Por Granamir

Nas eleições de 2022 a principal central sindical do país, a CUT, apresentou um total de 48 candidatos para os cargos de deputado estadual, federal e senador, dos quais apenas 4 se elegeram. Essa ínfima participação dos dirigentes sindicais na esfera do poder estatal parece indicar uma perda da importância social e política da instituição sindical como um todo. A perda pode ser medida também pela assombrosa diminuição na arrecadação financeira dos sindicatos, suas federações e confederações, uma diminuição tão drástica que os deixou à beira da morte por inanição. A reforma trabalhista do governo Temer, entre outras coisas, acabou com o imposto sindical, de modo que a receita das instituições sindicais teve uma queda de inacreditáveis 99% entre 2017 e 2021, reduzindo-se a uma migalha insignificante do que já foi no passado. A mesma fonte do link anterior aponta também uma queda da taxa de sindicalização da população do país para 11%, bem como uma redução no número de acordos coletivos de 49 mil em 2013 para 34 mil em 2021.

A decadência dos sindicatos no país pode ser uma indicação da redução no peso econômico e político de certas categorias organizadas de trabalhadores, que perderam dramaticamente a capacidade de interferir na conjuntura. No passado, categorias como metalúrgicos, químicos, petroleiros, rodoviários, bancários, professores, funcionários públicos, reunidos em organizações sindicais poderosas, protagonizaram grandes lutas e introduziram suas pautas no debate político do país. Mas isso já não acontece há décadas, e hoje essas categorias estão numericamente reduzidas, organizativamente dispersas, politicamente prostradas.

A redução do peso dessas categorias, por sua vez, pode ser um dos reflexos da desindustrialização do país (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) e do naufrágio dos projetos desenvolvimentista e neodesenvolvimentista esboçados desde a metade do século passado, cujo recuo resultou numa especialização regressiva da economia. Reprimarização e especialização extrativista são os caminhos que restaram no lugar do que antes era chamado de projeto de país. Não há mais projeto além dessa função rebaixada na divisão internacional do trabalho capitalista, e qualquer que seja o governo do país, ele deve encontrar formas de gerir os subprodutos de tal colocação: devastação ambiental e pauperização das massas. Essa gestão pode ser feita com alguma maquiagem social, como nos governos do PT, ou com feição assumidamente predatória, como nos governos Temer e Bozo [Bolsonaro]. Para além dessa estreita margem de escolha, não existe alternativa, a não ser que se considere a ruptura com o capitalismo.

O retorno à presidência de Lula em 2022, com seu histórico de maior de todos os burocratas originados no movimento sindical, não expressa um empoderamento desse segmento, pois há muitas décadas o atual presidente já pertence a uma outra camada social, a da burocracia política e partidária. A sua função agora é gerir uma sociedade adaptada a essa especialização extrativista, em cujas grandes cidades uma gigantesca massa de trabalhadores desempregados crônicos, inempregáveis, subempregados, precarizados, informalizados, temporários, pejotizados, em meio período, uberizados, etc., luta pela sobrevivência entre bicos e trampos, nos call centers, nos balcões, nas calçadas, nos vagões, nos semáforos, nas plataformas e aplicativos. Enquanto isso, aquelas categorias organizadas que restaram veem impotentes as suas conquistas coletivas do passado escorrerem lentamente pelos dedos, e veem o seu lugar social ser sitiado raivosamente pelo restante da sociedade como um reduto de “privilégios”, inaceitáveis numa era de competitividade e individualismo desenfreados.

A distopia anarcocapitalista das plataformas

O debate sobre o tipo de sociedade que emerge no ocaso da industrialização já transcorre há várias décadas, e nos países centrais se falava em “sociedade pós-industrial”, “sociedade do conhecimento”, “fim do trabalho”, etc. Boa parte dessas denominações se referem a uma ilusão de ótica bairrista, provocada pelo fato de que grande número das indústrias pesadas se deslocou dos Estados Unidos, Europa e Japão para outros continentes, especialmente sudeste asiático, China e América Latina. Agora, quando a desindustrialização atinge o Brasil, o cenário não é de uma avançada economia de serviços e de uma “sociedade do conhecimento”, mas ao invés disso, de retrocesso e barbárie.

Considerando o contexto global, não somos partidários das teses de que o trabalho industrial e o proletariado aí empregado desapareceram ou deixaram de ter qualquer importância. Assim como a indústria não fez desaparecer a agricultura, a pecuária e o extrativismo, os serviços baseados em tecnologias da informação não fizeram desaparecer a indústria. A indústria e o proletariado industrial podem ter sido, isto sim, secundarizados, temporariamente ou não, por outras tendências econômicas, forças sociais e locais de conflito. A essência de um modo de produção não está nos instrumentos de trabalho mais usados, que podem ser o arado de boi, a máquina a vapor, o motor à explosão ou o celular, mas nas relações sociais. A essência do capitalismo não está na indústria, mas no movimento de autovalorização do valor, que pode se servir dos mais variados instrumentos técnicos e mediações sociais.

As ferramentas de trabalho, as categorias profissionais que as utilizam, o resultado do trabalho, tudo isso pode variar, e o capitalismo tem dado mostras de que pode seguir funcionando a despeito dessas variações. O movimento da valorização do valor tem se adaptado a todas essas variações, porque o valor nada mais é do que o próprio trabalho humano tornado abstrato e erigido em fetiche que controla a vida humana, e enquanto a humanidade não assumir o controle sobre a própria vida, de forma coletiva, consciente e organizada, o capital seguirá sua espiral de insanidade e destrutividade. Se as formas alteradas da reprodução ampliada do capital representam uma deformação, artificialidade ou crise do modo de produção, isso é tema para extensas discussões, que não podem ser desenvolvidas aqui. Para o que estamos discutindo, o que importa é que todas as antigas mediações sociais, a indústria, a família, o Estado, a escola, o direito, a escravidão, a religião, etc., podem se tornar suportes para a valorização do valor, no papel principal ou de coadjuvante, conforme flutuam as contingências históricas. Em se tratando do Brasil, as antigas categorias organizadas de trabalhadores empregados na produção material não vão desaparecer completamente, e não vão ser substituídas totalmente por uma massa infinita de empreendedores mediados por “redes sociais”. Da mesma forma, o Estado e sua burocracia, seu aparato repressivo e suas instituições também não vão desaparecer. Os segmentos tradicionais da estrutura de classes e o Estado capitalista continuam tendo algum peso na realidade, seja ele residual ou ainda de alguma importância. Qualquer que seja a atividade econômica predominante num determinado país, a lei do valor e a lógica do capital como sistema global seguem presidindo o seu funcionamento. O que estamos observando é que o eixo dinâmico da realidade mudou na direção das relações econômicas mais precárias e das plataformas tecnológicas que as produzem e reproduzem. Isso pode ser definitivo ou não, mas no momento, é desse eixo que partem as tendências predominantes na realidade, e é nesse cenário que os processos de luta são também desencadeados e recuperados.

As grandes empresas de tecnologia, como Microsoft, Amazon, Google (Alphabet), Apple e Facebook (Meta) se tornaram muito mais poderosas que muitos governos nacionais e criaram uma infraestrutura que busca substituir as mediações que antes eram providas pelo Estado. As funções de totalização e racionalização das relações sociais são aos poucos assumidas pelas plataformas geridas por essas empresas. As plataformas realizam a fantasia neoliberal do Estado mínimo, na qual não há autoridade centralizada, todos são compradores e vendedores, tudo está à venda, a publicidade é a arma do negócio e qualquer ideia de controle democrático e solidariedade são as vítimas.

Supostamente, não há editores, censores, juízes, gestores nas plataformas, há apenas a lei do mercado, a lei da oferta e da procura e a vitória da meritocracia. O sucesso recompensa os melhores com visibilidade, monetização e prestígio, e pune os incompetentes com o ostracismo. Na busca pelo sucesso, há regras de conduta que todos devem seguir e mecanismos automáticos para denunciar quem as transgride (evidentemente, há censores que avaliam as denúncias para remover conteúdos e usuários transgressores, mas tudo tem de aparecer como se fosse autorregulado). Nas plataformas se constrói uma distopia anarcocapitalista baseada em mecanismos que se diz serem totalmente automatizados, algoritmizados, que dispensam a intervenção humana, em que o usuário atende a si mesmo, e dessa forma cria as instruções para ser servido exatamente daquilo que já constitui o seu universo mental, o seu próprio mundo à la carte, a sua bolha individual.

Nas últimas décadas as formas de organização e consciência foram canalizadas para uma subjetividade dramaticamente empobrecida, incapaz de pensar para além das categorias fetichizadas da sociabilidade do capital. Quanto mais avança o desenvolvimento de áreas como informática, telecomunicações, inteligência artificial, engenharia genética, etc., menos esse desenvolvimento aparece como economia de trabalho humano, e mais se aprofunda a imagem da técnica como um fetiche insuperável e segunda natureza insondável. Quanto menos a humanidade se enxerga como sujeito da história, mais os indivíduos se colocam como objetos das mediações tecnológicas mobilizadas pelo capital. Aquelas inovações técnicas que teriam a possibilidade de libertar a humanidade do fardo do trabalho como imposição, ao invés disso, plasmaram um tipo de vida social em que todas as esferas de atividade se transformam em extensões do trabalho.

Lazer, estudo, namoro, cultivo da interioridade, tudo se transforma em extensões do trabalho, passando a ter metas quantitativas e índice de desempenho; e o trabalho propriamente dito se torna uma corrida cada vez mais acelerada contra o tempo. As metas são cada vez mais difíceis de serem cumpridas, o monitoramento é mais ubíquo e persecutório, as relações sociais são cada vez mais permeadas pela regressão narcisista e ansiedade paranóica. O vínculo social material desaparece da vista na forma de “redes sociais” algoritmicamente mediadas que escondem a dependência recíproca dos indivíduos e a apresentam como concorrência direta de todos contra todos, expressa em índices de popularidade e registrada em notificações que perseguem insistentemente os usuários no canto das telas.

Essas mudanças nas formas de produção e atividade econômica provocam uma mudança correspondente nas formas de organização dos trabalhadores. Ao se colocarem em segundo plano aqueles “batalhões pesados” de categorias organizadas em sindicatos e centrais, ofuscados por massas atomizadas de precarizados sem emprego formal, se virando em bicos ou vinculados a aplicativos e plataformas, que nova forma de organização surge como referência? O que toma o lugar dos antigos burocratas sindicais? E como construir formas autônomas de luta que escapem à recuperação e à burocratização? As respostas a essas perguntas estarão na base de qualquer projeto anticapitalista a ser pensado para o atual período histórico. O que esse texto está tentando fazer, sem qualquer pretensão de sequer esboçar os elementos iniciais de tais respostas, é o mero registro de algumas observações a respeito de fenômenos correlatos a essa questão da forma de organização, que se manifestam na esfera das mediações políticas e ideológicas.

Política nas “redes sociais” como briga de torcidas

Não temos sequer uma definição acabada do que seriam “influenciadores”, pois essa denominação pode incluir qualquer pessoa que publica sistematicamente algum tipo de conteúdo audiovisual nas redes. Nesse caso, poderíamos estar falando da maior categoria profissional do país, com cerca de 9 milhões de pessoas. Entretanto, qualquer uma dessas pessoas atuando nas plataformas pode supostamente fazer sucesso, subir de degrau, se tornar uma mega celebridade e ganhar muito dinheiro. Nessa suposição da possibilidade de sucesso se dilui ideologicamente a diferença de classe entre pessoas que publicam por compulsão ou diversão e pessoas que atingiram aquele patamar de celebridade milionária. É fácil perceber que a diferença entre esses pontos extremos existe, mas muito difícil de traçar a linha demarcatória, porque a faixa intermediária entre eles se constitui como uma zona cinzenta de indeterminação, que é própria do tipo de sociabilidade instaurada pelas redes.

O imaginário liberal do indivíduo que atinge o sucesso por si mesmo está obviamente em ação aqui, assim como a negação do caráter social da produção material e cultural, das diferenças e interesses de classe. A ideia de que qualquer um desses 9 milhões de influenciadores pode se tornar o mais popular do país esconde a diferença de classe que antecede a entrada de cada um deles na rede e que se reproduz no interior das próprias redes, geralmente com poucas alterações. Os casos excepcionais dos influenciadores que partem “do nada” e conquistam sucesso estrondoso são exatamente isso, exceções, as quais a ideologia prevalecente apresenta como se fossem a regra. A afirmação do indivíduo e a negação das divisões sociais estão implícitos na própria estrutura discursiva das redes.

Para os propósitos desse texto, estamos chamando de influenciadores as grandes celebridades das redes, que estão no topo da pirâmide com seus milhões de seguidores, mas também as camadas logo abaixo, os milhares de aspirantes que estão na luta para chegar ao topo, investindo tempo e recursos nessa meta. Essa categoria que subsume desde celebridades as mais diversas da indústria cultural a políticos profissionais da velha geração, passando por esportistas, estrelas pornô, humoristas, pastores evangélicos, charlatães de qualquer estirpe, ou por qualquer pessoa que, acidental ou intencionalmente, tenha conseguido nos seus quinze minutos de fama algum tipo de notoriedade, que tenha sido viral o suficiente para permanecer à tona na maré instável dos algoritmos. Um influenciador é uma figura que por qualquer motivo ficou famoso e usa a sua fama para conseguir monetização ou capilaridade eleitoral, ou as duas coisas.

A dialética é sempre uma via de mão dupla: quando se abre o caminho para que influenciadores se tornem políticos, os políticos, por sua vez, se tornam influenciadores. Um político é, hoje, um animador de auditório cuja tarefa é manter engajada a sua torcida virtual de seguidores. Um político não pode mais depender do seu sucesso e de suas qualidades como gestor para seguir vivo nas disputas de cargos. Ele precisa manter o clima de campanha eleitoral permanente, o que significa, às vezes, governar contra o próprio governo. Os eleitores de Lula descobrem, desapontados, que não há nada que ele possa fazer para reduzir a taxa de juros, assim como os eleitores do Bozo descobriram que existia um obstáculo chamado STF [Supremo Tribunal Federal] e constituição federal que o impediam de levar adiante seus despautérios. Cada governante de plantão passa a ter como ofício cotidiano o ato de criticar as instituições contra as quais é impotente e que supostamente lhe impedem de entregar o resultado prometido quando em campanha. Ao desempenhar esse ofício, cada político faz dessas instituições e seus representantes o alvo a ser odiado pelo seu respectivo “gado” de seguidores.

Enquanto isso, a gestão propriamente dita é deixada para aqueles segmentos da burocracia de Estado que não são eleitos (forças armadas e polícias, judiciário, Banco Central). É assim que, entra governo, sai governo, e os tópicos centrais da vida econômica e social não são alterados: o valor dos salários, os direitos trabalhistas, a taxa de juros, os índices de inflação, a política de preços da Petrobrás, o extrativismo, a degradação ambiental, a desindustrialização, as privatizações, a reforma do ensino médio, etc., nada disso vai ser alterado no Brasil com a troca de governo de Bozo para Lula. E no entanto, a campanha eleitoral de 2022 foi vivenciada pelas torcidas virtuais de ambos os concorrentes como se uma batalha épica de vida ou morte estivesse em andamento.

Evidentemente, nesse tipo de disputa, o campo bozista tem uma vantagem, pois ele se mostra muito mais capaz de converter engajamento virtual em militância real. Ele fornece um horizonte de transformação em que os indivíduos projetam as suas fantasias de realização, por meio de significantes vazios (Deus, pátria e família) e também uma representação do mal no qual podem projetar o seu ódio e ressentimento (o comunismo, a bandidagem, a ideologia de gênero). O indivíduo sente que faz parte de algo maior, que pode transformar sua própria vida e a sociedade ao redor, que o motiva a atuar no sentido dessa transformação, ou seja, a se tornar militante. É por isso que, mesmo tendo perdido a eleição, o bozismo segue como movimento social organizado capaz de manter sua pauta em disputa na sociedade, enquanto que o petismo, mesmo tendo vencido a eleição, não consegue propor nada, porque seu poder de mobilização é absolutamente nulo e sua imaginação transformadora inexistente.

É pertinente a ressalva de que Lula venceu a eleição em 2022 contando não apenas com o petismo, mas com as forças políticas e segmentos do eleitorado que foram anti-petistas em 2018 e fizeram o giro para o anti-bozismo em 2022, mas isso não invalida a caracterização de que há uma impotência do petismo para a mobilização, e sobretudo, uma inapetência. Considerando-se as trajetórias dessas duas forças num prazo mais longo, no percurso de pouco mais de uma década, as duas realizam uma curva que se cruza em sentidos opostos: enquanto o petismo perde capilaridade, organicidade e enraizamento social, assumindo um perfil mais virtual, o bozismo faz o caminho contrário, se dissemina no campo virtual e vai ganhando capacidade de ação no mundo real.

O campo lulista, ao contrário daquilo que os bozistas vivenciam como uma utopia de transformação total da vida pessoal e coletiva, não tem nada parecido a oferecer que ganhe corações e mentes, que desperte as paixões e a imaginação, e que motive novos milhões de pessoas a sair da postura passiva de espectador e ingressar na atividade política e na condição de militante. O novo governo oferece apenas alguns ajustes minimalistas nos índices e porcentagens da massa de mais-valia que é centralizada pelo Estado para ser distribuída por políticas públicas. 1% a menos de inflação aqui, 1% a menos na taxa de juros ali, 1% a mais de verbas para projetos culturais acolá, e essa mesquinharia gerencial deve ser embalada para consumo como se fosse uma mudança dramática e espetacular, pela qual valeria a pena travar a tal batalha de vida ou morte. Essa dificuldade muito maior para vender o peixe lulista talvez explique a margem apertada da vitória eleitoral e a permanência em primeiro plano da militância bozista. A ideologia bozista, afinal de contas, como combinação de extrativismo, armamentismo, masculinismo, empreendedorismo, neopentecostalismo e individualismo, parece muito mais realista como saída para o atual momento histórico, em que a ideia e a viabilidade de um projeto de país estão mortos e enterrados, e as saídas e organizações coletivas estão desacreditadas e corroídas por décadas de burocratização e peleguismo.

O bozismo como empreendedorismo político

O ponto em que estamos tentando chegar é o das referências para organização dos trabalhadores. Trazemos o bozismo apenas para ilustrar, por contraste, a forma em cuja direção está se movendo, a reboque, a antiga burocracia originada no movimento dos trabalhadores, o que será feito na seção seguinte. No cenário de que estamos tratando, a iniciativa está partindo toda do campo bozista, e seus adversários estão correndo para imitar os métodos desenvolvidos pelos capangas do ex-presidente. Por isso, é importante dissecar um pouco mais esses métodos.

O Bozo aglutinou em torno de si toda uma malta de oportunistas ambiciosos o suficiente para buscar dinheiro e poder a qualquer preço, mas essencialmente incompetentes e despreparados, incapazes de passar pelos filtros meritocráticos da burocracia de Estado ou pelos processos seletivos de uma grande empresa e da concorrência de mercado. Militares que jamais chegariam a general, advogados que jamais chegariam a juiz de uma corte superior, diletantes que jamais passariam por uma banca de doutorado, aspirantes a celebridade que jamais passariam num teste de telejornal local, médicos que jamais participaram de (ou raramente leram um) experimento científico e vendem o tratamento precoce fictício contra covid, etc.; todos descobriram, por meio do exemplo do próprio capitão, que simplesmente não precisam esperar a sua vez. Não precisam aguardar pacientemente na fila e fazer a lição de casa para satisfazer os critérios de promoção de cada corporação e chegar no topo da cadeia de comando.

Basta criar um canal no YouTube ou perfil em rede social, jogar às favas qualquer resquício de pudor ou escrúpulo, qualquer vestígio de coerência moral ou epistemológica, e mentir, mentir loucamente, mentir com toda desfaçatez e canalhice, mentir diariamente em doses industriais, para fornecer àquelas massas de pessoas revoltadas os ingredientes com os quais preencher os seus significantes vazios. Isso é suficiente para conseguir dinheiro e poder, sem passar pelos aborrecimentos de uma carreira na burocracia estatal e sem ter de cumprir suas exigências meritocráticas.

Há um paradoxo particularmente revoltante no fato de que toda essa fauna de oportunistas, desqualificados e estelionatários emergiu nos últimos anos furando a fila das suas carreiras, brandindo cinicamente as bandeiras da defesa da família, da religião e dos bons costumes, mas tenha conseguido projeção jogando a culpa de todos os problemas da sociedade capitalista exatamente sobre os mais desfavorecidos, os pobres e minorias que a esquerda tentava proteger, acusando esses segmentos de tentar escapar das regras do jogo da concorrência capitalista, ou seja, justamente, de furar a fila. Num país em que as instituições do bem-estar social nunca existiram de fato, aqueles que se beneficiam das parcas migalhas que chegaram a ser distribuídas, como direitos trabalhistas, previdência, serviços públicos, cotas, universidades públicas, etc., são tratados como privilegiados e fraudadores.

Depois que o Bozo abriu a porteira desse método de furar a fila, uma boiada de apoiadores o seguiu e se elegeram deputados, senadores e governadores. O bozismo é um movimento de empreendedores políticos, de youtubers que se lançam candidatos. São esses “quadros” do movimento bozista que fazem a mediação entre a liderança do ex-presidente e suas bases, calibrando o discurso para torná-lo adequado a cada nicho do eleitorado. Para os idosos saudosistas da ditadura, vendem o Bozo como o capitão que vai lavar a honra dos militares; para as tias do zap [WhatsApp], vendem o defensor da família que vai barrar o aborto e a ideologia de gênero; para qualquer pessoa que foi vítima da violência do crime, vendem o defensor da polícia que atira primeiro e pergunta depois; para os profissionais liberais, autônomos e donos de pequenos negócios, vendem o anarcocapitalista que vai acabar com os impostos, a regulamentação, a fiscalização e os entraves burocráticos que atrapalham os negócios; para os latifundiários, vendem o caubói [cowboy] que vai passar fogo no MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e nos índios; para os gamers, rockers, nerds, ancaps e incells, vendem o tiozão desbocado que ofende as feministas e transgride o linguajar politicamente correto da esquerda; e assim por diante.

O truque funciona porque esses diversos segmentos do eleitorado bozista não necessariamente dialogam entre si, de modo que dificilmente vão ligar os pontos, dificilmente vão ter elementos suficientes para construir o retrato completo de tudo o que o Bozo diz, do que ele faz e do que ele é (ou sequer vão ter interesse em fazê-lo). Vão ter acesso apenas a fragmentos devidamente editados e selecionados por esses mediadores especializados, os influenciadores/empreendedores/políticos bozistas, mas esses fragmentos são tudo o que precisam. Impedir a visão do todo e manter as pessoas atadas ao nível da imediaticidade e da parcialidade é o modus operandi por excelência da dominação ideológica burguesa, funcionando aqui elevado ao milésimo grau. Mais uma vez, repetimos, esses métodos funcionam não porque os seus operadores sejam manipuladores especialmente ardilosos, e as pessoas aderem a esses discursos não porque sejam excepcionalmente imbecis ou “gado”, mas porque tais discursos possuem alguma aparência de ressonância com a realidade do capitalismo tardio num país periférico. A mentira mais eficiente é aquela que é feita de meias verdades.

Antes de passar para a próxima seção, é importante deixar registrado que, num país atavicamente patrimonialista como o Brasil, os critérios a serem aferidos pelos tais filtros meritocráticos, em alguns casos, se referem simplesmente ao mérito peculiar de ter nascido na família correta, ter estudado na escola ou na faculdade correta, falar o jargão correto; mais do que a uma performance ou capacitação realmente demonstradas em alguma área de atividade. Mas isso não invalida o argumento de que os bozistas se caracterizam por tentar burlar todo e qualquer filtro, esteja ele fundamentado em méritos reais ou não. Em algumas situações, inclusive, eles podem se beneficiar do efeito proporcionado pelo discurso populista de crítica e combate às “elites”, explorando de maneira demagógica o fato de terem tido o seu acesso ao topo barrado pelas vias usuais.

As obras que ilustram o artigo são da autoria de Yayoi Kusama (1929-)

 

Leia aqui a segunda parte do artigo.

4 COMENTÁRIOS

  1. Você sabe que leu algo muito significativo, quando ao fim do texto fica sem palavras.
    Por enquanto, é claro…

    PS: uma das primeiras reações (não de minha parte, óbvio) a este artigo é considerá-lo como uma convocação (implícita) a uma militância de Esquerda nas redes sociais, para se opor aos influencers apoiadores de Bolsonaro.

  2. MOVIMENTOS SERIALIZANTES
    Pendular: esquerda para a direita e vice-versa.
    Bascular: de cima para baixo e vice-versa.
    Mais do mesmo, no jogo da oligarquia cleptocrática.

  3. Há muitas possibilidades de se dialogar sobre este artigo, como também a partir dele. É difícil escolher uma delas, porque muitas são de importância vital para se compreender a atual realidade (seja virtual ou concreta).

    Assim minha escolha se dá não por nível de importância, e sim pela questão me parecendo ser a primordial. Qual seja: por que as pessoas frequentam as redes sociais?

    Apesar dos motivos serem inúmeros, e novamente tentando identificar o primordial deles, bem pode ser: se busca no virtual aquilo que falta ao concreto.

    A existência concreta no presente cotidiano se tornou tão insuportável, a ponto de ser irresistível uma fuga para a virtualidade das redes sociais.

    Para se constatar na prática esta situação, basta entrar num vagão de metrô numa linha com última estação em qualquer periferia. No mínimo 7 passageiros em cada 10 estarão com a cara enfiada no celular.

    As redes sociais são um vício. Como o alcoolismo, os ansiolíticos, a cocaína, e todo tipo de manipulação da percepção e da consciência para suprimir a rebeldia da classe trabalhadora.

    Como reverter esta realidade? Como fazer para a existência concreta se impor à vida virtual nas redes sociais?

    Para os influencers ditos de Esquerda, é necessário disputar as redes sociais. Seria esta a solução?

    Aqui também há vários exemplos, desde Jones Manuel, passando por Sabrina Fernandes, para chegar até Andre Janones. Entre outros…

    Prefiro me referir aquele me parecendo o mais peculiar de todos: Eduardo Moreira.

    Este está convencido que o conhecimento liberta. Para este fim influencia via redes sociais. Seus vídeos alcançam centenas de milhares de acessos.

    Bastaria mudar o conteúdo e utilizar a mesma forma? Ou é justamente a forma o mais poderoso conteúdo?

    O conhecimento liberta? Através do conhecimento obtido nas redes sociais é possível delas se libertar?

    São as idéias que mudam o mundo? A consciência determina o ser social? Desde Carlos Marques sabemos que é exatamente ao contrário. Só a luta muda a vida!

    Apesar de aparentemente insignificantes, nas pequenas lutas concretas nossos laços uns com os outros voltam a ganhar materialidade.

    Só a luta na concretude do presente cotidiano pode transformar vidas insuportáveis. E assim também nos libertar das redes sociais.

    Então, de novo nosso mundo se reencanta.

  4. “Então, de novo nosso mundo se reencanta.” Fofura perde (aka Silvia Federici)…

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