França em chamas

Por Camarada em Evry

 

Diante da recente onda de protestos que tomou conta de diversas cidades francesas no contexto da morte de um jovem de 17 anos pela polícia, compartilhamos com nossos leitores um email que recebemos de um camarada de Évry.

 

Muito rapidamente, informo o que diz respeito a Evry. Em geral, não sei muito mais do que aquilo que é dito nos artigos de imprensa disponíveis na Internet. As coisas parecem acontecer à noite e, à noite, estou em casa e durmo…

No meu bairro, onde fiz uma ronda cansativa na sexta-feira, quando estava de folga, dois ou três carros foram queimados e houve alguns saques no centro comercial Evry 2 (algumas lojas de sapato, roupa de marca, joalherias, padarias, farmácias e restaurantes foram mais ou menos destruídos). Como o meu prédio fica do outro lado da rua, encontramos alguns cabides e etiquetas amontoados, o que mostra que vasculharam e andaram pela área para se livrarem rapidamente das coisas que apontavam suas presenças nas lojas.

Alguns danos eram bem intensos (janelas quebradas de um pequeno restaurante asiático e de um laboratório de análises clínicas), outros um pouco menos. O McDonald’s estava completamente destruído.

Em geral, o que aconteceu é que as lixeiras foram espalhadas e incendiadas três noites seguidas em todos os cruzamentos que levavam ao centro dos bairros. Houve fogos de artifícios muitas vezes durante a noite, mas sem sirenes. Então não sei bem como ocorreu as intervenções dos policiais e dos bombeiros…

França em chamas

Na quinta-feira de manhã, quando acordei às 5 horas para procurar meu carro, foi um pouco surreal e inesperado o fato de não ter ouvido nenhuma sirene durante a noite. As fumaças cinzas na calçada com um “bloqueio” feito por patinetes e bicicletas apontava para absolutamente ninguém. Nenhum “desordeiro”, nenhum policial e nenhum bombeiro.

As reações ao meu redor são muito bem resumidas pelas duas posições apresentadas por C.

Em nenhuma ordem específica ou julgamento de minha parte:

– os incêndios diários não são bem vistos por alguns colegas.

– No sábado de manhã, no vestiário, quando cheguei, encontrei um grupo de rapazes exaltados. Metade falava em francês e a outra metade em outro idioma (a maioria de africanos). Eles estavam conversando sobre quem havia queimado mais coisas; um rapaz sozinho que estava sendo ridicularizado tentava argumentar com eles: “como os pequenos comerciantes são responsáveis pela morte do jovem?”

– uma vendedora magrebina de uma loja do Agora explicando à minha esposa que tudo isto é culpa dos árabes que estão lá para causar problemas.

– uma mulher que se define como árabe, por volta dos 50 anos, que eu conheci em uma loja na sexta-feira, que disse que divorciou de seu marido, entre outras coisas, porque ele começou a ir à mesquita. Para ela, as mesquita tentaram e falharam em penetrar na sociedade francesa e seriam essas mesquitas que estariam levando esses rapazes para atacar a França e que a FN (Frente Nacional) deveria ter ganhado há muito tempo para impedir que isso acontecesse.

– uma colega que mora nos bairros do norte de Melun e que não foi trabalhar no sábado porque não conseguiu dormir por quatro noites. Ela me contou tudo sobre a complexidade dessas situações no mundo real, longe das fantasias da televisão: nas três primeiras noites houve barulho e violência, mas os “desordeiros” eram da vizinhança e não tocaram nos carros. Na quarta noite, no entanto, um grupo que não parecia morar na vizinhança chegou e começou a quebrar e incendiar os veículos locais. Nesta ocasião, seus irmãos e outros rapazes de vários prédios desceram para defender a vizinhança e impedi-los de destruir os carros dos moradores.

– outra colega que mora em M… em um prédio na mesma rua da delegacia de polícia municipal. Ela me disse que não conseguiu dormir a noite por causa da bagunça embaixo de sua habitação. Houve uma divisão entre os manifestantes sobre o que fazer e que ela podia ouvir de sua varanda. Alguns disseram “não vamos atacar a delegacia de polícia, têm apartamentos acima”, mas os mais empolgados não se importaram e atearam fogo de qualquer maneira. Ela concluiu dizendo que a polícia deveria atirar em todos eles, que estavam fartos de pessoas que trabalham e acordam cedo para ganhar a vida honestamente e são constantemente tomadas como reféns por pessoas violentas que destroem seus próprios ônibus. Além disso, informou que se os caras parassem de agir como idiotas em algum momento, também não teria havido mortes em Nanterre. Ela sempre morou no bairro, mas está desiludida e gostaria de poder se mudar com sua filha, que está cuidando sozinha.

– outra colega me disse que matar alguém por se recusar a obedecer era demais, mas que, nesse caso, as pessoas estavam atacando qualquer coisa. Segundo ela, só deveriam atacar delegacias de polícia porque o resto do que estão destruindo será pago por todos nós por meio de nossos impostos.

– outra colega que defende o policial explicando que não temos o contexto. Ela evoca a possibilidade do policial ter tido que lidar com o mesmo Nahel muitas vezes e que em algum momento se cansou de correr riscos o tempo todo contra pequenos idiotas que não respeitam nada. Ainda conclui que matar é ruim, mas é compreensível que em algum momento ele tenha se cansado…

– um vizinho me explicou que os jovens fazem isso para protestar contra as reformas impostas por Macron referente à aposentadoria aos 64 anos.

– Na prática, há vários colegas que não vêm mais ao trabalho, seja porque estão muito cansados pela manhã por não terem conseguido dormir a noite toda, seja porque não se atrevem a descer para pegar o carro ou, na maioria das vezes, porque o transporte público não funciona mais. Hoje de manhã, uma colega que eu não esperava ver estava lá. Ela pagou um táxi para chegar a tempo em sua posto de trabalho…

França em chamas

 

Traduzido pelo Passa Palavra.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Dado (1933-2010).

 

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