sinalização nos mercados e a de estabelecer uma ponte entre o presente económico e o futuro, mediante o crédito. Esta dualidade corresponde a duas funções básicas da linguagem, a descrição e a antecipação, ou seja, a constatação e a previsão.

Mas no capitalismo o dinheiro tem ainda uma função dissimulada, sem a qual este sistema económico não poderia existir, a de converter as mudanças qualitativas em séries quantitativas. Com efeito, noutros sistemas o processo de exploração era patente e as porções que cabiam aos exploradores e aos explorados ficavam bem demarcadas. A mais-valia, porém, resulta de um desfasamento de tempos, entre o tempo de trabalho despendido no processo de produção e os tempos de trabalho incorporados nos bens e serviços consumidos pelo trabalhador, e o dinheiro encobre esta disparidade. Além disso, o dinheiro oculta o aumento da complexidade do trabalho, que caracteriza a mais-valia relativa, tal como oculta a redução do tempo de trabalho incorporado nos bens que os trabalhadores consomem, devida ao aumento da produtividade. Explicando melhor, o dinheiro permite que o tempo de trabalho despendido no processo de produção seja medido pelo relógio, iludindo assim o possível aumento de complexidade desse tempo de trabalho, que na verdade corresponde a um aprofundamento do tempo no interior dos mesmos limites horários. O dinheiro ilude também a possível redução do tempo de trabalho incorporado nos bens e serviços adquiridos pelos trabalhadores, dissimulando as diferenças de tempo na materialidade e particularidade de cada bem ou serviço. Em suma, o dinheiro no capitalismo serve para ocultar o desfasamento entre o tempo de trabalho despendido e o incorporado e para ocultar os efeitos exercidos pelo aumento da produtividade sobre o processo de exploração, e sem este conjunto de ilusões pecuniárias as relações sociais capitalistas não poderiam vigorar.

É precisamente para este complexo de funções que serve a linguagem, assinalando e ao mesmo tempo silenciando, e talvez o não-dito seja o mais importante em cada discurso. Se assim for, o explícito servirá sobretudo para incluir o implícito. Todos sabemos que uma parte indispensável da arte de falar é não dizer, dizendo. Ora, enquanto sistema convencional de signos convencionais, a linguagem não pode deixar de ser social e, aliás, ela constitui a condição de articulação da estrutura social. É na complexidade desta tríade, articulando relações sociais entre a sinalização e a dissimulação, que o dinheiro, enquanto linguagem, exerce as suas funções no capitalismo. Sem extravasar os limites de um curto artigo, é pouco o que eu agora escrevi acerca do dinheiro ou é muito? Uns acharão que não é nada e outros que é demasiado. Mas quem quiser retomar a questão com seriedade poderá recordar um ensaio que aqui publiquei há quatro anos, Anticapitalismo. Anti o quê?, e no quinto capítulo forneci as indicações suficientes para se entender o dinheiro como linguagem e o lugar desta linguagem no capitalismo. Bastará puxarem as pontas para o novelo se ir deslindando. Desde que, evidentemente, o queiram fazer.

Neste percurso antecipado pelas linhas iniciais do meu prefácio de 1977, o ponto de chegada revela-se muito diferente do ponto de partida, que foi a obra de Marx. Qual é, então, a minha relação com o marxismo? Manolo chamou a atenção para algo que eu não devia desconhecer, que o facto de usar conceitos aparentemente semelhantes a alguns empregues por Marx não significa que os modelos teóricos se equivalham. Apesar disso, creio que permaneci fiel ao ímpeto central da obra de Marx e nela encontrei inspiração, positiva ou negativa, para praticamente tudo o que escrevi. A fidelidade não consiste em embalsamar uma obra, mas em fazê-la renascer, e foi o que tentei ensaiando uma crítica marxista do marxismo. Isto significa que para mim, e desde há muito tempo, as teorias de Marx — visto que houve várias, e frequentemente contraditórias — devem ser convertidas de respostas em perguntas. E as perguntas existem para tentarmos responder-lhes. Aliás, é assim que todo o conhecimento avança, transformando as respostas em perguntas e de novo esforçando-se por detectar quais são as perguntas que podem formular-se a partir das respostas dadas às perguntas anteriores. O problema é que os marxistas, quase sem excepção, lêem Marx para encontrar respostas, não para fazer perguntas.

E as perguntas não surgem apenas analisando as contradições internas de um sistema teórico. As perguntas também surgem do choque com as novas realidades que inevitavelmente nos surpreendem.

Pode ler aqui a segunda parte deste artigo.

As ilustrações desta primeira parte do artigo reproduzem obras, ou detalhes de obras, de Mark Bradford (1961-       ).

10 COMENTÁRIOS

  1. Em seu livro A moeda e a lei: uma história monetária brasileira, 1933-2013, o economista Gustavo Franco colocou a seguinte epígrafe de Jorge Luís Borges (“El Zahir”. Em: O aleph. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p 113):

    “Pensei que não existe nada menos material que o dinheiro, já que qualquer moeda … é, a rigor, um repertório de futuros possíveis. O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde nos arredores, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo pelo ouro; é um Proteu mais versátil que o da ilha de Faros. É tempo imprevisível, tempo de Bergson, não o duro tempo do Islã ou do Pórtico. Os deterministas negam que haja no mundo um único fato possível, id est um fato que pode acontecer; uma moeda simboliza nosso livre-arbítrio.”

    Não conheço a obra de Borges o suficiente para discuti-la, mas conheço a de Gustavo Franco o suficiente para saber que a escolha da epígrafe não foi de modo algum gratuita, ou movida por pura afinidade estética. Enquanto isso, no lado de cá…

  2. -> 《Mas no capitalismo o dinheiro tem ainda uma função dissimulada, sem a qual este sistema económico não poderia existir, a de converter as mudanças qualitativas em séries quantitativas.》

    ->《Em suma, o dinheiro no capitalismo serve para ocultar o desfasamento entre o tempo de trabalho despendido e o incorporado e para ocultar os efeitos exercidos pelo aumento da produtividade sobre o processo de exploração, e sem este conjunto de ilusões pecuniárias as relações sociais capitalistas não poderiam vigorar.》

    Leio no comentário imediatamente anterior uma referência a Gustavo Franco. Sendo este um monetarista, nada mais óbvio se curvar diante do altar do deus Dinheiro. Afinal, para os moedeiros falsos a única religião verdadeira é o Capitalismo.

    Já com J.L. Borges temos a oportunidade de compreender a realidade (assim denominada) como um labirinto de espelhos com reflexos se bifurcando ao infinito. Quanto mais nos aproximamos do centro do labirinto, menos chegamos a lugar algum.

    Entretanto, não há outra realidade sequer além das relações sociais de produção. Nem o Capital, menos ainda o dinheiro, criam mundo algum.

    Sob relações sociais de opressão e exploração, a linguagem (por sua vez articuladora destas relações) não pode ter outra função a não ser ocultar e silenciar justamente a produção da própria realidade. A qual passa a ser um dado natural e constante.

    Esta é a função exercida no Capitalismo pelo dinheiro, enquanto linguagem.

    Pergunta: Praticamente não houve sociedades sem dinheiro? Resposta: praticamente não houve sociedades sem relações sociais de opressão e exploração…

    Pergunta: qual a linguagem capaz de articular relações sociais emancipatórias?
    Resposta? Certamente não o dinheiro.

  3. “É certo que podem existir também gestores nas unidades de produção particulares detidas por burgueses, mas têm aí uma posição subordinada, enquanto membros de uma administração colectiva presidida por um ou mais elementos da burguesia. E é certo também que algumas condições gerais de produção podem apresentar-se formalmente como propriedades burguesas, mas nesta situação os burgueses agem estritamente como gestores e toda a estrutura dessas empresas obedece ao modelo da administração colectiva.”

    João, se antes o virtual existia em sua potência na simulação do real o desenvolvimento da computação e das tecnologias de informação o elevou ao status de hiper-real. Será que não poderíamos já considerar o Waze uma Unidade de Produção Particular que apresenta-se formalmente como Condição Geral de Produção – formalmente porque ninguém de fato parece conhecer a empresa Waze, embora o serviço ofertado via aplicativo, que simplesmente cruza as informações de todos os seus usuários entre si para oferecer os melhores caminhos, seja cada vez mais imprescindível (eu mesmo não chego a lugar algum sem o Waze) – ? E se o planejamento de fluxo pode oferecer melhora no trânsito ao contribuir com o descongestionamento [ https://singep.org.br/4singep/resultado/246.pdf ], algo que por si só me parece ter muita característica de CGP – ou de elemento constituinte de CGP – o Waze for Cities (que promove a cooperação entre aplicativo e poder público, no caso de São Paulo a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Mobilidade e Trânsito (SMT) e da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e o próprio Waze [ https://alotatuape.com.br/com-waze-cet-amplia-medicao-do-transito-em-sao-paulo-para-20-mil-km-saiba-como/ ] ) parece deixar mais tênue ainda a relação Estado Amplo e Estado Restrito. Exemplos como o do Waze não poderiam servir para o acréscimo de uma terceira forma (considerando as duas que você apresentou no comentário acima) surgidas do cruzamento de Unidades de Produção Particulares e Condições Gerais de Produção – como disse acima, de Unidades de Produção que se comportam como CGP? Não me parece que os burgueses donos do Waze se comportem como administradores públicos, muito pelo contrário. É através de informações públicas de obras, da antecipação de ações da prefeitura, etc, que o Waze se tornará mais robusto e certeiro, o que certamente o colocará à frente de outros apps concorrentes, a importância aqui é em oferecer mais informações que batam com o real do que dos competidores. Ao mesmo tempo, parece haver uma “terceirização” do Estado em relação ao controle de fluxo para os próprios usuários através da mediação tecnológica do Waze. Com a ideia das “cidades inteligentes” não posso deixar de pensar o quanto essas integrações Unidades Produtivas e Condições Gerais de Produção vão se intensificar, a ponto de termos controle de sinalizações também mediados pelo Waze (ou pelas informações disponibilizadas por ele e processadas por algum modelo de Machine Learning).

  4. Prezado João Bernardo,

    Na sua obra constantemente vê-se que “Tanto os burgueses como os gestores se definem enquanto capitalistas porque controlam o tempo de trabalho alheio e não têm o seu próprio tempo de actividade controlado exteriormente, o que implica uma apropriação de mais-valia” e que “os trabalhadores dos países desenvolvidos são mais explorados, porque se inserem em patamares superiores de mais-valia relativa, que exigem melhores qualificações e mais intensidade do esforço, ou seja, requerem uma maior complexidade do trabalho. E é a produtividade inerente à mais-valia relativa que permite aos trabalhadores inseridos neste processo auferirem salários que nominalmente parecem mais elevados, mas que correspondem a um maior desfasamento (defasagem) entre o tempo de trabalho despendido no processo de produção e o incorporado nos bens e serviços adquiridos pelos trabalhadores”

    Ao focar e dar ênfase na análise da exploração sob a ótica da mais valia relativa, da qual resulta que “trabalhadores dos países desenvolvidos são mais explorados” e que ganham, na prática, salários menores, dá a impressão que estas análises se restringem apenas ao seu aspecto econômico. Países como Holanda, Dinamarca, Alemanha, os trabalhadores, embora com menores jornadas de trabalho e melhores condições de trabalho e de vida, seriam mais explorados porque produzem mais em menos tempo graças ao avanço tecnológico e sua qualificação profissional. Enquanto países como Índia, Indonésia, Brasil, embora com maiores jornadas de trabalho e piores condições de trabalho e de vida, seriam menos explorados por terem menos tecnologia e qualificação profissional… E falo isso sem qualquer apologia a nacionalismos, imperialismo, ou “marxismos”.

    Se o tempo é a “substância do capitalismo”, parece-me que também o é para a classe trabalhadora. Se ele é explorado, quer pela mais valia absoluta, quer pela mais valia relativa, em termos práticos (falando a grosso modo), uma hora de trabalho, em sua vida real, continuará sendo uma hora de trabalho. Portanto, uma jornada de seis horas para ele, trabalhador, serão seis horas de trabalho. Se for de oito, oito. De dez, dez e assim por diante, ainda que das jornadas gerem reultados diversos para os trabalhadores (como para os capitalistas). Para ilustrar um ponto de vista prático: se o trabalhador de tal lugar “desenvolvido” produzir em uma hora o equivalente a 4 sacos arroz e receber 1/4 em salário (1 sacos de arroz) e outro, de um lugar não tão “desenvolvido”, produzir no mesmo tempo o equivalente a 1 saco de arroz (quatro vez menos que o outro trabalhador) e receber em salário 1/2 (meio saco de arroz, proporcionalmente o dobro do outro trabalhador), ainda assim, terá, de fato, metade do arroz que o outro trabalhador…

    É neste sentido que entendo que suas análises e conclusões da relações sociais do trabalho me pareçam estritamente econômicas… Pois se “a globalidade dos trabalhadores é explorada pela globalidade dos capitalistas” o resultado da exploração (que, pelo lógica, também deve ser global), quer pela mais valia absoluta, quer pela mais valia relativa, ao meu entender, é similar PARA A CLASSE TRABALHADORA, ainda que com consequências diferentes em seu interior.

    Grato pela atenção!

  5. Arkx Brasil,
    Eu intitulei o último capítulo de um ensaio publicado em 2019 A Utopia de uma Sociedade Transparente, que sintetizei com a frase «Pretender que o dinheiro obnubila a sociedade é o mesmo que pretender que a linguagem obnubila a realidade». Para lá remeto os leitores suficientemente interessados. Note-se que não pretendo convencer ninguém, apenas deixar claro aquilo que penso.

    ***

    Anarco-aceleracionista,
    Nesta primeira parte eu tentei apenas sintetizar os eixos condutores de um trabalho que é anterior a esses desenvolvimentos mais recentes. Mas voltarei a isto na segunda parte do artigo.

    ***

    Fernão Capelo,
    Sempre insisti que o tempo de trabalho não deve ser medido pelo simples horário de trabalho. Dentro do mesmo horário o trabalho pode 1) aumentar de intensidade, ou seja, diminuir a porosidade, de modo que há mais acções de trabalho no interior dos mesmos limites horários. Além disso, 2) as qualificações dos trabalhadores podem aumentar, o que significa que dentro do mesmo horário fazem um trabalho qualitativamente diferente. Ao conjunto de aumento da intensidade e aumento das qualificações eu chamo aumento da complexidade do trabalho. E, tal como tenho insistido inúmeras vezes, o aumento da complexidade do trabalho representa como que um aprofundamento do tempo no interior dos mesmos limites horários. Numa analogia, é como se o horário medido pelo relógio fosse apenas uma superfície plana, com duas dimensões, e o aumento da complexidade do trabalho exige a introdução de uma terceira dimensão, o tal aprofundamento do tempo, que mencionei. Por favor, leia neste artigo o parágrafo que começa com a frase «Mas no capitalismo o dinheiro tem ainda uma função dissimulada». Aliás, introduzo aqui uma observação. Li ontem que recentemente, na China, começou a observar-se uma tendência entre os jovens altamente qualificados para procurarem empregos que requerem menores qualificações. Creio que o que aqui disse muito resumidamente explica esse aparente paradoxo.

    O crescimento da mais-valia relativa significa precisamente o aumento da complexidade do trabalho. Mas significa outra coisa também, um aumento da produtividade que faz com que, dentro dos mesmos limites horários, seja produzido um número crescente de bens e serviços. A conjugação destes dois aspectos implica, de um lado, o aumento do tempo de trabalho despendido pelo trabalhador. Mas, do outro lado, implica uma tão grande redução do tempo de trabalho incorporado nos bens e serviços consumidos pelo trabalhador, que este pode consumir um maior número de bens e serviços e, no entanto, ser menor o tempo de trabalho total incorporado no conjunto desses bens e serviços. Tal como disse no artigo, uma das funções do dinheiro no capitalismo é ocultar a conjugação destes dois aspectos. Para empregar a mesma analogia de há pouco, o dinheiro representa uma superfície plana, enquanto a noção de mais-valia relativa exige uma terceira dimensão.

    Finalmente, tenho insistido também que a articulação entre a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa não deve ser concebida como uma dicotomia geopolítica. As formas da mais-valia absoluta existem em todos os países e todas as regiões. Nunca a mais-valia relativa tem progredido sem ter atrelada a mais-valia absoluta. Pode, no entanto, suceder que haja países ou regiões onde não existam praticamente modalidades de mais-valia relativa, mas são muito raros, talvez só um pequeno número de países africanos.

  6. Pergunta: o tempo seria a substância do Capitalismo? Resposta: como se dá no Capitalismo a produção de Valor?

    Resposta? Ao perguntarmos tanto a Marx quanto a João Bernardo, temos a resposta do Valor definido como “Tempo” de Trabalho.

    Porém (e aqui temos o salto de complexidade) o Tempo, antes de ser o passo a passo do cronômetro fabril, vem a ser uma intensidade que só pode ser percebida através de uma experiência de vida.

    Sob o Capitalismo, esta experiência de vida adquire a forma da mais-Valia. Seja em sua manifestação absolutamente brutal ou de modo relativo e complexo, mas mesmo assim tão devastador quanto.

    A extração da mais-valia exige um método de manipulação do tempo de vida do trabalhador. Para um contínuo incremento da taxa de lucro, é necessário produzir sempre mais em sempre menos tempo.

    Como consequência, num regime de mais-valia relativa o desgaste psico-emocional do trabalhador é ainda maior, proporcionalmente, do que seu desgaste físico sob um regime de mais-valia absoluta.

    Deve-se sempre ressaltar que os dois regimes não se concretizam em estado puro, tampouco um pode existir sem o outro.

    Afinal, o Capitalismo não é restrito a uma só empresa (a uma única Unidade Particular de Produção) e sim determina Condições Gerais de Produção, as quais a totalidade das empresas estão sujeitadas.

    Portanto, os gestores sistêmicos do Capitalismo (responsáveis pelas Condições Gerais de Produção) prevalecem sobre os proprietários dos meios de produção (as Unidades Particulares, enquanto empresas específicas).

    Deixando também explícito como as relações sociais definem as características de um modo de produção, e não meramente as relações de propriedade.

    Tendo disto como exemplo no passado imediato, a URSS. E no presente, a China gerida pelo mandarinato do Comitê Central do PC.

    Todavia, qualquer tentativa de gerir o Capitalismo está de antemão fadada ao fracasso, por tratar-se de um sistema intrinsecamente irracional.

    A expansão ilimitada da taxa de lucro não só é impossível como provoca ciclos, cada vez mais catastróficos, de destruição do próprio Capital (fixo e variável).

    Até alcançarmos o exato momento atual, no qual o Capitalismo já não pode se reciclar dado o nível de destruição requerido. E outro não é o motivo, senão este, da situação de impasse na Guerra na Ucrânia.

    Como não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo, cabe perguntar: quais relações sociais podemos estabelecer para tentar superar estes tempos atrozes?

    Quais formas de luta já trazem em si, mesmo de forma embrionária e incipiente, relações sociais de antecipação de um modo de produção comunista?

    Resposta?

    Estas formas de luta exigem a form-ação de comunidades, as quais por sua vez devem se enraizar num território (assim sendo, erguer-se da Terra) e ter a Autonomia como meio e fim.

    Como fazer? Pergunta.

  7. “O aumento da produtividade numa dada empresa pressupõe o conhecimento dos processos de fabrico nas restantes, quer produzam bens semelhantes, quer produtos complementares, exigindo-se para isso uma relação tecnológica entre as unidades de produção. É a partir de uma base comum de inter-relação tecnológica que as empresas vão entrar em concorrência pelo crescimento da produtividade. Esta estreita integração tecnológica faz com que o conjunto das empresas no capitalismo seja bastante mais do que a mera soma das unidades. Estabelecem relações recíprocas, já que são obrigadas a ter em conta os melhoramentos técnicos que levam à diminuição do tempo de trabalho incorporado nos produtos fabricados nas outras empresas, para poderem diminuir mais ainda o tempo de trabalho incorporado nos produtos que elas mesmas fabricam”(BERNARDO, 1979, p. 21).

    *** *** ***

    É curioso a pouca mudança que Bernardo teve desde a segunda metade da decada de 70:

    “os novos inimigos permanecem sempre ocultos, e só os lapsos de uns e as ações inesperadas dos outros explicariam o curso imprevisto dos acontecimentos, como nas peças de vaudeville” (BERNARDO, 1979, p. 61).

  8. Caro João Bernardo,
    Felicito-te pelo artigo e aproveito para te perguntar: poderias partilhar connosco dalgumas das principais referências que te utilizaste para avançar nos estudos em Antropologia Económica? Li num artigo teu chamado “Para uma teoria do modo de produção pré-capitalista” que Marcel Mauss foi-te um desses autores importantes.
    Outra coisa: quando afirmas no artigo que “É precisamente para este complexo de funções que serve a linguagem, assinalando e ao mesmo tempo silenciando, e talvez o não-dito seja o mais importante em cada discurso”, fizeste-me lembrar dos estruturalistas. Lembro-me também que – respondendo a um comentário dum outro artigo teu em parceria com Manolo – afirmaste que foi “muito influenciado pelo estruturalismo, e de uma maneira definitiva, mas mais através da linguística do que de Althusser”. Também poderias falar dos autores estruturalistas de viés linguístico que te influenciaram dessa maneira?
    Agradeço-te, João,
    Saudações!

  9. Caro Dante Gabrieli,

    As minhas leituras de linguística foram curtas e nada tiveram de original, sobretudo nomes incontornáveis como Saussure e Hjelmslev. Li-os muito cedo, com vinte e poucos anos, por isso marcaram-me muito profundamente, quanto ao método e não quanto aos detalhes. Ora, as influências relativas ao método são, ao mesmo tempo, mais presentes e mais difíceis de detectar. Anos depois li mais extensamente Émile Benveniste, que me influenciou muito, sobretudo para a historiografia.

    Marcel Mauss é um clássico, mas se você procurar, no Poder e Dinheiro, os capítulos relativos ao dinheiro, encontrará numerosas referências de antropologia económica, quando comparo as formas pecuniárias que se desenvolveram no regime senhorial europeu com as que se encontram noutros sistemas económicos, de outras culturas e sociedades. Aí poderá ver essas referências no contexto.

    Já agora, um seguidor imediato de Marcel Mauss foi o grande medievista Marc Bloch, que empregou no estudo do regime senhorial europeu perspectivas que haviam sido usadas pela antropologia no estudo de outras sociedades e outros sistemas. Deste modo Marc Bloch ampliou muito o quadro da história comparada, exactamente o contrário do que hoje se faz.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here