Por João Bernardo

2. Perguntas

Mais de século e meio depois de Karl Marx ter escavado os alicerces e erguido a obra, o que resta de válido para além da dialéctica dos tempos de trabalho na definição da mais-valia?

O perfil das classes sociais mudou, como mudaram a sua cultura e a sua dinâmica interna. Também mudaram inteiramente as técnicas, e a tecnologia global transformou-se de cima a baixo e alcançou com os computadores uma nova dimensão, cujos limites somos incapazes de imaginar. As estruturas do Estado alteraram-se e adquiriram uma expansão tentacular que nem os profetas mais pessimistas do século XIX alguma vez anunciaram. Ao mesmo tempo, a vida política transformou-se profundamente, sobretudo com o aparecimento do fascismo que, enquanto cruzamento entre extrema-direita e extrema-esquerda, cada uma repercutindo na outra os seus temas principais, precipitou o socialismo para o campo do nacionalismo e tragicamente seduziu muitos marxistas. Essa mesma sedução emana agora do fascismo pós-fascista — os identitarismos que absorveram e capturaram a maior parte do que ainda resta de marxistas. Inevitavelmente as noções políticas e sociais adquiriram outros conteúdos, quando não se extinguiram naquele campo de batalha, ou cemitério, a que chamamos História.

O que vejo é um mundo sem imagem nem antecipação na obra de Marx. Apesar disto, os marxistas persistem em procurar a realidade actual nos livros amarelecidos, em vez de considerá-los como um testemunho, um incentivo e sobretudo uma busca tacteante. O resultado está aí, porque quem dirigir olhando só para o retrovisor inevitavelmente esbarra com o que lhe surge em frente.

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A luta dos trabalhadores pela apropriação das técnicas capitalistas, enquanto base para uma sociedade de abundância em que elas possam ser usadas de outra maneira e noutras relações de trabalho, foi substituída pela apologia de algumas técnicas pré-capitalistas ou, aliás, de mitos nelas inspirados. É este o programa dos movimentos ecológicos, que imediatamente implica o decrescimento económico. A abundância foi transformada de objectivo em palavra feia. Já não se trata de uma crítica às relações sociais capitalistas, mas ao capitalismo desenvolvido, ou seja, é um movimento em prol da mais-valia absoluta — o que nada tem de estranho, pois é este mesmo o pedigree da ecologia.

Os devotos da ecologia são alheios à História, nem poderiam deixar de o ser, senão teriam de reconhecer a sua filiação nos fascismos, que invocaram a ecologia como justificativa ideológica para a ampliação da mais-valia absoluta. O Terceiro Reich foi ainda mais longe. Só virando as costas aos factos se poderá iludir a filiação da agricultura orgânica na antroposofia de Rudolf Steiner, revista e corrigida pelo Ministério dos Abastecimentos e da Agricultura do Terceiro Reich e inserida no conjunto de medidas práticas e de ideais que fez dos SS os pioneiros na sistemática promoção da ecologia. Mas os movimentos ecológicos actuais preferem ignorar tudo isto, nomeadamente o papel desempenhado pelos campos de concentração de Auschwitz e Dachau nas experiências de agricultura orgânica, bem como a acção do Instituto Germânico de Pesquisa Nutricional e Alimentar, de que os SS eram proprietários e gestores. A ecologia, com a agricultura orgânica em lugar de destaque, foi no Terceiro Reich uma componente indispensável do abandono parcial da exploração em sistema de mais-valia e da instauração de um novo modo de produção, um escravismo de Estado baseado numa colossal destruição técnica e humana. Esse metacapitalismo inaugurado pelo fascismo é o horizonte em suspenso perante os movimentos ecológicos.

Mas os ensaios de apropriação das técnicas capitalistas, que permitiriam liquidar a aura envolvendo os movimentos ecológicos, só são possíveis durante ocupações de empresa sistemáticas e duradouras. Será que as lutas de hoje, e mesmo as de amanhã, se orientam para este objectivo?

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Ricos e pobres, burgueses e proletários, gordos e magros — as dicotomias pareciam simples e perenes. Mas reduzir o socialismo a uma política de distribuição da riqueza é desviar a atenção do tema central, as relações de trabalho. Aliás, a diferença de rendimentos já não é um indicador da clivagem entre classes, tal como a gordura deixou de ser um indício de fortuna. No capitalismo desenvolvido o De pé, oh vítimas da fome! devia ser substituído por De pé, oh vítimas da obesidade! A questão fundamental não consiste em saber se alguém se alimenta bem ou mal e de quanto dinheiro dispõe, mas em saber quantos trabalhadores pode demitir.

A diferença de rendimentos e o seu corolário, o socialismo distributivo, contribuem também para confundir a situação interna da classe trabalhadora, porque os trabalhadores mais explorados são os que se inserem nos sistemas de mais-valia relativa, e são precisamente estes a auferir salários nominais superiores; enquanto o grau de exploração dos trabalhadores em sistemas de mais-valia absoluta é menor, embora sejam eles a receber os salários mais baixos. Por paradoxal que pareça, os trabalhadores na Suécia são muito mais explorados do que os do Haiti, e por isso é para a Suécia, e não para o Haiti, que afluem os investimentos externos directos. Temos aqui um exemplo da função dissimuladora do dinheiro no capitalismo, ocultando num sentido e no outro os efeitos da produtividade, porque quem contabilizar o tempo de trabalho só pelo horário medido no relógio e contabilizar a remuneração só pela quantidade de bens consumidos nunca entenderá o funcionamento da mais-valia relativa e, por isso, escapar-lhe-á toda a dinâmica do capital, nomeadamente o mecanismo motor do imperialismo.

Enquanto os conflitos sociais eclodirem nessa espuma da ilusão e ali se mantiverem, sem penetrarem mais fundo, o sistema continuará por desvendar e o capitalismo permanecerá sólido. Mas se para atingir o âmago do processo de exploração for indispensável a generalização das lutas, como conseguirão elas generalizar-se quando o ponto de partida é ilusório e o cenário é enganador?

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Cada vez menos a composição sociológica dos trabalhadores corresponde à sua definição económica enquanto classe. A definição económica resulta do processo de extorsão da mais-valia e formula-se em termos de tempos de trabalho, no desfasamento (defasagem) entre o tempo despendido pela força de trabalho e o tempo incorporado na força de trabalho. Nesta acepção estritamente económica e num modelo genérico simples, as posições relativas em que se situam a classe trabalhadora e as classes capitalistas permaneceram inalteradas desde a época de Marx e assim continuarão enquanto subsistir o capitalismo.

Por seu lado, a composição sociológica decorre de aspectos culturais, comportamentos e nível de vida, e além de estes não  constituírem uma transposição imediata da definição económica genérica das classes sociais, essa composição sociológica tem sofrido diferenciações internas crescentes. A principal linha de clivagem resulta do facto de a mais-valia relativa nunca ter deixado de contrastar com a mais-valia absoluta, pois o capitalismo tem sempre combinado a heterogeneidade destes dois sistemas. Não me refiro a qualquer repartição geopolítica do globo em Norte e Sul, países desenvolvidos e subdesenvolvidos, povos de uma cor e de outra cor, porque nos mesmos países e nas mesmas regiões onde progride a mais-valia relativa encontra-se igualmente a estagnação da mais-valia absoluta. Ora, como uma parte das empresas incluídas na mais-valia relativa tende a desenvolver formas superiores de produtividade e, portanto, a inaugurar novos ciclos de mais-valia relativa, isto significa que tende a aumentar a diferença entre os trabalhadores sujeitos à mais-valia absoluta e os sujeitos à mais-valia relativa. Este grande factor de heterogeneidade no seio da classe trabalhadora tem-se agravado incessantemente.

Não se trata apenas de uma heterogeneidade no montante nominal das remunerações, mas sobretudo no nível das qualificações, com tudo o que ele pressupõe de diferenças de instrução e escolaridade, de cultura, de modo de vida, de comportamento. E a heterogeneidade é mais grave ainda, porque opera igualmente no interior da esfera da mais-valia relativa e, se nuns conjuntos de empresas a mais-valia relativa progride, outros conjuntos ficam estagnados em formas anteriores que, por comparação com as formas modernizadas, adquirem um carácter de mais-valia absoluta. Com efeito, a diferenciação é dinâmica, ocorre em ciclos, e aquilo que num dado patamar de desenvolvimento era mais-valia relativa pode ser considerado mais-valia absoluta no patamar seguinte, em contraste com os progressos ocorridos noutras empresas ou sectores.

Neste contexto, é curioso que continue enraizado entre os marxistas o mito de que a expansão das máquinas aumentaria o desemprego. Quanta cegueira! Se assim sucedesse, já há muito que todas as pessoas teriam sido substituídas por máquinas e, em vez disso, a classe trabalhadora alastrou ao mundo inteiro e é cada vez mais numerosa. O que efectivamente se passa é que, na medida em que estimulam a economia, os sucessivos progressos técnicos contribuem para abrir novos ramos de produção e novas áreas de actividade, aumentando por aí a oferta global de empregos. Mas que empregos? Aumenta a criação de novos empregos cada vez mais qualificados, aptos a controlar, e agora programar, as novas máquinas; ao mesmo tempo, são suprimidos os empregos facilmente executados pelos novos conjuntos de instrumentos, e os trabalhadores que não conseguirem requalificar-se são precipitados para profissões de estatuto inferior. O desenvolvimento das técnicas e a reorganização da tecnologia, em vez de aumentarem o desemprego, recompõem a classe trabalhadora e tornam-na mais heterogénea.

Esta diversificação permanente e a permanente reformulação das diferenças tem como consequência agravar os contrastes sociológicos no interior da classe trabalhadora, na medida em que cresce a disparidade de qualificações, com tudo o que pressupõe. Cada vez é maior a distância de salários, de cultura e de modo de vida entre os trabalhadores mais qualificados, vocacionados para profissões em que a componente intelectual é superior, e os trabalhadores menos qualificados, vocacionados para operações em que é superior a componente física. Cada vaga de novas tecnologias não só exprime como aumenta esta diferenciação, e de agora em diante a adopção da Inteligência Artificial por um número crescente de sistemas produtivos irá precipitar a heterogeneidade interna da classe trabalhadora para dimensões ainda insuspeitadas. A continuar assim, este processo tende a eliminar os estratos profissionais intermédios e a provocar um hiato sempre mais pronunciado entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados, comprometendo definitivamente qualquer correspondência entre a definição económica da classe e a sua percepção sociológica.

Os marxistas procuram chamar a atenção para o antagonismo entre trabalhadores e capitalistas e para as contradições entre capitalistas, mas geralmente esquecem as contradições no interior da classe trabalhadora. A grande questão consiste em saber se a acção política pode ultrapassar a multiplicidade de comportamentos definidos sociologicamente e manter-se apenas sobre um quadro económico genérico desprovido de correspondência sociológica imediata. Na época de Marx o salto era fácil porque a heterogeneidade cultural da classe trabalhadora não era pronunciada, mas hoje só deparamos com indicações do contrário. Os marxistas actuais deviam ter-se apercebido desta situação, porque nos seus apelos políticos saltam da definição económica para a composição sociológica e inevitavelmente estatelam-se como o acrobata que, sem rede, se lança de um trapézio e não encontra o outro. Mas como só têm olhos para o passado, nem sequer entendem que caíram.

O certo é que a crescente diferenciação sociológica tem constituído um poderoso travão à generalização das lutas. A ocupação das empresas foi substituída pelas manifestações de rua, em que a violência aparece como sinónimo de radicalismo, quando é nas empresas que o capitalismo se sustenta, não nas ruas. E assim o capitalismo não só beneficia de um ritmo de desenvolvimento acelerado como também de uma ausência de contestação efectiva, e um propicia a outra, em ciclos que se auto-alimentam. Como poderá a classe trabalhadora, enquanto sujeito económico, romper esta situação e assumir-se como sujeito político?

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Nas últimas décadas, os trabalhadores cujos empregos foram secundarizados ou suprimidos pelo progresso tecnológico e se revelam incapazes de adquirir as qualificações requeridas pelos novos patamares da mais-valia relativa, em vez de apoiarem os partidos esquerdistas, que atribuem o declínio do estatuto profissional às mudanças tecnológicas, votam preferencialmente em partidos da extrema-direita radical ou criptofascistas, que atribuem a responsabilidade aos imigrantes. Esta reorientação dos votos sustentou a ascensão política de Donald Trump e o domínio que os seus seguidores adquiriram sobre o Partido Republicano, assim como explica os resultados eleitorais conseguidos por partidos fascistas ou fascizantes num número crescente de países europeus. E isto ocorre precisamente com aquela base social que os marxistas se haviam habituado a considerar sua por inerência. Como foi possível uma tão completa derrota, não só no plano das previsões teóricas, mas igualmente na prática política?

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Sem a crescente diferenciação sociológica da classe trabalhadora não teriam proliferado os identitarismos de sexo, de preferências sexuais, de cor da pele. De todas as muitas derrotas, esta destruição do universalismo foi a mais grave derrota sofrida pela esquerda.

Os velhos nacionalismos dividiram a classe trabalhadora mediante clivagens decorrentes de tradições culturais muito antigas, se não milenárias. Mas os identitarismos acrescentam a essas clivagens outras novas, numa série que desde início se anuncia como ilimitada, agravando as divisões entre os trabalhadores, e os identitarismos de sexo cruzam-se agora na reclamação dos mesmos corpos. Além disso, embora cada identitarismo se pretenda transnacional, na prática ocorre a fragmentação em pequenas capelas circunscritas, que se sobrepõem aos vastos espaços formados pelas nações. Uma das expressões mais extremas dessa segmentação é a frequência com que surgem as acusações de apropriação cultural, quando traços considerados pertinentes de uma identidade são copiados noutros lugares. E assim, em vez de se apresentar como um inspirador, cada identitarismo promove o encerramento em si próprio. Além de herdarem os defeitos dos nacionalismos, os identitarismos adicionaram-lhes outros — o puritanismo, a censura do politicamente correcto, a hipocrisia, a substituição da presunção de inocência pela presunção de culpabilidade, o preconceito como regra das relações humanas.

O lugar de fala, enquanto elemento central da política identitária, resulta da utilização do ressentimento como mecanismo de promoção social e indica o anseio de renovar as elites, retomando a dinâmica e o objectivo dos fascismos clássicos. Ao mesmo tempo, na permanente circularidade de um percurso em que a partir do biológico se deduz o cultural e em que o cultural serve para imaginar ou fantasiar o biológico, os identitarismos reproduzem as circunvoluções que sustentaram a mitologia racial e política do Terceiro Reich. A atracção que a grande maioria dos marxistas actuais sente pelos identitarismos lembra, em dimensões ampliadas, a catastrófica sedução que na primeira metade do século XX muitos socialistas sentiram pelos mitos nacionalistas, e o mesmo movimento que impulsionou a formação do fascismo clássico estimula agora este fascismo pós-fascista.

Os únicos obstáculos que poderiam erguer-se ao triunfo definitivo da nova modalidade de fascismo viriam de uma base de trabalhadores que recusasse pagar a factura da reorganização das elites pretendida pelos arautos do identitarismo. Mas como será isto possível se, em vez de tenderem a unir-se, os trabalhadores cada vez mais se deixarem fragmentar em presumidas identidades?

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Sociologicamente considerada, a classe trabalhadora é uma realidade em construção. Os trabalhadores não nascem feitos, são formados. Mas formados por quem? Eles são produzidos por outros trabalhadores, mas quem controla e determina essa produção?

Na transição do século XIX para o século XX a escolaridade geral obrigatória e o recrutamento militar geral e obrigatório unificaram social e culturalmente a força de trabalho e permitiram a constituição de um mercado de trabalho fluido, sem o qual o capitalismo não teria conseguido progredir. Entretanto, noutro campo, que podia até ser o campo oposto, os trabalhadores formavam-se a eles mesmos nos ócios, na música que cantavam e tocavam, e formavam-se nas lutas contra os patrões, quando eram conduzidas directamente.

Não demorou muito até que os capitalistas se apoderassem dos ócios. Os fascismos foram precursores, com instituições como a Opera Nazionale del Dopolavoro em Itália, a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho em Portugal ou, no Terceiro Reich, a Kraft durch Freude. Mas foi a partir dos meados do século XX que o controle exercido pelos capitalistas sobre o lazer dos trabalhadores se tornou genérico e sem restrições, quando a indústria cultural de massas destruiu as expressões culturais próprias da plebe ou as circunscreveu a redutos fechados. Agora, outro enorme passo em frente é dado com os computadores, que além de instrumento de trabalho se tornaram os insubstituíveis instrumentos do ócio. Nesta sequência, os telemóveis (celulares), as redes sociais e os jogos de realidade virtual confinaram os trabalhadores em grupos totalmente controlados e levaram-nos a imitar padrões já definidos. Em suma, a indústria cultural de massas liquidou ou marginalizou qualquer autonomia artística dos trabalhadores e o horizonte fora do trabalho passou a ser tão dominado pelos capitalistas como é o horizonte dentro das empresas.

A partir do momento em que os ócios ficaram plenamente inseridos no capitalismo, eliminando esse antigo espaço de autonomia da classe trabalhadora, e em que os sindicatos se converteram em grandes investidores capitalistas, substituindo-se aos trabalhadores nas pressões salariais, a produção de trabalhadores ficou controlada pelos capitalistas que, além de os formarem consoante as exigências decorrentes das qualificações profissionais, com tudo o que elas pressupõem, os formam igualmente fora das empresas. Mas, chegado aqui, deixo em suspenso uma dúvida. Contribuirá a monótona homogeneidade musical e visual da indústria cultural de massas para atenuar a fragmentação sociológica dos trabalhadores, estimulando afinal uma possível unificação política enquanto classe? Ou, pelo contrário, contribuirão as redes sociais para fragmentar e dividir mais ainda os trabalhadores?

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A luta pela democracia política, entendida na acepção restrita de liberdade de expressão, tem um âmbito muito limitado numa situação em que as empresas são praticamente soberanas na organização da sua força de trabalho e detêm influência sobre o tecido social em redor — um sistema que eu classifiquei como Estado Amplo. Mas essa luta fica agora desprovida de sentido num contexto em que os computadores, que fornecem os meios técnicos de expressão, são ao mesmo tempo meios técnicos de fiscalização. A liberdade de expressão de um lado corresponde à liberdade de policiamento e espionagem do outro lado. Mesmo as ruas, com a multiplicação das câmaras de vídeo instaladas em todos os lugares e o aperfeiçoamento dos algoritmos de identificação facial e gestual, amalgamaram o ócio e a vigilância.

A utilização geral e indiscriminada dos computadores e dos telemóveis pelos movimentos de contestação implica que estes movimentos fornecem às autoridades repressivas, em tempo real, todos os dados relativos à sua actividade. Nesta situação, em que o uso da liberdade de expressão implica, por si só, um aumento do número de informações ao dispor das autoridades, a distinção entre democracia e ditadura torna-se cada vez menos pertinente. As ditaduras podem definir-se como sistemas políticos tecnologicamente primitivos, que necessitam do uso explícito da força, incluindo a tortura, para obter informações que as democracias captam agora em número incomparavelmente superior, mediante processos discretos e indolores.

O problema é que, evidentemente, todos preferimos não ser torturados.

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A História é feita de derrotas. Por cada Sim contam-se muitos Nãos. Haverá alguém que dê resposta a todas estas perguntas e a várias outras?

No prefácio a uma colectânea de textos meus (Era um Mundo. Libertar-se do Mundo Morto, Paris: Vosstanie, 2019), publicados entre 1975 e 2009, procurei traçar o balanço sumário do muito que entretanto havia mudado e preveni o leitor. «Na história, como em muitas outras coisas, o que morre não ressuscita. As páginas deste livro referem-se a um mundo morto e enterrado. Quando as escrevi, procurei escrevê-las como uma análise da história. Hoje, ao passar os olhos por elas, entendo-as como parte da própria história, que necessitam de uma análise. Mas qual?» A pergunta ficou em suspenso e limitei-me a enunciar o esboço de uma resposta. «Se alguma coisa se salva, talvez seja aquela que para mim é a mais importante, a noção de que a forma é o verdadeiro conteúdo». E expliquei. «É a forma das relações que determina as suas potencialidades e as linhas de desenvolvimento possíveis. É a forma das relações estabelecidas numa dada luta que determina a sua capacidade para romper, ou não, com os sistemas de organização capitalistas, para fundar um relacionamento igualitário ou para reproduzir novas burocracias, para passar além ou para envernizar com outros tons o presente. É nestes termos que, procurando libertar-me do mundo morto, tento perceber os contornos do mundo em que agora vivo».

Se pude dizer isto a propósito de textos escritos, no máximo, há poucas dezenas de anos, decerto não irei procurar as soluções há século e meio. Quem vive exclusivamente no passado devia abster-se de imaginar o futuro. Quando a resposta surgir formulada, ela já foi dada na prática dos factos, uma prática cega, porque a nossa tragédia de animais racionais vem de conhecermos o que praticamos, mas só depois de termos praticado. E haverá pessoas hoje a praticarem aquilo que não vemos?

É certo que existem as pessoas comuns, as pessoas normais — eu sei como este adjectivo é odiado, e é deliberadamente que o emprego — as pessoas que nos intervalos do trabalho se sentam a conversar tranquilamente, a ver o mar ou as montanhas, a passear nas ruas da cidade, as pessoas distantes das doutrinas e que ainda não estão inteiramente capturadas pelas redes sociais, sobretudo que se mantêm longe das doutrinas, vejo-lhes os gestos, adivinho-as. Ou aquele outro que tem um emprego de merda, uma chatice de vida, mas pelo menos, montado na moto, a duzentos à hora, ele mostra o que vale e domina o mundo. Conseguirão as pessoas normais chegar a algum lugar que não seja este onde vivemos? Ou será tudo invenção do desejo?

Pode ler aqui a primeira parte deste artigo.

As ilustrações desta segunda parte do artigo reproduzem obras, ou detalhes de obras, de Julia Mehretu (1970-       ).

51 COMENTÁRIOS

  1. culpadôncio releu antes de ler, bolou as trocas e olhou para o dedo que apontava a lua…

  2. Bravo Ulisses, acompanhe o caso e verás que, com ou sem culpa, o acusado já está sendo “decolonizado”…

  3. Entre algumas perguntas cruciais e outras tantas respostas equivocadas, temos neste texto João Bernardo sendo João Bernardo: as costumeiras idiossincrasias e também a conhecida inteligência.

    Pergunta: a outra poderia viver sem a uma? Resposta?

    Chega a ser intrigante o motivo pelo qual João Bernardo insiste ser possível uma 《apropriação das técnicas capitalistas, enquanto base para uma sociedade de abundância em que elas possam ser usadas de outra maneira e noutras relações de trabalho》.

    Enquanto ele mesmo já deixou claro:
    《É certo que elementos de uma tecnologia, tanto tipos particulares de organização como utensílios e máquinas, podem vir a ser isolados do contexto geral em que surgiram e a que haviam pertencido e passarem a integrar outras tecnologias, de que se tornam então elementos componentes.
    Porém, em primeiro lugar, isso acontece exclusivamente com técnicas particulares, e nunca com o sistema tecnológico globalmente considerado. 
    Em segundo lugar, nem todas as técnicas são suscetíveis de tal processo de desestruturação e reestruturação, e a análise histórica mostra que isso tem até ocorrido com um  número relativamente reduzido de técnicas particulares.
    Em terceiro lugar, cada técnica não é uma forma estagnada e definitivamente fixada, mas caracteriza-se precisamente pela evolução e pelas mudanças que sofre, no interior das transformações globais do sistema tecnológico em que se integra.
    Isolada do sistema converte-se num fóssil. E, integrada em outro sistema, passa a desenvolver-se de outro modo, para em breve se tornar uma técnica diferente. 》

    Ou de modo ainda mais taxativo: 《 Não há qualquer caso de um modo de produção fundado sobre o sistema de forças produtivas do modo de produção anterior. 》

    E assim, de idiossincrasia em idiossincrasias, o artigo perambula no interior do labirinto sem saída dentro do qual João Bernardo mantém cativa sua inteligência.

    Exemplo: a sempre presente diatribe contra a “Ecologia”.

    Entre aspas, é necessário ressaltar. Pois não existe nenhuma “Ecologia” no abstrato, e sim relações sociais determinadas que, sob esta denominação, podem se concretizar de formas completamente distintas. Apesar disto, João Bernardo segue obcecado com a “ecologia do III Reich”.

    Se o fascismo era adepto da Ecologia, então esta seria inerentemente fascista? Algo tão absurdo quanto considerar todo movimento de massas como fascista, só porque uma das características do Fascismo é se apoiar num movimento de massas.

    A crítica necessária aos movimentos ecológicos já foi, de modo esplêndido, sintetizada por Chico Mendes: 《Agroecologia sem Luta de Classes é jardinagem. 》

    É a partir desta abordagem que se deve partir, perguntando: é possível Luta de Classes sem Agroecologia? Em outras palavras: quais as relações sociais com o meio ambiente que fazem avançar a Luta de Classes?

    Seria improdutivo continuar aqui comentando o artigo pela via das costumeiras idiossincrasias. O mais relevante nele é a conhecida inteligência. E desta advém respostas imprescindíveis e perguntas desafiadoras.

    Exemplos. Resposta: 《É a forma das relações estabelecidas numa dada luta que determina a sua capacidade para romper, ou não, com os sistemas de organização capitalistas, para fundar um relacionamento igualitário ou para reproduzir novas burocracias, para passar além ou para envernizar com outros tons o presente. 》

    Pergunta:《 E haverá pessoas hoje a praticarem aquilo que não vemos?》

    Uma pergunta deveria levar a outra: 《 Nossa tragédia de animais racionais vem de conhecermos o que praticamos, mas só depois de termos praticado? 》

    João Bernardo é um derrotado: 《Nós, os que restamos, somos picos que quem navega nestas águas julga serem ilhéus perdidos, mas que formam os cimos de montanhas submersas, uma Atlântida que deixou palimpsestos cujas camadas inferiores só raros hoje conseguem decifrar, porque quem as escreveu se esqueceu da linguagem então usada.》

    Mas não só ele! Todos nós estamos na condição de derrotados. Para nos erguermos de nossas derrotas históricas precisamos romper paradigmas. E, afinal, é disto que o artigo se trata.

    《Apesar disto, os marxistas persistem em procurar a realidade actual nos livros amarelecidos, em vez de considerá-los como um testemunho, um incentivo e sobretudo uma busca tacteante. O resultado está aí, porque quem dirigir olhando só para o retrovisor inevitavelmente esbarra com o que lhe surge em frente.》

  4. Referências,

    O problema com João Bernardo não são as idiossincrasias dele, ou eventuais equívocos em suas análises.
    O problema é que João Bernardo precisa ser conhecido, lido, analisado, debatido e, principalmente, criticado.
    Porque elaborou, e ainda elabora, uma obra de referência obrigatória para se compreender o Capitalismo e encaminhar a luta contra ele.
    Só com uma crítica rigorosa à João Bernardo é possível avançar além dele. E isto é válido inclusive para ele mesmo.

  5. arkx Brasil,

    Eu concordo e, apesar do artigo acima focar em algo bastante específico, é uma tentativa de, longe de ir além dele, pelo menos, indicar caminhos que possibilita isso.

  6. João Bernardo deve ser debatido, lido e divulgado. E, como não poderia deixar de ser, deve ser criticado para que possamos avançar teoricamente e assimilar suas contribuições para a luta na perspectiva proletária. Portanto, estou de acordo com as observações dos dois camaradas acima e li com muito interesse este artigo sobre a “questão ambiental”, do autor Mateus Alves. É uma análise bem sofisticada e rigorosa do debate ecológico no João. Ótima contribuição.

  7. É sério que vcs acham que dá pra debater a obra de um autor com base num artigo “acadêmico” que usa citações de Marx (não existia ecologia na epoca dele…) e Nildo Viana (???) para tentar refutar uma coisa enorme (a obra do JB) sem nem ao menos enfrentar de verdade um argumento dele? Vcs são retardados

  8. -> “Vcs são retardados”

    《6. O Passa Palavra publica comentários aos textos desde que
    b) não sejam pessoalmente insultuosos;》

    Desonestidade?
    Qualquer coletivo ao se fechar em torno de si mesmo, adquire características de seita.

  9. Führerprinzip:
    Alguns(?) pretensos não-sectários simplesmente NÃO ACEITAM que um coletivo se feche ‘em torno de si mesmo’ e não em torno de um eventual plantonista não-sectário…

  10. Desonestidade,

    Bom, desonestidade é comentar sobre algo que não leu. Nota de rodapé 1 do artigo acima:
    “É necessário enfatizar, contudo, que nossas reflexões aqui colocadas se referem apenas à sua concepção de movimento ecológico, que é nosso foco analítico. Portanto, nossas conclusões não podem ser generalizadas para o conjunto das produções intelectuais de João Bernardo. Neste caso, é necessário realizar uma análise minuciosa de suas produções visando compreendê-las em sua totalidade”.

  11. Reforço: -> “Vcs são retardados”

    《6. O Passa Palavra publica comentários aos textos desde que
    b) não sejam pessoalmente insultuosos;》

  12. Depois de ter lido o artigo do Mateus Alves eu me covenso ainda mais da perspectiva de JB. A ecologia é uma religião em que Marx se torna um profeta dos marxistas mais fanático, meio nada a ver, do ponto de vista da ecologia acredito que Marx estaria na linha de JB. É uma pena que essa extrema esquerda não vai na ecologia em si pra refutar as teses do JB. É importante ler o Haeckel, o pai da ecologia, para entender em que base se fundamenta a sua “visão de mundo”. Enfim… a ecologia não surgir nos anos 70. As teses de JB do homem e a natureza é uma boa resposta ao Hitler e a religião ecológica, afinal, como diria Vitor Hugo: “Esta redução do homem ao animal é uma grande miséria”. Foi essa miséria que provocou o genocídio de milhões de pessoas na Solução Final. Ecologia, nacionalismo e racismo estão amalgamados. Resultado: genocídio!

  13. Os ecologicos voltaram com tudo.
    Já sao contrarios à politica do Lula de baratear carros populares.
    Argumentam que o planeta não aguenta que pobres tenham um carrinho. Kk

  14. -> 《Ecologia, nacionalismo e racismo estão amalgamados. Resultado: genocídio!》
    -> 《Argumentam que o planeta não aguenta que pobres tenham um carrinho.》
    Como são as coisas: se eu tivesse escrito os comentários acima, com certeza me sentiria tendo um comportamento típico de “retardados”.
    Como não sou membro de culto, é grande a vergonha alheia…

  15. A ideologia da ecologia serve para nos orientar à regredir em direção à animalidade e, consequentemente, propagar a ideia da existência de ‘Deus’. Tô fora: “Como não sou membro de culto, é grande a vergonha alheia… “.

  16. Human beings and the true anti-ecological nature of our nature:

    Primate brain: GIVE PEACE A CHANCE!

    Mammalian brain: GIVE PEACE A CHANCE, BUT FIRST LET’S KILL THIS MOTHERF*UCKER!

    Reptilian brain: LET’S JUST KILL THIS MOTHERF*UCKER, GET LAID AND GO TO THE PEACE RALLY!

  17. Ande a pé, Arkx.

    Contribua com.menos CO2 no ar. Aproveite e vire vegano. Deixe tbm de consumir produtos que contenham plástico e metal.
    Tenha mais coerência e menos vergonha alheia.

  18. O artigo mencionado acima é fundamental – para entender o sintoma geral das críticas de esquerda a problemas científicos. Começa que é hilário que o articulista chame de anistórico um autor que dedicou grande parte de sua vida a escritos históricos, só pra citar os mais extravagantes, Poder e Dinheiro e Labirintos do Fascismo. Além de sua obra hoje fomentar diversos estudos serissimos sobre história comparada a partir da idade média.

    Matheus julga conhecer de forma “materialista-dialetica” as determinações históricas a partir da critica da economia política utilizando bibliografia limitadíssima e superficial: a começar porque os autores descritos no artigo são comentadores de Marx, e não da ecologia. Segundo, porque atribui um estruturalismo já desmentido pelo autor (por exemplo, na biografia que Manolo escreveu dele em sua resenha do Labirintos do Fascismo) baseado nos comentários de um adversário teórico.

    Por último e mais importante: classifica nominalmente vários movimentos sociais ecológicos para defender que não há homogeneidade entre eles. Talvez não integral, mas não importa, porque o dilema, como muito apresentado pelo João, é que os ecológicos invertem a equação socialismo ou barbárie e colocam no lugar, socialismo e austeridade. Isso é sim uma premissa em comum. João Bernardo fala sim que o advento de novas técnicas remodela a função homem-natureza em benefício recíproco. Mas o que deve estar em vista é que a natureza não é um a priori, e a crítica das relações sociais de produção é uma perspectiva pratica de homem-homem. Isso implica que o socialismo que fizesse de novas relações sociais de produção e utilizasse forças produtivas mais abundantes pode reverter os termos em que o meio à nossa volta é discutido. É muito diferente do que creem alguns comentadores de que a crítica à ecologia pressupõe que os anticapitalistas saiam icinerando a floresta amazônica. Mas infelizmente os acadêmicos multiculturalistas gritam mais alto.

  19. Os ecologistas em sua apologia ao RETARDO do progresso da humanidade, e principalmente, aquilo que chega aos trabalhadores, se tornam muito sensíveis e irritados quando seus apologetas são adequadamente nomeados.

  20. Olá a todos. Eu sou Mateus Alexandre Alves, o autor do artigo citado acima. Agradeço bastante a aqueles que leram e ainda comentaram sobre ele.

    Gostaria de fazer algumas considerações sobre alguns comentários aqui.

    Primeiramente, João Bernardo é um autor que é, por mim, bastante respeitado. Sou um leitor ávido de suas obras desde que tive contato com o marxismo. Admiro a erudição dele e do combate que ele realiza contra o paradigma hegemônico de nossa época que é o subjetivismo (manifestado em ideologias, tais como o pós-estruturalismo, multiculturalismo etc).

    Em segundo lugar, eu não sou da esquerda e nem da extrema-esquerda e, muito menos, me identifico com os ecologistas. Uma prova incontestável disso é que eu escrevi alguns artigos criticando o que eu chamo de ecologismo (conjunto das concepções ilusórias sobre a relação ser humano e natureza). Aqui está uma crítica que fiz ao Löwy e ao ecossocialismo (https://redelp.net/index.php/renf/article/view/559/533) num artigo chamado “AS AVENTURAS DO ECOSSOCIALISTA LÖWY CONTRA KARL MARX”; aqui está uma outra crítica que escrevi, em relação ao Guatarri, num artigo chamado “O Ecologismo Subjetivista de Félix Guattari” (https://redelp.net/index.php/rel/article/view/848/829). Neste mesmo site também escrevi uma crítica ao descrescimento ecológico, que pode ser visto aqui: https://passapalavra.info/2022/06/144658/. E, por fim, ainda traduzi um livro chamado “Capitalismo e Ecologia” do autor Paul Mattick, onde ele critica a concepção catastrofista dos ecologistas. Portanto, meu contato com a obra de Bernardo sobre movimento ecológico foi muito mais indo a procura de criticas em relação a estas concepções equivocadas do que um desacordo inicial.

    Em terceiro lugar, gostaria de dizer que meu artigo postado acima não é uma tentativa de refutar a totalidade das obras de João Bernardo e nem de demonstrar o estruturalismo nelas. Na verdade, eu me detive em um foco analítico que é um ponto singular da obra dele. Sendo assim, eu demonstrei a influencia do reprodutivismo apenas na analise dele sobre a relação do ser humano com a natureza. Quando ele afirma que a natureza não é finita e que o ser humano SEMPRE atinge um equilíbrio em relação a ela, isto quer dizer, no fim, que a natureza se reproduz infinitamente. Isso é contrário ao método dialético pois cada “ser” tem sua historicidade e não podemos generalizar uma forma de relação para todas as formas de sociedade que existiram. É impossível para mim, ainda, demonstrar o estruturalismo na totalidade das obras dele, pois são muito extensas. Tanto é que, mesmo tendo um foco analítico específico sobre a concepção de Bernardo sobre o movimento ecológico, me tomou um tempo extraordinário ler aquilo que precisei ler dele para conseguir tecer uma linha de crítica.

    Por fim, gostaria de responder a aqueles que acharam estranho as citações de Marx e de Nildo Viana:

    1 ) Em relação a Marx: além do materialismo histórico-dialético, que é uma contribuição tanto teórica quanto de método de análise, Marx também possui diversos fragmentos em suas obras onde ele aborda a relação ser humano e natureza. Me gera um espanto que João Bernardo não leva em consideração esses escritos (como se não existissem), como também me gera igualmente espanto os comentários aqui que além de desconsiderem Marx, também não se atrevem a refutar o que ele disse e nem a perceber, portanto, a oposição entre Marx e João Bernardo neste aspecto.

    2) Em relação a Nildo Viana: Nildo tem um artigo intitulado “Capitalismo e Meio ambiente” que contribui para se pensar a relação desse modo de produção com a natureza, bem como tem uma obra que analisa o processo de certos setores do movimento ecológico em se institucionalizar. Através do Nildo e de sua teoria dos movimentos sociais, pude definir o que seria o movimento ecológico, que vai muito além daquilo definido por João Bernardo. Esta aí onde nossa discordância se encontra.

    É muito tenebroso encontrar comentários que me acusam de ser participar de uma “seita”, ou até de ser dogmático, sendo que eu tive a preocupação de ler, entender e refletir sobre as obras que li e citei. O que não é uma verdade para aqueles que, apenas por lerem um nome ou outro em alguma citação, recusam o seu conteúdo sem antes efetivar o trabalho de refletir e criticar verdadeiramente o que cada autor diz em cada obra.

    Isto não quer dizer que meu artigo não tenha limites e estes limites terei o prazer de discutir. Mas julgo que nenhum desses limites são os autores que citei.

  21. Mateus,

    Seu artigo equaciona bem uma análise do movimento ecológico (usando aqui a terminologia adotada por você) com as críticas equivocadas feitas a ele pelo João Bernardo:

    《Cabe aqui reforçarmos que o movimento ecológico não é homogêneo, e em seu interior existem tendências que são a conservadora, reformista e revolucionária, sendo que a tendência reformista é atualmente hegemônica e, por este motivo, é um movimento social hegemonicamente reformista. Bernardo se equivoca, em primeiro lugar, ao negar a degradação ambiental; e, em segundo lugar, ao enxergar o movimento ecológico como um movimento homogêneo, que apenas visa satisfazer as supostas novas necessidades econômicas do capitalismo.
    Nos limitaremos apenas em apontar que o movimento ecológico, apesar de ser um movimento social
    hegemonicamente reformista, possui tendências em seu interior, e estas tendências são justamente produto das determinações geradas pelas lutas de classes. 》

    Mas o problema é que, quase sem excepção, os seguidores de João Bernardo o lêem para encontrar respostas, não para fazer perguntas.

    E as perguntas não surgem apenas analisando as contradições internas de um sistema teórico. As perguntas também surgem do choque com as novas realidades que inevitavelmente nos surpreendem.

    E haverá pessoas hoje a praticarem aquilo que não vemos?

    A resposta a esta pergunta não seria uma realidade inevitavelmente surpreendente? Quais as consequências teóricas desta prática surpreendente?

    Dito de forma direta: quais os exemplos concretos da tendência revolucionária do movimento ecológico?

  22. Mateus, reflita sobre o seguinte trecho: “Quando ele afirma que a natureza não é finita e que o ser humano SEMPRE atinge um equilíbrio em relação a ela, isto quer dizer, no fim, que a natureza se reproduz infinitamente. Isso é contrário ao método dialético pois cada “ser” tem sua historicidade e não podemos generalizar uma forma de relação para todas as formas de sociedade que existiram.” Não é sua a hipótese de que por a natureza ser histórica ela não pode ser reduzida aos parâmetros de reprodução da vida atuais? No fundo, se você levar esta premissa a sério verá que a natureza não se pode definir, como o fazem os místicos, por uma estrutura aprioristica, anistórica. E está também advogando por uma física arcaica, pré-quanta, em que a materialidade da natureza é estática. Lenin defendia esse tipo de materialismo, que o que a história faz é alterar a superfície das coisas, como mais ou menos dissera Protágoras no passado, em oposição à dialética de Heráclito.

  23. Resposta Joker e arkx Brasil

    Muito obrigado por estes dois comentários. Responderei primeiramente ao Joker, pois a resposta a ele me dá bases para responder ao Arkx Brasil.

    Resposta ao Joker:
    Poderíamos discutir aqui sobre a concepção de natureza da qual partimos e esse debate seria bastante profícuo, mas garanto que não chegaríamos a uma conclusão, mas em caminhos que ainda estão por serem trilhados. A grande questão em relação à natureza natural é que ninguém conseguiu utilizar o método dialético para analisá-la. A natureza apenas foi analisada pela ciência ou/e filosofia, o que acaba sendo um saber ilusório (apesar de seus grandes momentos de verdade que são, por mim, inegáveis). Um grande exemplo disso é a ideologia da evolução de Darwin que, apesar de seus momentos de verdade, seu núcleo central foi refutado por Viana no livro “A Verdade sobre o Darwinismo”. Imagino o quanto podemos nos beneficiar com o uso do método dialético para investigar assuntos da natureza , mas também creio que isso será possível numa sociedade autogerida.

    Contudo, em relação ao que eu disse anteriormente e que você destacou, o central não é a infinidade ou não da natureza, mas a relação do ser humano com ela. Nós vivemos em uma parte da natureza e nos relacionamos com essa parte no intuito de nos reproduzirmos como espécie. Quer dizer, como Marx afirma nos Manuscritos de Paris, o ser humano é um ser sofredor, isto é, se relacionar com o meio exterior ao seu próprio corpo é a condição de sua existência, portanto, o ser humano tem de atuar sobre os objetos externos a ele para garantir sua própria satisfação. Agora, podemos perceber que, se o ser humano sempre tem que se relacionar com a natureza para garantir-se como ser vivo, alguns recursos naturais se tornam essenciais para sua sobrevivência (o ar, o solo, a água, etc etc são recursos naturais imprescindíveis, e a partir deles podemos diferenciar recursos secundários etc etc). E aqui chegamos no central: João Bernardo afirma que “as capacidades humanas de destruição de um equilíbrio são, simultaneamente, capacidades de reposição de um novo equilíbrio” (BERNARDO, 1979, p. 163). Isto é, as forças produtivas adquiridas pelo ser humano ao longo da história seriam, simultaneamente, meios de degradação e de reposição daquilo que foi degradado. Eu percebo uma contradição neste raciocínio: se a natureza é supostamente infinita, por qual razão o ser humano precisaria repor aquilo que foi degradado? Esta afirmação de João Bernardo apenas poderia ser correta se admitirmos então que a degradação de recursos essenciais para o ser humano realmente ocorre. Se admitirmos, portanto, que essa degradação ocorre e que estes recursos devem ser repostos através das forças produtivas disponíveis, a pergunta se torna exatamente como isto é feito. E aqui está a anistoricidade de João Bernardo: ele acredita que SEMPRE haverá um “reequilíbrio” do ser humano com a natureza independente da forma de sociedade (do modo de produção dominante) em questão. Na verdade, por mais que as forças produtivas disponíveis no interior do capitalismo sejam suficientes para “repor” aquilo que foi degradado, poderíamos supor que o modo de produção capitalista, de acordo com sua dinâmica, é capaz de efetivar isso? Para João Bernardo, a classe capitalista é tão “racional” que, uma vez que sua existência estiver ameaçada pela degradação ambiental (e veja que aqui já admitirmos a existência da degradação, pois senão, não seria necessário um “reequilíbrio”), ela é capaz de contê-la. No entanto, isto só poderia ser verdade se o modo de produção capitalista não tivesse uma tendência para a desordem e para a aleatoriedade em decorrência de inúmeros capitais que buscam o lucro e, através da competição de uns com os outros, visam aumentar seus cada vez mais seus lucros, ganhar mais espaços, conquistar mais mercados consumidores, etc., isto é, o modo de produção capitalista também gera uma entropia relativa. Vejamos um exemplo concreto que foi a pandemia. O modo de produzir capitalista foi a condição de possibilidade da pandemia (o contato com o vírus e espalhar o vírus globalmente). Por mais que fosse possível combatê-la de forma a evitar inúmeros problemas para a própria acumulação de capital, isso não ocorreu. O modo de produção capitalista, em sua forma contemporânea, aumenta a presença da entropia capitalista por conta do Estado neoliberal e do subjetivismo principalmente. O próprio João Bernardo apontou aqui neste site que o hedonismo, o narcisismo, a incapacidade de aceitar contrariedade ou disciplina, a “hipersensibilidade”, o neoindividualismo, o consumismo foram obstáculos para o combate da pandemia. A competição entre os capitalistas, a ânsia pelo lucro e pela acumulação de capital são entraves da classe dominante em realizar essa “reposição” dos recursos naturais completamente e apenas pode realizar isso de forma relativa, pois a produção capitalista sempre precisa se expandir para reproduzir de forma ampliada o capital, isto é inexorável a este modo de produção como comprovado por Marx. E, por conta disso, uma das contradições do capitalismo a longo prazo é sua relação com a natureza. A grande questão é como este problema é encarado: o movimento ecológico, sendo hegemonicamente reformista, assume que este problema requer reformas no interior da sociedade capitalista colocando em questão qual força produtiva deve ou não ser utilizado no processo de produção ao invés do interesse em abolir as relações sociais capitalistas pois são elas que degradam o meio ambiente a ponto de dificultar a reprodução da existência humano no planeta. E assim, essa é uma boa introdução para a resposta ao arkx Brasil.

    Resposta ao arkx Brasil:

    Primeiramente, eu agradeço ao seu elogio inicial e também a sua pergunta. Temos que ser antidogmáticos e críticos-revolucionários se nossa intenção é contribuir para transformar radicalmente o mundo. Mas, creio que te decepcionarei em minha resposta.

    Por mais que eu concorde com “as perguntas também surgem do choque com as novas realidades que inevitavelmente nos surpreendem”, isto fica mais complicado quando estamos em um nível de abstração que a própria realidade concreta não pode nos satisfazer. Por exemplo: a sociedade autogerida (“comunista”) nunca foi uma realidade concreta nos termos definidos por Marx (“associação livre dos produtores”). Mas mesmo assim, podemos a antever através da análise das lutas de classes: uma tendência dessa luta é a autonomização do proletariado e a destruição dessa sociedade atual. Portanto, a sociedade autogerida seria uma realidade “ainda-não-existente”. Por ela ser uma realidade-ainda-não-existente, podemos afirmar sua impossibilidade? Não, pois ela é real na medida que pode ser antevista como resultado do movimento do real. Então, respondendo a sua pergunta diretamente: o movimento ecológico, da forma como eu o defini, também está determinado pelas lutas de classes. E a tendência revolucionária de qualquer movimento social apenas existe e se torna hegemônica quando há uma radicalização das lutas de classes. E desde seu surgimento, isso não ocorreu em relação ao movimento ecológico, diferentemente do movimento estudantil e negro que já estava consolidado quando ocorreu uma crise capitalista e a tendência revolucionária se tornou hegemônica no Maio de 68 francês (movimento estudantil) e no mesmo período em relação ao movimento negro estudosunidenses. Se eu tivesse que citar algo que se aproxima da tendência revolucionária do movimento ecológico foi o Bookchin e aqueles que se aglutinaram nele (o que não se confunde com os seguidores atuais dele que nada tem de revolucionários), pois, muito apesar da análise totalmente equivocada dele da natureza e do capitalismo, conseguiu perceber a necessidade de destruir as relações sociais capitalistas no intuito de defender uma relação humana autoconsciente com a natureza. Mas, o que eu gostaria de salientar com essa discussão sempre foi o que está na página 36 do artigo:
    “O que se deve perceber e o que gostaríamos de salientar, no entanto, é que a questão ambiental não é uma questão ilusória, e o movimento ecológico é uma totalidade, e que em seu interior existem diversas formas de enxergar a degradação ambiental, bem como diversas finalidades que se colocam como resolução da mesma. Algumas concepções podem ser realmente ilusórias, porém, existe a possibilidade de haver concepções que não são. Um bom PONTO DE PARTIDA seria criticar as concepções ilusórias que abordam a questão ambiental, mas negá-la é um equívoco”.

    Abraços!

    ***

    PS.: Joker, na nota de rodapé 4 do artigo que escrevi tem uma discussão sobre as condições de possibilidade de apreensão do que é a natureza.

    PS.: a grende questão não é se desvincular das forças produtivas adquiridas, se livrando dos frutos da civilização, mas sim destruir as relações sociais que as aprisionam e as utilizam para reprodizir capital. Um exemplo disso é quando Marx dá o exemplo da apropriação das forças produtivas pela burguesia e a destruição do modo dd produção feudal em A Miséria da Filosofia:

    Quando a burguesia se impôs, não se colocou a questão do lado bom e do lado mau do feudalismo. Ela incorporou as forças produtivas que desenvolvera sob ele. Foram destruídas todas as antigas formas econômicas, as relações civis que lhes correspondiam, o estado político que era expressão oficial da antiga sociedade civil. Assim, para avaliar corretamente a produção feudal, é preciso vê-la como um modo de produção baseado no antagonismo. É preciso mostrar como a riqueza se produzia no interior desse antagonismo, como as forças produtivas se desenvolviam ao mesmo tempo que o antagonismo das classes. […] Como o que importa é principalmente não se privar dos frutos da civilização, das forças produtivas adquiridas, é preciso liquidar as formas tradicionais nas quais elas foram produzidas (MARX, 2017, p. 111).

  24. E a ecologia reacionária? Aquela dos primórdios… fala-se muito pouco! Poderia-se partir daí.

  25. Quem quiser saber o que penso sobre as consequências económico-sociais catastróficas da ecologia pode ler o ensaio Contra a Ecologia, publicado aqui, no Passa Palavra.
    Sobre a inversão política do MST, que o levou a adoptar a agro-ecologia, o ensaio O MST e a Agroecologia.
    Sobre as raízes fascistas e especificamente nacional-socialistas da ecologia, podem ler no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022) o que escrevi sobre Ernst Haeckel e, no vo. VI, sobre a ecologia.
    Sobre esses problemas na Idade Média europeia, o que escrevi sobre a economia rural no Poder e Dinheiro.
    Quanto ao materialismo-dialectico, não sei o que é.

  26. Mateus Alexandre Alves, houve, sim, alguém que usou o materialismo dialético para analisar a natureza: Trofim Denisovič Lysenko, um nome hoje esquecido. Pesquise sobre ele, e diga o que acha. Ainda no campo do materialismo dialético, mas em outras áreas das ciências, recomendaria também conhecer as obras de Mark Moisevich Rosenthal, Pavel Fyodorovich Yudin e Nikolai Yakovlevich Marr, três grandes nomes deste campo.

  27. Manolo, você que sabe tudo, saberá também a quem Marx pretendia dedicar O Capital, e só não o fez porque o eventual dedicatario (estou a escrever precariamente) invocou as convicções religiosas da esposa para se escusar? Como o marxismo mudaria se O Capital tivesse sido dedicado a Darwin!

  28. Sim, essa história é bem conhecida, assim como as frequentes expressões de admiração de Marx por Darwin em sua igualmente frequente correspondência com Engels e outros. O caso mais conhecido:

    “O livro de Darwin é muito importante e serve-me como base, em ciências naturais, para a luta de classes na história. É claro que temos de suportar o rude método de desenvolvimento inglês. Apesar de todas as deficiências, não só se dá aqui pela primeira vez o golpe de misericórdia na ‘teleologia’ das ciências naturais, como se explica empiricamente o seu significado racional.” (Marx a Lassalle, 16 jan. 1861: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1861/letters/61_01_16-abs.htm , em tradução minha)

    O “rude método de desenvolvimento inglês” é o empirismo, que filósofos alemães desde Kant vinham tentado superar.

    Mas repare, Trofim Lysenko, como bom cientista orientado pelo materialismo dialético, lançou fora essa ideologia darwinista e também o idealismo lamarckista, dando preferência às teorias do agrônomo e biólogo experimental Ivan Vladimirovich Michurin. Isso deve ser de algum interesse para quem pretenda se valer do materialismo dialético para estudar a Natureza.

  29. Fiquei pensando nos últimos dias como responder ao último comentário de Matheus. Os comentários do João Bernardo e Manolo me pouparam. Por isso, agradeço. É especialmente satisfatório reconhecer que antes do ilustre biólogo Nildo Viana outros já tinham “refutado Darwin”. Me deu muito com o que pensar.

  30. Boa tarde, pessoal! Manolo, obrigado pelas indicações dos autores, darei uma olhada neles, com toda certeza!

    Mas, agora entrando já em assuntos secundários a nossa discussão e que infelizmente eu não poderia deixar de comentar, mais grave do que acreditar que Marx concordava com as teses de Darwin, é aceitar de bom grado essa estorinha de que Marx gostaria de ter dedicado O Capital para Darwin sendo que são dois autores de perspectivas antagônicas.

    Marx muito mais crítica Darwin do que elogia em cartas e, quando ele elogia, ele apenas elogia um único ponto da obra de Darwin, que é este ser contra a análise “teleológica” da natureza (algo que naquele contexto era mais comum de existir do que atualmente) e, sendo assim, combate a ideologias conservadoras. E mesmo este elogio vem com ressalvas (como pode se ver na carta citada por Manolo: “Apesar de todas as deficiências”).

    No entanto, depois que Marx lê novamente a obra de Darwin, em junho de 1862, ou seja, depois dessa carta a Lassalle, ele escreve uma carta a Engels:
    “eu acho divertido que Darwin, EM QUEM EU ESTOU DANDO MAIS UMA OLHADA, diga que ele também aplica a teoria “malthusiana” às plantas e animais, como se no caso do sr. Malthus a coisa toda não repousasse no fato de ela não estar sendo aplicada às plantas e animais, mas apenas- com a sua progressão geométrica – aos seres humanos, em oposição às plantas e animais. É notável como Darwin redescobre, no meio dos animais e plantas, a sociedade da Inglaterra com as suas divisões de trabalho, competição, abertura de novos mercados, “invenções” e a “luta pela existência” malthusiana. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes” (Marx e Engels, Collected works, vol. 41, 381. ).

    E ainda, em agosto de 1866, Marx lê um livro de Pierre Trémaux e, para Marx, apesar de todas as falhas do autor, este livro representava “um avanço muito significativo em relação a Darwin”, na medida em que explicava tanto o progresso quanto a “degeneração, que Darwin não consegue explicar”, como decorrência da mudança geológica ( Marx e Engels, Collected works, vol. 42, 304-5, 320-24, 327)

    E Engels, posteriormente, escreve uma crítica bem parecida com aquela que Marx fez em sua carta:
    “Toda a teoria de Darwin baseada na luta pela vida é simplesmente a transferência, da sociedade para a natureza animada, da teoria de Hobbes do bellum omnium contra omnes e mais ainda: da teoria burguesa da livre competição e da teoria malthusiana sobre a superpopulação. Uma vez levada a cabo essa proeza (cuja justificação incondicional é ainda muito problemática, especialmente no que se refere à teoria malthusiana) é muito fácil transferir de volta essas teorias, passando-as da história natural para a história da sociedade; e, afinal de contas, é uma grande ingenuidade pretender, com isso, haver demonstrado essas afirmações como sendo leis eternas da sociedade” (Engels, Dialética da natureza, p. 163).

    Sobre Marx ter (SIC) feito o pedido para dedicar o Capital a Darwin isto já foi desmentido há muito tempo:

    “Por muitos anos acreditou-se que Marx havia escrito uma carta a Darwin oferecendo-se para dedicar a este um volume do Capital, com base em uma carta de 1880 de Darwin encontrada entre os papéis de Marx. Estudos recentes, porém, comprovaram que a carta de Darwin não havia sido escrita para Marx, mas para o futuro genro de Marx, Edward Averling, que, com Eleanor Marx Aveling, esteve durante algum tempo incumbido dos papéis de Marx (depois da morte de Engels). Aveling, que havia tirado o doutorado em zoologia na London University e se tornado professor de anatomia comparativa no London Hospital, encontrou-se com Darwin em numerosas ocasiões e ofereceu-se para dedicar o seu livro, The student’s Marx (1881), a Darwin, que anteriormente lhe tinha dado as suas opiniões acerca de alguns dos artigos dos quais o livro era compilado. Darwin, todavia, recusou a oferta, não querendo ser associado ao secularismo radical de Aveling” (Margaret A. Fay em Marx and Darwin: A Literary Detective Story).

    “Isto, contudo, é refutado por outros, baseando-se em pesquisas sobre as cartas recebidas por Marx. O que ocorreu, na verdade, foi uma carta de Edward Aveling, genro de Marx, solicitando a autorização de Darwin para dedicar-lhe sua obra (e não a de Marx) intitulada Darwin para Estudantes, de caráter antirreligioso, e por isso houve a recusa do famoso naturalista. Darwin encaminhou a resposta e esta se encontrava junto com as correspondências de Marx. Por isso não havia referência à qual obra se referia Darwin, o que permitiu a confusão estabelecida e que se tornou a versão verdadeira da história até 1975” (VIANA, Darwin Nu: Marxismo e Darwinismo).

    Indico muito o livro “A Verdade sobre o Darwinismo” ou, para aqueles que gostam de assistir documentários, o documentário “Onde Darwin Errou?” que tem como base o livro anterior (https://www.youtube.com/watch?v=lJoc9BhmriQ).

    ***

    PS.: Esqueci de mencionar a pequena discussão entre Marx e Engels sobre Pierre Trémaux.

    “É preciso destacar aqui as reais diferenças entre Marx e Engels, em todos os aspectos, inclusive no político e no que se refere à dialética, mas especialmente, no presente caso, no que diz respeito ao caso do darwinismo. Marx tinha uma posição muito mais crítica em relação a Darwin, e daí a divergência entre ambos na polêmica em relação a Pierre Trémaux e o fato de que foi Engels que enviou carta entusiasmada para Marx sobre o lançamento de A Origem das Espécies, e a resposta de Marx demorou cerca de um ano. A posição de ambos sobre o darwinismo tinha diferenças, sendo Engels mais favorável a Darwin do que Marx. Apesar das críticas de Marx, Engels irá defender Darwin de críticas semelhantes realizadas por Düring (Engels, 1979) em 1878 e assumirá um tom mais crítico posteriormente, em 1883 (Engels, 1985) cuja base já estava nas cartas de Marx e em visível contradição com o livro anterior, sendo que afirmações que criticava em Düring são retomadas, embora a origem fosse Marx. Sem dúvida, o motivo deve ter sido a polêmica com Düring, mas demonstra falta de rigor e coerência. A raiz da diferença se encontra na radicalidade de Marx e ao fato de sua obra ser expressão teórica do proletariado, o que o tornava não tão influenciável pelo desenvolvimento das ciências naturais e o sucesso de determinadas ideologias, como era Engels” (Viana, Darwin Nu).

    *** *** ***

    Correção: The Student’s Darwin (1881) é o nome do livro do Edward Aveling.

  31. Ah, é claro, não poderiam faltar as disputas hermenêuticas e hagiológicas quando se menciona o nome dos santos.

    Serei breve sobre o assunto, porque, de um lado, conheço essa correspondência, e de outro porque isso tem a ver com uns caderninhos de rascunho de O Capital que só estão disponíveis, ainda, na MEGA em alemão. Cito tudo de memória, mas realmente acho desnecessário referenciar tudo porque o assunto é absolutamente lateral ao tema do artigo que comentamos.

    1) Marx era um antimalthusiano convicto, arraigado e militante. Isso é bem conhecido.

    2) Ao ler Darwin pela primeira vez, Marx ficou muito positivamente impressionado.

    3) Ao sentir odores malthusianos na obra de Darwin, Marx recorreu a seu tradicional método de rejeição in totum, esculhambando Darwin numa carta a Engels. É essa a carta citada, com elogios a Trémaux. Aliás, este é outro método comum em Marx: ao rejeitar in totum determinada ideia, conceito, teoria ou obra que lhe interessa, mas que por alguma razão não convinha mencionar favoravelmente, procura outra equivalente que possa substituí-la, silenciando sobre sua leitura original ou esculhambando em público o que rejeitou.

    4) O que geralmente se omite é que a troca de cartas continuou, e Marx não teve a última palavra no assunto. Engels, mais prudente, respondeu dizendo que Trémaux não entendia nada de geologia, e que não haveria nada de interessante em suas teorias. Marx retrucou, no mesmo estilo e com sua habitual grandiloquência, dizendo algo como (cito de memória) que a influência do solo seria algo que só precisa ser anunciado para ter espaço no conhecimento científico. Engels redarguiu comparando aspectos das obras de Darwin e Trémaux, dizendo (em linhas gerais, porque cito de memória) que Darwin nunca deixou de reconhecer a influência do solo, e entrou em algumas discussões mais especificamente geológicas. Marx não respondeu, o assunto “Darwin vs. Trémaux” desapareceu da correspondência dos dois, e esta foi a única vez em que Trémaux apareceu em toda a obra de Marx publicada.

    5) Aproximadamente um ano depois desta troca de cartas, sai o primeiro volume de O Capital. Em certas notas de rodapé, Marx cita Darwin nominalmente ao tratar do desenvolvimento de ferramentas especializadas e ao lamentar a falta de uma história crítica da tecnologia, mas não aparece uma só citação de Trémaux.

    6) De igual modo, o nome de Trémaux não aparece uma só vez nos manuscritos preparatórios de O Capital publicados na Marx und Engels Gesamtausgabe (MEGA).

    7) Sabe-se que Marx fez questão de enviar cópias (em alemão) de O Capital a Darwin e a Herbert Spencer, ignora-se com quais finalidades. A carta desapareceu da coleção de Darwin, mas o livro chegou até nossos dias, e estava na coleção do Museu Darwin, hoje sob custódia da English Heritage. Nele, lê-se uma dedicatória em que Marx se coloca como “seu sincero admirador”. Darwin respondeu com uma carta amistosa, datada de 1873, onde respeitosamente declina da possibilidade de qualquer contato com Marx.

    8) Meses depois — leia-se: meses depois — Marx vai com esposa e filha a uma palestra de um jovem professor de ciências chamado Edward Aveling, que muito tempo depois viria a ser seu genro.

    9) Em 1879, Darwin publicou um artigo na imprensa criticando associações entre o socialismo e sua teoria da evolução pela seleção natural. Marx escreveu-lhe outra carta, que infelizmente não sobreviveu, e Darwin respondeu-lhe desta vez de modo mais ríspido, dizendo que não queria que qualquer parte ou volume (do que, não se sabe) lhe fossem dedicados. Esta é a carta a que Margaret A. Fay se refere num artigo da Monthly Review de 1980, citado num dos comentários.

    10) Não houve mais qualquer contato, amistoso ou hostil, entre Marx e Engels.

    11) Daí em diante aparece, volta e meia, discussão sobre influência de Darwin sobre Marx, e vice-versa. Uns querendo provar que Marx era darwinista, outros querendo provar que a teoria da evolução era “dialética”, e por aí vai.

    Deduzo disto que Marx simplesmente abandonou o recurso a Trémaux, e passou por cima das diferenças com Darwin para reconhecer-lhe os méritos.

    *** *** ***

    Escrevi com pressa sobre contatos amistosos ou hostis entre Marx e ENGELS, quando deveria ter escrito Marx e DARWIN.

  32. Apenas para esclarecer, se ficou parecendo o contrário, Trémaux foi citado por mim apenas para demonstrar a diferença de Marx e Engels sobre um determinado assunto.

  33. E é claro, a tentativa de “isolar” Marx de Engels também tinha de aparecer no debate. Isso nada mais é que a tentativa de certa hagio — digo, marxologia de “demonstrar” que certos aspectos “retrógrados” do marxismo se devem mais a Engels que a Marx. É assim com os ditos “povos sem história”, é assim com a dita “dialética da natureza”, é assim com a influência de Lewis Morgan… É evidente que há diferenças entre ambos, são pessoas diferentes! Mas, no agir político, estavam sempre de comum acordo, e é a obra conjunta dos dois que produziu efeitos na História. Esta hagio — digo, marxologia que “isola” Engels de Marx é uma entre tantas tentativas de achar um “verdadeiro Marx”, um “Marx puro”, ao qual se deveria “retornar” para “purificá-lo” de “deformações”. Tão interessante quanto a busca por um “verdadeiro escocês” (entendedores entenderão). No que me diz respeito, esse é um debate vazio de sentido, sobre o qual não vou prosseguir.

  34. Todo e qualquer debate, quando descolado das questões concretas, redunda estéril e, na maior parte das vezes, não passa de mera exibição de vaidades (mesmo ao estas se disfarçarem como erudição).

    Sem estar aplicada na transformação do mundo (ou seja: das relações sociais) a teoria é inútil, por mais rebuscada que se apresente.

    No momento se tem em pauta no Brasil um ponto crucial no tocante ao meio ambiente: a exploração de petróleo na região da foz do rio Amazonas.

    Quanto a esta questão concreta, quais as posições sendo assumidas, sejam pró capitalistas, reformistas ou revolucionárias?

    Exemplos:

    Pró capitalistas (sejam se Direita ou “Esquerda”): exploração de petróleo é sinônimo de desenvolvimento, geração de empregos, elevação da renda per capita, etc, etc, etc…

    Reformistas: há que se tomar as devidas precauções para evitar danos irreparáveis ao meio ambiente, mas é melhor a Petrobrás assumir a exploração do que uma empresa estrangeira.

    Ambientalistas conservacionistas: “Destruir um presente de Deus é ingratidão”.

    Revolucionárias: ??? 🤷‍♂

    PS:

    Mateus,

    Para compreender (e atuar) frente a questão ambiental se deve considerar não estarmos apartados do meio ambiente, e sim completamente a ele integrados: eco-sistemas entrelaçados com vários outros eco-sistemas.

    《Todos somos cuerpos que transportan una increíble cantidad de bacterias, virus, hongos y no humanos. 100 mil millones de bacterias de 500 a 1.000 especies se instalan en nosotros.
    Esto es diez veces más que la cantidad de células que componen nuestro cuerpo.
    En resumen, no somos un solo ser vivo sino una población, una especie de zoológico itinerante, una casa de fieras.
    Las mitocondrias de nuestras células, que producen energía, son el resultado de la incorporación de bacterias.
    Esta evidencia científica debería llevarnos a cuestionar la sustancialización del individuo, la idea de que es una entidad en sí misma y cerrada al mundo y a la otredad.
    Pero también deberíamos eliminar la sustancialización de las especies …》

    《Os indígenas tzeltal de Chiapas têm uma teoria da pessoa em que sentimentos, emoções, sonhos, saúde e temperamento de cada um são regidos pelas aventuras e desventuras de todo um monte de espíritos que habitam ao mesmo tempo nosso coração e o interior das montanhas, e que passeiam por aí.

    Nós não somos belas completudes egóticas, Eus bem unificados, somos compostos de fragmentos, estamos repletos de vidas menores.

    A palavra “vida”, em hebreu, é um plural, assim como a palavra “rosto”. Porque em uma vida há muitas vidas e porque em um rosto há muitos rostos.

    Os vínculos entre os seres não se estabelece de entidade a entidade. Todo vínculo se dá de fragmento a fragmento de ser, de fragmento de ser a fragmento de mundo, de fragmento de mundo a fragmento de mundo.》

  35. É curioso ver que o Manolo sempre diz que os outros são os “adoradores”, os “dogmáticos”, os “decifradores da palavra sagrada”, menos ele o João Bernardo. Em vários textos que discorda, ele repete argumentos acusando os indivíduos pelos seus limites interpretativos e desmerecendo os elementos postos para debate, que são, nas palavras do nosso erudito, “disputas hermenêuticas e hagiológicas”, ou “marxologia”. Vou esperar agora pelas novas lições de moral do sábio Manolo para saber o que poderá ser debatido ou não no site, pois ainda sou crente que segue somente a palavra de Marx e não me libertei da escuridão.

  36. Para saber se devo usar um martelo ou uma marreta para bater um prego, devo saber o que é um martelo e o que é uma marreta. Do contrário, bato o prego, mas arrebento a parede. O que vale para o martelo, prego e parede vale para Marx e suas teorias, e para a História de ambos. Só isso.

  37. Manolo, você me interpreta colocando palavras de outras pessoas em minha boca. Minhas afirmações apenas apontam que Marx e Engels são dois seres humanos concretos e distintos. E isso é uma obviedade e não fui muito além dela. E eu apenas constatei essa obviedade, pois, muito apesar dessas divergências, Engels terminou fazendo criticas a Darwin (que ele não havia feito em cartas), mas a origem dessas criticas é Marx, como demonstrado acima em Carta. O que demonstra que a suposta concordância de Marx com Darwin e, ainda mais, essa estorinha de dedicar o Capital a ele, são informações infundadas baseadas em apenas conjecturas bem fraquinhas.

    Arkx Brasil, agora eu entendi o que quis dizer em sua pergunta anterior. O motivo da confusão foi ter usado a palavra ” tendência revolucionária do movimento ecológico”. Uma tendencia se diferencia de posições revolucionárias acercas de temas diversos. De acordo com minha definição de movimento ecológico, uma tendencia é uma ramificação do movimento ecológico:
    “O movimento ecológico é a mobilização (ação coletiva ou compartilhada) do grupo ecológico (cuja unidade se dá através da defesa do meio ambiente), que produz senso de pertencimento e objetivos gerados pela insatisfação derivada da destruição ambiental. O movimento ecológico pode gerar ramificações, tais como doutrinas, ideologias, teorias, representações, organizações informais ou formais, tendências etc. Essas ramificações não se confundem com o movimento ecológico, são partes e não o todo do mesmo, e há a possibilidade de deixarem de ser, tal como uma organização que se autonomiza e passa a ter interesses próprios. Esta definição expressa a essência do movimento ecológico, diferenciando-o de outros movimentos sociais específicos ou fenômenos que são confundidos com o mesmo, tais como ONGs, partidos políticos, e as ramificações derivadas deste. O conceito de movimento ecológico é o primeiro passo para compreender o mesmo em sua totalidade, pois após delimitar o fenômeno torna-se possível relacioná-lo com a totalidade da sociedade capitalista. ” (ALVES, Para um conceito de Movimento Ecológico, p. 14) (https://even3.blob.core.windows.net/anais/311285.pdf). Para existir uma tendencia revolucionária do movimento ecológico, portanto, todos esses pre-requisitos devem ser satisfeitos (ter objetivos, insatisfação, senso de pertencimento, etc). Por isso, afirmei que uma tendencia revolucionária no interior do movimento ecológico é bem fraca e inconsistente, mas existem algumas pessoas que produziram obras neste sentido, como citei anteriormente. Agora, posições revolucionárias sobre temas específicos ou questões concretas existem aos montes. Sobre o exemplo que deu, por exemplo, “a exploração de petróleo na região da foz do rio Amazonas” (o termo exploração aqui é questionável, acredito ser melhor usar o termo “extração”), a posição revolucionária deve ser coerente com a finalidade, que é a revolução. Para se posicionar nesta questão, portanto, os revolucionários não devem se limitar a dizer sim ou não, mas devem sobretudo demonstrar que a extração de petróleo será ou não realizada no intuito de reproduzir uma sociedade cuja dinâmica é acumular capital. Portanto, tanto a posição conservadora quanto progressista oculta a essência da questão que é a transformação de uma fonte de energia em capital. A grande questão é que as fontes de energias devem ser extraídas no intuito não de reproduzir a acumulação de capital, mas sim de servir aos interesse universais humanos.

  38. “Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?”.

    Mesmo discordando de Mateus, é impossível concordar com Manolo. A arrogância que Manolo desenvolveu é tão elitista quanto a representada no poema de Mario Quintana. Expressa um individualismo egocêntrico antagônico a qualquer espírito de camaradagem revolucionária. Mal consegue disfarça seu antimarxismo, só não apresenta suas credenciais políticas de onde se origina sua aversão a Marx. Afirma que Marx esculhamba autores e teorias, mas faz o mesmo com Marx. Aliás, de quais “esculhambados” Manolo é uma viúva? Proudhon, Bakunin? Até hoje todo antimarxismo foi reacionário, menos o de Manolo, não é mesmo?

  39. Mateus, o problema não está em você, mas no que você diz. Da mesma forma como Engels, mais à frente, criticou a teoria da seleção natural de Darwin por ser (cito de memória) algo como uma transposição da “guerra de todos contra todos” de Hobbes, os argumentos que você usa neste debate sobre Darwin e Marx não são seus, mas de outros, muitos outros, que te antecederam. Assim como o antimalthusianismo militante de Marx, os argumentos que você apresenta têm uma História, surgiram num contexto bem determinado e específico, e é mau, muito mau, que você desconheça tudo isso. Mas não serei eu a usar mais o meu tempo e o seu numa discussão que não paga nem os seus boletos, nem os meus, mesmo porque foi a própria Margaret Fay, que você cita, quem teve acesso ao exemplar de O Capital dedicado à mão por Marx a Darwin, e também a toda a correspondência que citei de memória porque li o artigo dela na Monthly Review há muitos anos e não o tenho mais em mãos. Refutar fatos é perda de tempo.

    Quanto aos demais comentaristas, obrigado por provarem, sem qualquer sombra de dúvida, que Marx é um santo com igreja e tudo.

  40. Eu concordo com você: é ruim continuar a discussão se o interesse aqui não for demonstrar a suposta correspondência entre o marxismo (método dialético, materialismo histórico, teoria da sociedade, da realidade etc etc etc) com as ideias darwinianas. Analise de cartas e de supostas dedicatórias no intuito de demonstrar essa correspondência é bastante insuficiente e frágil diante das produções intelectuais de Marx e de sua prática política. O que este seu argumento prova, no final, é o desespero diante daquilo que falta: uma análise rigorosa e total das obras de Marx (que até agora, diga-se de passagem, foi mencionada lateralmente apesar do argumento recair sobre elas, no final das contas). E essa é a base concreta da qual brota os recursos retóricos que nascem para preencher essa lacuna. E pensar que chegamos até aqui por conta de um desmerecimento, sem base alguma, das contribuições marxistas numa análise da relação natureza e ser humano. E olha que paramos em Marx… nem conseguimos avançar para o marxismo autentico depois dele (contribuições de Karl Korsch, e do marxismo autogestionário).

  41. Temos um texto – um novo capítulo de uma obra enorme, caracterizada não só por reflexões teóricas inovadoras mas por uma vasta pesquisa comparada – onde a luta anticapitalista é definida como apropriação, pelos trabalhadores, das técnicas capitalistas, como pré-condição para uma sociedade da abundância autogerida e sem exploração.

    No mesmo texto afirma-se que os ecologistas – novamente, com base em farta pesquisa comparada – substituíram tudo isso pela apologia de técnicas pré-capitalistas, que resultam sempre na extração de mais-valia absoluta e no decrescimento econômico. E que a ecologia vem propondo isso desde o princípio, em conexão, naquele momento, com um projeto reacionário de gestão da destruição técnica e humana, onde o limiar das relações capitalistas de trabalho chegou a ser ultrapassado em direção a um escravismo de Estado genocida.

    E o que os defensores da ecologia fizeram na seção de comentários? Desviando do argumento central do texto, fizeram de tudo, apelando para todas as autoridades, divinas ou profanas, do ‘saber’ revolucionário, para defender a fé ecológica de qualquer escrutínio da reflexão humana.

    Por que mesmo consideramos essas pessoas nossos camaradas? São elas de fato revolucionárias? Não duvido. O fascismo pretendeu ser revolucionário, à sua maneira. Mas são elas do mesmo campo que nós? Tenho grandes e seríssimas dúvidas a respeito. E apesar de o debate ter desviado de outros temas, abordados pelo autor nesta parte e na anterior, talvez isso seja conveniente para mostrar – uma vez mais – quem é quem na luta de classes.

  42. -> “[…]onde a luta anticapitalista é definida como apropriação, pelos trabalhadores, das técnicas capitalistas, como pré-condição para uma sociedade da abundância autogerida e sem exploração.”

    Mais uma vez, de novo e novamente, os seguidores de João Bernardo tropeçam no próprio pé dele. Aliás, até ele mesmo insiste em fazer igual: chocar-se com suas palavras e análises.

    A este respeito já postei vários comentários no Passa Palavra, inclusive no presente artigo. Neste link:
    👉🏼 https://passapalavra.info/2023/04/148108/#comment-888945

    Além dos trechos de textos de João Bernardo citados neste comentário anterior, acrescento outros:

    《Longe de serem independentes das determinações do capitalismo, as forças produtivas constituem, ao contrário, uma expressão material e direta das relações sociais do capital. 》

    《Por isso a expansão de dadas forças produtivas facilita e apressa o desenvolvimento das relações sociais que as condicionam, e não de quaisquer outras. O desenvolvimento, das relações sociais de tipo novo, antagônicas das hoje prevalecentes, vai por seu turno constituir a condição prévia ao aparecimento de uma nova tecnologia. 》

    Uma das principais contribuições se João Bernardo a uma teoria revolucionária não vem de suas diatribes contra a ecologia, muito menos de sua recorrente compulsão em se contradizer, mas exatamente em ter deixado claro ser impossível a apropriação das técnicas capitalistas num modo de produção comunista.

    Repito, outra vez numa paráfrase do presente artigo: 《Mas o problema é que, quase sem excepção, os seguidores de João Bernardo o lêem para encontrar respostas, não para fazer perguntas.》

    O Passa Palavra poderia ser um dos mais interessantes sites da Web, sendo um dos raros focados no fundamento da Autonomia.

    Poderia… Enquanto estiver fechado sobre si mesmo, com características de culto, nunca será. Lastimável.

    PS:

    ->《O desenvolvimento, das relações sociais de tipo novo, antagônicas das hoje prevalecentes, vai por seu turno constituir a condição prévia ao aparecimento de uma nova tecnologia. 》

    É justo a Agroecologia uma destas tecnologias (para usar o termo) desenvolvidas no bojo de relações sociais de tipo novo (incluindo as relações com o meio ambiente, superando o binômio Natureza x Cultura).

    *** *** ***

    Mateus,

    -> ” A grande questão é que as fontes de energias devem ser extraídas no intuito não de reproduzir a acumulação de capital, mas sim de servir aos interesse universais humanos.”

    Exato!

    Portanto, o problema não está no petróleo. Muito embora, sem o petróleo (como fonte de energia abundante e barata) não existiria o Capitalismo de alta industrialização.

  43. Estudo faço a difusão do pensamento de João Bernardo há anos, inclusive leio seus textos Manolo, que são melhores que seus comentários geralmente. Mas, não faço parte de igreja alguma, nem a de São Marx, nem a de São João Bernardo. Me desculpe não citá-lo neste caso, mas você ainda não foi canonizado. Mesmo assim, digo e repito, críticas são críticas, mas você rejeita Marx in totum, método que você imputa a ele. Nem João Bernardo faz isso, inclusive ele mesmo recuou nesse texto da sua perspectiva de que a teoria de João Bernardo é independente e antagônica ao marxismo, o que é de fato esculhambar Marx. “Só a mais-valia relativa e totalmente diferente de Marx!”. É serio isso?! Sem Marx, João Bernardo não existiria, ao menos não como pensador. Ou seria qualquer outra coisa, menos, João Bernardo. Esse é o nível do seu antimarxismo, Manolo. Me diga o nome de um antimarxista à esquerda de Marx. Não digo um marxista crítico de Marx, pois isso eu também sou. Me apresente uma corrente política à esquerda da extrema-esquerda do marxismo (conselhistas, bordiguistas, operaístas, etc.) que seja antimarxista. Seu desprezo pelos conselhistas também já ficou bem claro, seja minimizando ou mesmo ocultando sua influência direta sobre João Bernardo, seja afirmando levianamente que nenhum deles fez ciência, mas meros panfletos. Tudo isso para defender a posição de que, ao menos em tese, ainda é possível alguma forma de sindicalismo revolucionário! Assuma suas inclinações anarquistas, não há vergonha alguma nisso. Assuma alguma inclinação política que não seja o “bernardismo”, que não existe enquanto corrente política, quiçá como corrente intelectual, a despeito de suas grandes contribuições. Falando em anarquistas, não separar de forma alguma Marx de Engels é uma manobra tão antiga quanto a manobra contrária, servindo para fazer uma linha direta entre Marx e Stálin. De acordo com uma versão em aramaico antigo que consultei e cito de cabeça pois não a tenho aqui em mãos, de Anti-Duhring e Dialética da Natureza, Marx não é coautor. Assim como Engels seguiu militando após a morte de Marx, sendo totalmente responsável por seus deslizes socialdemocratas (e Marx pelos seus…). Paremos com certas filologias inúteis e nerdologia de esquerda, que soam apenas como arrogância e nada mais. A fila dos “refutadores” de Marx é grande, mas formada totalmente por reacionários e “renegados”, pegue a sua senha. Ou, sejamos apenas honestos marxistas críticos de Marx, esses são poucos, mas também de João Bernardo. Afinal, somos todos ateus…

  44. Já não faço a profissão de fé marxista que tanto fiz na minha mocidade, que já não me cai bem. Mas olhem, foi mesmo na altura em que eu era um rapazote de madeixas ao vento que uns quantos doutores se envolveram numa salgalhada em redor da dedicatória de Marx a Darwin.

    Para mim, o artigo da Margaret A. Fay, tantas vezes citado, foi de uma clareza ímpar acerca do tema, pena é que a Monthly Review não nos deixe dar-lhe uma espreitadela: https://monthlyreviewarchives.org/index.php/mr/article/view/MR-031-10-1980-03_5

    Relembrando os tempos idos, devido à buliçosa polémica que por aqui se arrastou, dediquei parte da minha noite em claro à indagação sobre o assunto.

    Por vossa discussão, fiquei a saber que até mesmo o Isaiah Berlin, que me ensinou o marxismo na mais tenra mocidade, se enfiou nessa embrulhada: em primeiro lugar, para admitir o engano em que se enredou ao difundir a primeira versão da história, e em segundo lugar, para indicar com maior acuidade a fonte em que se apoiou ao ser enganado.

    Com o objetivo de lançar umas achegas para a discussão, partilho convosco as minhas modestas descobertas.

    A carta de Darwin a Marx de 1873:
    https://www.darwinproject.ac.uk/letter/?docId=letters/DCP-LETT-9080.xml

    A carta de Edward Aveling a Darwin:
    https://www.darwinproject.ac.uk/letter/?docId=letters/DCP-LETT-12754.xml

    A carta de Darwin de 1880:
    https://www.darwinproject.ac.uk/letter/?docId=letters/DCP-LETT-12757.xml

    Tudo colhido do sítio eletrónico da Universidade de Cambridge, que zela pelos arquivos do Darwin.

    A polémica teve princípio com estes artigos:

    Ralph Colp, Jr., “The Contacts Between Karl Marx and Charles Darwin”
    https://doi.org/10.2307/2708767

    Lewis S. Feuer, “Is the ‘Darwin-Marx correspondence’ authentic?”
    https://doi.org/10.1080/00033797500200531

    Com efeito, não demorou para que outros estudiosos interessados se envolvessem na contenda, apresentando inclusive reprodução e análise grafotécnica da carta de Darwin a Marx de 1873:

    Lewis S. Feuer, “The ‘Darwin-Marx correspondence’: a correction and revision”
    https://doi.org/10.1080/00033797600200381

    Aparece, então, Margaret A. Fay, que tinha chegado de forma autónoma às mesmas conclusões que Lewis S. Feuer e demais doutores:

    Margaret A. Fay, “Did Marx Offer to Dedicate Capital to Darwin?: A Reassessment of the Evidence”
    https://doi.org/10.2307/2709077

    A seguir, Isaiah Berlin apresentou as suas desculpas e algumas corrigendas:

    Isaiah Berlin, “Marx’s Kapital and Darwin”
    https://doi.org/10.2307/2709395

    A partir desse momento, ficou assente que Marx enviara a Darwin em 1873 um exemplar com dedicatória manuscrita da segunda edição alemã do primeiro volume de “O Capital”. Contudo, pareceu pouco verosímil aos académicos que Marx tivesse tido a intenção de dedicar qualquer outra obra sua a Darwin.

    A faina detetivesca dos anos 70 trouxe progressos, que vão dar que falar para os zaragateiros:

    Gordon Welty, “Marx, Engels and ‘Anti-Dühring’”
    https://doi.org/10.1111/j.1467-9248.1983.tb01347.x

    Dominique Lecourt & Erika Thomas, “Marx in the Sieve of Darwin”
    https://doi.org/10.1080/08935699208658030

    Como referi, fui introduzido ao assunto pela revista Monthly Review, de que eu era então assinante. Essa embrulhada já me pareceu um sarilho inextrincável à época da sua publicação, e agora pareceu-me ainda mais labiríntica. Nunca imaginaria tamanho enleio. Não se pode culpar ninguém por não perceber essa trapalhice.

    Espero que o meu modesto contributo seja do agrado de todos e permita elevar o nível das discussões. Os contendores deviam acalmar a pólvora, evitar devaneios e retomar o percurso normal dos debates.

  45. Creio que Marx elogiou bastante Darwin pelo que a teoria de Darwin representava do ponto de visto histórico e científico, e não pelos detalhes e meandros do darwinismo, e muito menos pela aplicabilidade “social” das descobertas “naturais” de Darwin. É preciso lembrar que como herdeiro do iluminismo o contexto era para Marx o de estabelecimento de bases científicas e materialistas em contraposição a preconceitos místicos e religiosos, um processo que inclusive nunca se completou e é cheio de vai-e-vens (os defensores da Terra Plana estão aí para confirmar), e Marx viu na obra de Darwin muitos méritos e se apressou em se colocar junto a ele numa trincheira racionalista. Depois recuou um pouco, conforme percebeu uma ou outra implicação teórica que julgou negativa para sua própria teoria, seja do ponto de vista científico ou político, e como de praxe teve alguma birra e evitou citar Darwin em O Capital, como algum comentador notou acima (algo também comum no meio intelectual). Não me parece uma polêmica interessante que um velho genial do século XIX tenha apoiado e admirado Darwin no século XIX (quem não admirou era reacionário) e tenha dito que suas obras cumpriam funções semelhantes, guardadas as devidas proporções. Um velho genial (me refiro ao Marx, e não ao outro velho genial Darwin) que precisou debater com Hegel, neohegelianos e Feuerbach sobre religião na Alemanha pré unificação. Mais curioso é o fato de haver alguma indignação em pessoas do século XXI quando se aponta um ou outro erro ou preconceito por parte de Marx, e imagino que por isso as piadas sobre marxismo e religião. Sobre isso, inclusive, indico meu texto publicado aqui anos atrás: O longo século XIX. [https://passapalavra.info/2016/03/107658/]

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