Por Nicolás Salas

Desde o mês passado, a Argentina tem sido palco de intensas lutas sociais na região de Jujuy, província ao norte do país, rica em recursos minerais. O estopim da revolta foi uma reforma na Constituição provincial, impulsionada pelo governador Gerardo Morales, que criminalizava os movimentos sociais e atacava as comunidades indígenas. Com vistas a informar nossos leitores dos acontecimentos desta luta (que ainda está em curso), resolvemos publicar o presente artigo. O original pode ser lido no site da AGENCIA DE NOTICIAS REDACCIÓN– ANRED.

Profeta em sua terra

Gerardo Morales se sente bem. Poderoso. Um pouco mais que forte. Impune. Goza de uma hegemonia quase absoluta nas instituições da província. É profeta em sua terra e isso é reconhecido pelos seus pares e pelos demais. Sozinho em seu gabinete, divaga em pensamentos vários. Compor a chapa presidencial junto a Horacio Rodríguez Larreta e, se tudo for bem, porque não, sentar-se ele próprio, num futuro não muito distante, na cadeira presidencial. Por momentos, uma pontinha de nostalgia o traz a tempos passados. Aqueles onde só a perseverança e a obstinação permitiram-no superar grandes adversidades. Se orgulha um pouco de suas qualidades. Não é para menos. Não faz muito tempo teve de deixar sua carreira política de lado para livrar-se do peso de ter sido funcionário da Alianza [1] e os pesadelos frequentes que lhe causaram a rebelião popular de 2001. Não o atormentam os 38 mortos de dezembro, mas a fuga de helicóptero [2]. Vai da comparação ao consolo e se tranquiliza: todos os da minha estirpe sentem o mesmo.

Consegue escapar da divagação. Ajeita a postura na cadeira, estira as costas e volta a respirar fundo. Sente que é merecedor do que está se passando com ele. Trabalhou duro, ninguém pode negá-lo. Um ano antes havia prendido ou processado às principais lideranças das organizações sociais de Jujuy. “Vão terminar como Milagro Sala” [3], vociferava em reuniões com empresários e políticos. Tanto fazia se as lideranças tinham alguma ligação com Tupac Amarú, organização que começou a desmantelar em 2016, primeiro encarcerando sua principal dirigente e depois incorporando os demais dirigentes em sua estrutura de poder. «A esta altura, quem pode dizer algo?», se questiona. Para piorar, em 7 de maio último, seu candidato, Carlos Sadir, ganhou as eleições com 49% dos votos com a promessa de reformar a Constituição da Província. Sem dúvidas, a cereja do bolo que Morales acredita merecer.

A constituição do lítio

Qual o objetivo da reforma constitucional em Jujuy?

Garantir os vultosos negócios do lítio e estabelecer definitivamente seu feudo político com Juntos por el Cambio [4]. Em contradição com a constituição nacional e a legislação internacional, a reforma impulsionada por Morales (artigo 67) estabelece “a proibição de bloqueios de ruas e estradas, assim como qualquer outra perturbação ao direito à livre circulação das pessoas e a ocupação indevida de edifícios públicos na Província”. Palavras mais apropriadas para um editorial do La Nación [5] do que para a redação de una carta magna. Enfim, tudo justificado pelo objetivo de alcançar a “paz social”, Essa paz de ferro que abra as portas às multinacionais do lítio que exigem governabilidade e “leis claras” para investir.

O que está em jogo é muito dinheiro. Jujuy faz parte do “triângulo do lítio” formado por Argentina, Bolivia e Chile. Estima-se que ali haja de 65% a 85% das reservas mundiais deste minério. Companhias de ao menos sete países (China, Japão, Austrália, Canadá, França, Reino Unido e Corea do Sul) estão de olho na região. Este potencial negócio foi uma das motivações centrais por trás da Constituição de Morales. Por isso que se incorporaram desde o início os artigos 36 e 50, que permitem ao Estado se apoderar de vastos territórios, muitos dos quais pertencem às comunidades originárias. Sem muito palavrório ratifica-se “o pleno domínio e a titularidade exclusiva da Província sobre os recursos naturais, a biodiversidade, os recursos genéticos e demais bens ambientais comuns existentes em seu território”.

Nos cálculos do executivo provincial, concluíram que era preciso se proteger. Por isso, a bancada governista incluiu na reforma a dissolução do Tribunal de Contas, que foi substituído por um órgão sem autonomia nem ingerência no controle dos repasses de verba realizados pelos funcionários do governo.

Crônica de uma luta histórica

Quinta-feira, 15 de junho de 2023

Quarenta constituintes radicais (membros da Unión Cívica Radical, UCR) e peronistas, encabeçados pelo governador Morales aprovam em tempo recorde a reforma da constituição de Jujuy. Seis constituintes da Frente de Esquerda se retiram da câmara e denunciam o “circo” armado pelas autoridades. A sessão não será televisionada. Dizem que alguns deputados sequer conhecem o texto que vão aprovar.

Do lado de fora milhares de manifestantes protestam. Os professores estão há 10 dias em greve e estão novamente mobilizados no centro de San Salvador. O salário-base de uma trabalhadora da educação em Jujuy não passa dos 60 mil pesos (aproximadamente 120 dólares) e grande parte do seu salário está vinculado a arbitrariedades patronais como gratificações por assiduidade. Há dias a convocatória supera as expectativas dos sindicatos do setor. As organizações territoriais também estão presentes e tomam as ruas levantando suas reivindicações por trabalho e contra as perseguições judiciais. Delegações dos povos originários descem ao centro e também marcam presença. Sem querer, Morales consegue o que nem a revolta popular de 1997 [6] havia conseguido: uma aliança entre servidores públicos, movimentos sociais e comunidades originárias.

Finalmente, na calada da noite a reforma é aprovada. O recinto está em festa. Representantes da Unión Cívica Radical (UCR) e do Partido Justicialista (PJ) se felicitam, se abraçam e tiram fotos. Não percebem a fissura. Do lado de fora, a inquietação não parece ser o sentimento geral. Tem raiva, motim e sobretudo ânimo para lutar.

A reação popular não demora a chegar. Sexta-feira pela manhã chega a San Salvador o “3° Malón” [7], integrado pelas comunidades originárias de Quebrada e Puna.

A caravana havia saído de Abra Pampa na quarta-feira. As famílias chegam cansadas. Marcharam 220 km. Não é para menos: são um povo de luta. Trazem consigo a história de seus ancestrais, aqueles que em maio de 1946 partiram do mesmo lugar mas daquela vez só interromperam a marcha quando chegaram à capital federal. Exigiam, como hoje, a plena posse de suas terras.

Um grupo de vizinhas autoconvocadas ficam às margens da estrada por onde passa a manifestação. Recebem as famílias com café, comida e roupa.

“Estão todos a favor de (Gerardo) Morales. Sejam radicais ou justicialistas, votaram contra os povos originários (…) Vamos seguir lutando até que isso seja anulado. É inconstitucional o que fez Morales”, disse ao jornal Página 12 Erica Cañari, da comunidade kolla Pozo Colorado [8].

Wipala [9] na mão, centenas marcham em direção ao Palácio do Governo. Esperam ser recebidos pelo governo e estão decididos a cumprir a consigna que se repete nos cartazes: “não à reforma constitucional”.

Em Jujuy há a “intersindical” que reúne associações de professores, servidores públicos e outros. Após a aprovação da reforma, ela têm se mostrado ativa e firme na manutenção da greve. São acompanhados pelos movimentos sociais e pelos povos originários. Estes últimos concentram suas forças em dezenas de piquetes montados às margens das estradas que atravessam as comunidades.

Com o passar das horas e o rechaço às medidas governamentais, a relação de forças parece se alterar um pouco. O rebanho já não está amarrado ao governo e até os gaúchos se rebelam. “Em Jujuy nasceu e se defendeu a pátria e agora a história nos manda defendê-la de novo, às instituições democráticas, a democracia, e temos que defender o Estado de direito e republicano que há oito anos é achincalhado pelo governo de Gerardo Morales”, afirma à imprensa Silvio Cazón, um dos gaúchos autoconvocados da região de Yala, que participa de um dos bloqueios em estradas.

A esta altura, o oficialismo fareja problemas maiores aos que haviam pensado. Vinte e quatro horas antes da reforma, o governador da província havia revogado o decreto 8464/2023 que previa multa a quem participasse de manifestações de rua. Mas era como tentar curar o câncer com aspirina. A raiva não diminuía. Já não são os “piqueteiros” os causadores do caos. Os docentes, trabalhadores e trabalhadoras da Saúde, servidores municipais, gaúchos, mineiros e povos originários se radicalizam em suas posições e métodos.

O juramento da nova Constituição, programada para 20 de junho, parece correr perigo. Todo mundo se convoca para a ir capital de Jujuy no dia. Morales os vê chegando. Horas antes da cerimônia, e desconhecendo o processo constituinte, se senta diante da câmera e anuncia a revogação dos artigos 36 e 50 que já haviam sido aprovados pela convenção: “Não queremos um artigo que não seja consenso entre as comunidades. Se as comunidades ainda tem algum receio, não alteramos nada e mantemos a redação anterior”.

Mas já é tarde para qualquer gesto. Os povos originários já aceitaram a declaração de guerra do governo e não parecem dispostos a baixar a guarda por concessões de última hora. O cenário se torna caótico e as cartas estão lançadas. De um lado Morales e seus aliados do Partido Justicialista; do outro, associações de trabalhadores, movimentos, povos originários, entre outros.

Terça-feira, 20 de junho. 8:00 horas, San Salvador de Jujuy

Colunas massivas de manifestantes se concentram às margens do rio Xibi Xibi. Já as organizações sociais, piqueteiras ou de economia popular se concentram na Avenida Hipólito Yrigoyen. Uma multiplicidade de bandeiras denota o amplo leque de organizações que vão desde a esquerda até o peronismo, desde a Unidad Piquetera até a UTEP (Unión de Trabajadores de la Economia Popular). Todas elas se juntam numa concentração de cerca de 10 mil pessoas. A linha de frente fica na intersecção com a ponte Gorriti em direção à Assembléia Legislativa, a uns 40 metros do cordão de isolamento montado pela polícia.

Do outro lado, na Avenida 19 de abril, se encontram os professores, acompanhados pelas outras agremiações da intersindical. Em número igual ou até superior ao dos movimentos, o grosso das pessoas marcha atrás das bandeiras do Centro de Docentes de Enseñanza Media y Superior (Cedems) e da Asociación de Educadores Provinciales (ADEP). Proliferam bandeiras argentinas e cartazes com palavras de ordem como “Abajo la reforma, arriba los salarios”, “Chau Morales” ou “Morales gato”.

Ambas as colunas iniciam sua passeata até as portas da Assembléia Legislativa, onde deputados constituintes da UCR e do PJ realizam as alterações à reforma que o governador solicitou horas antes. Os povos originários não comparecem em peso à manifestação, concentram suas forças nos bloqueios nas estradas que tornam a província intransitável. Sua radicalidade não deixa a desejar, usam os trilhos dos trens para bloquear as vias, encurralam policiais infiltrados e os entregam na frente das câmeras. Resistem à repressão e voltam com ainda mais força.

Às 10 da manhã ocorrem os primeiros confrontos entre a polícia e os manifestantes. As organizações sociais tentam cruzar a ponte e são reprimidas pelo efetivo policial que consegue manter sua posição por 10 minutos e recuam até a Assembléia Legislativa onde se escondem atrás do isolamento que protege o edifício. Milhares de pessoas atravessam a ponte sobre o Xibi Xibi e param na Avenida 19 de Abril, em diagonal com a coluna dos docentes e de frente para a linha policial que se reagruparam numa única zona.

O impasse dura poucos minutos e a repressão recomeça. O primeiro objetivo da polícia é afastar os manifestantes do edifício onde estão os deputados. Os professores conseguem resistir por alguns minutos, mas vão cedendo posições até que a manifestação se dispersa, com alguns detidos e várias pessoas feridas.

Enquanto isso, a manifestação dos bairros populares de Jujuy se concentra na ponte Gorriti onde centenas de pessoas se defendem com pedras e com o que mais estiver à mão. A esquerda argentina se faz presente, tanto a que dispõe de representação parlamentar como a esquerda extra-parlamentar. Os constituintes e dirigentes nacionais da Frente de Izquierda y los Trabajadores Unidad (FITU) permanecem várias horas junto aos que estão resistindo ao avanço das forças policiais. Seu candidato a governador, Alejandro Vilca, que obteve 13% dos votos nas últimas eleições, está ali e observa com preocupação o recrudescimento da repressão.

Às vezes, a polícia fica sobrecarregada. A tenacidade do povo de Jujuy parece crescer minuto a minuto. A raiva acumulada é perceptível. Os soldados começam a atirar pedras contra os manifestantes. Mas não só. Disparam na altura da cabeça. Em poucos minutos, Nelson Mamani, militante do MAR (Movimiento Argentina Rebelde), cai no chão após ser atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo na cabeça. Seu corpo fica estendido no chão, cercado por uma poça de sangue. Quase ao mesmo tempo, vários manifestantes auxiliam outro ativista atingido com um tiro de bala de borracha no olho. O cenário se torna trágico e lembra imagens de outros massacres, como os de Kosteki e Santillán em Avellaneda [10] ou o de Carlos Fuentealba em Neuquén [11]. As ambulâncias começam a levar dezenas de feridos. O clima fica pesado. Apesar de uma ou outra correria, as pessoas não parecem temer e estão decididas a ir até as últimas consequências. O sangue, o ar irrespirável pelos gases e os hematomas não os fazem recuar, ao contrário, parecem fortalecer o moral dos que estão na primeira linha.

Duas horas depois, as forças de segurança conseguem fazer a multidão piqueteira retroceder e abandonar a ponte. Na fuga, vão montando barricadas pelas ruas, atrasando a chegada da polícia. O efetivo avança com a cavalaria sobre a Avenida Irigoyen. Um oficial ataca duas senhoras que estavam sentadas na calçada com chicotadas. A população se enfurece e enfrentam a cavalaria com pedras nas mãos, obrigando-os a retroceder atpe que derrubam um deles. Chegam os policiais em motocicletas mas eles não avançam sobre os manifestantes e apenas se mostram como potencial ameaça. Ao grito de “Morales filho da puta”, Um vendendor ambulante tentava recolher sua barraca e é auxiliado pelos manifestantes para não perder suas mercadorias.

Entre as bandeiras e os manifestantes, integrantes da Agencia de Noticias Redacción (Anred) vão acompanhando o que se passa na linha de frente. Agitando as bandeiras, a manifestação recua até a avenida Dorrego onde se reagrupam e continuam os enfrentamentos. A composição da manifestação é marcadamente juvenil, com a molecada dos bairros ditando a dinâmica da luta, muito além do que as organizações estão dispostas a fazer.

Quem está de fora observa com atenção das varandas ou dos comércios. Alguns pedreiros quebram pedras numa construção e as entregam aos que estão na linha de frente disputando palmo a palmo com a polícia. Os socorristas voluntários se misturam na multidão, auxiliam os feridos e são atacados com balas de borracha. Também xingam Morales.

Na barricada montada próxima ao velho terminal, um manifestante mais exaltado grita: “vamos incendiar o canal 7 [12], esses mentirosos!”. As pessoas indignadas dão meia volta e começam a subir em direção à sede do canal. Uma catadora de material reciclável com a camisa do MTE (Movimiento de Trabajadores Excluidos) dá um grito pedindo calma, pois a retirada abrupta deixaria sozinhos os que continuavam se enfrentando com a repressão policial. Os manifestantes recuperam a razão e desistem da retirada. Já passam quatro horas desde o início dos enfrentamentos. Já não se vêem bandeiras de organizações, ainda que seus militantes estejam presentes. A repressão se estende várias quadras acima da avenida Dorrego. Não há uma direção clara no momento, e a resistência vai se dando por deliberações efêmeras e uma organização espontânea dos manifestantes.

As escaramuças prosseguem na subida para a ponte caracol. Ali a cavalaria volta a avançar sobre uma dezena de manifestantes. A vizinhança ao longo da avenida não acolhe as forças da ordem com gratidão. Das varandas atiram pedras contra o efetivo policial. Os últimos manifestantes tentam sem êxito se dirigir ao canal 7 e finalmente se dispersa o ato que já durava quase seis horas.

É clima de revolta popular, ainda que o furor do enfrentamento comece a esfriar depois das 16 horas. Depois disso, alguns setores se reuniram na praça Belgrano, em frente ao Palácio do Governo, enquanto outros foram para a penitenciária de Alto Comedero exigir a libertação das 68 pessoas detidas na manifestação.

Após a repressão, as ruas de San Salvador parecem uma cena digna de terrorismo de Estado. Caminhonetes 4×4 com vidros escurecidos, sem identificação em sua maioria e com policiais na traseir portando armas de grosso calibre, patrulham o centro e vários bairros. Muitas detenções e perseguições que se seguiram aos confrontos de rua foram efetuadas com essas caminhonetes. Horas depois, vem à público, pelos meios de comunicação, que os veículos pertencem a várias empresas privadas, entre elas a Hormixa, uma das empreiteiras que tem contratos com o governo de Jujuy desde 2015.

Com feridos e detidos, o conflito ganha repercussão nacional e derruba o bloqueio midiático que há anos cercava Jujuy, ou mais precisamente, Morales. Os principais dirigentes políticos argentinos, em silêncio durante meses, se pronunciam com os fatos consumados e se atacam pelo Twitter e pelas redes sociais. Dão suas opiniões, se aconselham mutuamente e fazem chicana sobre um conflito que está longe de ser deles.

Enquanto isso, Morales não para de dar entrevistas acusando o governo nacional pelo ocorrido. As organizações de Jujuy preparam novas mobilizações. Convocam uma marcha com tochas para a quarta-feira (21 de junho). Há dúvidas sobre qual seria a adesão à convocatória.

Na manhã do dia 21, os grupos de whatsapp dos professores não param de circular mensagens com convocatórias contra o governo provincial e demonstram uma moral elevada que leva a crer que a participação se manterá ativa. O diálogo entre os setores em luta começa a se mostrar complicado – em verdade, nunca foi fácil. É difícil encontrar uma identidade e uma coordenação comum aos diferentes setores. Embora a reação dos bairros à repressão policial tenha garantido a nacionalização do conflito, existe muita preocupação entre os professores em se distanciarem dos motins da véspera, mesmo daqueles que se deram em legítima defesa face à violência vinda de cima. Fala-se constantemente em infiltrados que teriam atacado a Assembleia Legislativa, queimado carros e atirado pedras contra a polícia. Para além da existência real de policiais infiltrados no grosso das manifestações, o problema aqui é que se negue a resistência, daqueles que, de pedras na mão, decidiram não engolir a raiva. Representa um problema que transcende Jujuy. A estigmatização de décadas contra os “piqueteiros” não apenas atinge as organizações sociais como as afasta de seus aliados de classe.

Ao final, as agremiações fazem convocatórias separadas, inclusive entre os sindicatos. Os diferentes grupos se concentram em frente à Palácio do Governo em horários e lugares diferentes. A ADEP (Asociación de Educadores Provinciales) marca a concentração para as 17 horas e acende as tochas antes do pôr-do-sol. Percorrem sozinhos pelo centro de San Salvador. Ao mesmo tempo, as organizações da Unidad Piquetera, junto a outros grupos locais, se agrupam na avenida Rivadavia no mesmo ponto onde foram reprimidas 24 horas antes e dali marcham até a praça principal, onde, por volta das 18 horas, realizam um ato denunciando a repressão e a dezena de feridos e detidos. Quando os discursos estavam quase terminando surge a coluna do Cedems e os movimentos se juntam a ela. A manifestação é grande o suficiente para dissipar as dúvidas da manhã. Milhares de trabalhadores e trabalhadoras percorrem o centro da cidade. Os transeuntes não se mostram indiferentes. Param nas esquinas e aplaudem. Na esquina de San Martín e Necochea um grupo de vizinhas com bandeiras cantam em apoio aos professores. Comerciantes saem para as calçadas para ver as tochas de perto e alguns cantam as palavras de ordem ou acrescentam mais insultos contra Morales. O cortejo contra a reforma dura pouco mais de uma hora, e ao chegar com a garoa caindo sobre eles realizam um ato dos docentes na praça. Milhares de pessoas permanecem ali. Cantam e gritam palavras de ordem. Expulsam os jornalistas de “Todo Noticias” [13] da praça. Alguns intervém e pedem para não arrumarem confusão com os trabalhadores da imprensa. A raiva é grande, não se distingue empresa e empregado.

A manifestação se dissipa após as palavras de encerramento de Mercedes “mecha” Sosa, secretária-geral do Cedems e uma das lideranças do “jujeñazo”. A responsabilidade que pesa sobre ela não é pouca. Tomou posse na agremiação no começo de abril após o triunfo da combativa chapa Violeta contra a chapa Celeste. Seu primeiro grande desafio foi de magnitudes inesperadas. O diário La Nación lhe dedicou uma nota caracterizando-a como dirigente de esquerda e crítica à CTERA (Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina), sob a direção do secretário-geral da CTA (Central de Trabajadores y Trabajadoras de la Argentina), Hugo Yasky.

Nas primeiras horas da quinta-feira, 22, o governo anuncia uma nova rodada de negociações o grosso dos sindicatos do serviço público. Morales que havia anunciando o encerramento das negociações dias antes, volta atrás (mais uma vez) e convida os professores para uma reunião à tarde no Ministério da Educação. Antes da reunião, as organizações marcam uma nova manifestação no centro. É gigantesca. As colunas da ADEP e do Cedems são imponentes e se estendem por mais de dez quadras. As cores abundam, cam bandeiras, cartazes e uma dúzia de professores de música que vão tocando suas quenas, flautas e tambores no carro de som, dando ritmo e melodía a ao cortejo que é acompanhado por uma canção que as pessoas cantam em coro ao longo da marcha:

«Morales gato sos un ladrón, le robaste a la educación.

Morales gato sos un ladrón, le robaste a la educación

Tú has mentido, has engañado a todo el pueblo

Tú has mentido, has engañado a todo el pueblo

Morales gato grita todo el pueblo».

A cena se repete. Comerciantes, vizinhos e transeuntes cantam juntos e aplaudem. Concluída a marcha, a manifestação desloca-se para a secretaria de educação, que fica no bairro Malvinas, ao sul da capital. Os professores vão chegando aos poucos. Uma professora de educação física deapito no pescoço, ri com sarcasmo enquanto observa o edifício ministerial e comenta: “olhe o dinheiro que gastaram aqui e as escolas caindo aos pedaços”. Mais exatamente, a província desembolsou em 2021, 600 milhões de pesos (1,22 milhões de dólares, aproximadamente) para a construção do que parece um shopping e que tem uns 9000 m2.

Chega a notícia de que a cirurgia de Nelson Mamami correu bem. Um de seus olhos foi comprometido mas começa a sair do quadro delicado que quase lhe custou a vida.

A reunião entre os sindicatos e o governo dura várias horas. Por volta das 20 horas, os representantes sindicais saem do edifício e anunciam a oferta do governo. Mais uma vez, Morales cede. Declina das multas aos sindicatos, se compromete a revogar a gratificação de assiduidade por quatro meses, reajusta a hora-aula para 4000 pesos (8,15 dólares) e duplica o salário básico para 60 mil pesos (122 dólares) e nenhum docente ganhará menos que 200 mil pesos (408 dólares) de bonificação. Em caso de recusa, o Executivo se comprete a aplicar a proposta anterior de 179 mil pesos (365 dólares) e desconto dos dias de greve.

“Não se vendam! Não nos traiam!”, grita a multidão presente. Os dirigentes sindicais se encontram numa encruzilhada. De um lado, o aumento conquistado é bastante considerável da ótica reivindicativa mas se torna pequeno diante da dimensão que tomou a luta contra a reforma constitucional. De outro, começa a se sentir o desgaste. A resolução dependerá do será decidido nas assembleias docentes que cada sindicato convocará nos próximos dias em distintos pontos da província. …

Enquanto os professores se dispersam, centenas de pessoas se concentram em frente à cadeia de Alto Comedero onde ainda mantêm os detidos e detidas, desrespeitando todas as garantias processuais. Por mais de 24 horas os presos estão incomunicáveis, sem acesso a seus advogados. Caminhonetes 4×4 entram no presídio com pessoas algemadas na traseira. Do outro lado do portão, militantes gritam pra que se identifiquem e os que o fazem são pisoteados e agredidos pelos soldados.

As pessoas se irritam. Familiares, conjuges, amigos e amigas exigem a libertação imediata. Às vezes a situação fica tensa. Alguns começam a forçar o portão. A tensão aumenta. Passado algum tempo, chega a informação de que o tribunal ordenou que cessassem as prisões, pelo menos para as pessoas que não tivessem antecedentes criminais.

Os policiais que já cumpriram sua jornada começam a sair do prédio em caminhonetes, muitos deles vão nas traseiras. As famílias começam a xingar: “traidores”, “lixos”, “o que estão fazendo? Vocês são iguais a gente!”. Alguns policiais sirem com sarcasmo, mas a maioria abaixa a cabeça, olham para o chão e não dizem nada. Parecem envergonhados.

Jujuy, a luta continua

Quando fechava esta reportagem, as assembleias docentes já haviam se encerrado. Num debate acirrado, o Cedems terminou aceitando a proposta do governo, enquanto as assembleias da ADEP a rechaçaram. Outros sindicatos, como a ATE (Asociación Trabajadores del Estado) e o SEOM (Sindicato de Empleados y Obreros Municipales) continuavam sem chegar a um acordo nas negociações. Nas últimas horas, batidas policiais e todo tipo de abitrariedades contra professores levou o Cedems a convocar uma nova greve.

As organizações sociais continuam debatendo como acomodar os ritmos e as diferenças dos variados setores. Paralelamente, os povos originários começaram a ser reprimidos novamente em vários bloqueios de vias. A luta contra a reforma continua e a instabilidade segue sendo, em maior ou menor medida, a característica central do que acontece hoje em Jujuy.

Concluindo, podemos dizer que o “jujeñazo 2023” põe na agenda nacional dois dados políticos centrais. O primeiro é o avanço a ascensão de um Estado com mais poderes repressivos construído sobre a base de uma violação sistemática das garanta s e liberdades democraticas. Resistindo a essa perspectiva se configura o segundo dado que está determinado pelas lutas das últimas semanas. Um povo que parecia desarmado e dócil perante a estratégia montada por Morales desde 2015, ressurge com uma força e um fôlego surpreendentes, dando lugar a um tipo de oposição muito distinta daquela proclamatória ou institucional que é propalada pela “política profissional”. O laboratório repressivo e extrativista que se pretende criar no norte do país teve o seu primeiro grande obstáculo na oposição das próprias massas que, em unidade e através de sua participação direta nas ações, mostra o caminho a seguir a milhões de pessoas que padecem dificuldades semelhantes neste país.

Notas

[1] Alianza para el Trabajo, la Justicia y la Educación – coalizão que governou a Argentina de 1999 até 2001. Foi dissolvida após a renúncia do presidente Fernando de la Rúa, no contexto da revolta popular de dezembro de 2001.
[2] Referência ao “Massacre da Plaza de Mayo de 20 de dezembro de 2001” e à renúncia de De la Rúa, que fugiu da Casa Rosada em um helicóptero.
[3] Liderança indígena de Jujuy, dirigente da “Organización Barrial Tupac Amaru”. Foi presa em janeiro de 2016 após protetar contra o governador Gerardo Morales e, em 2019, condenada a 13 anos de prisão.
[4] Coalizão política liderada pelo ex-presidente Mauricio Macri.
[5] Principal jornal conservador da Argentina.
[6] Referência às manifestações de desempregados que tiveram lugar na província de Neuquén e que deram origem ao movimento chamado “piquetero”.
[7] Referência às históricas marchas indígenas pelo reconhecimento de suas terras. O primeiro “Malón de la Paz” ocorreu em 1946, quando comunidades originárias de Jujuy e Salta marcharam até Buenos Aires para exigir do governo argentino a devolução de suas terras. Em 2006 ocorreu o “Segundo Malón de la Paz”, com reivindicações semelhantes.
[8] Kolla é o nome dado às povos originários andinos que ocupam o noroeste argentino.
[9] Bandeira indígena que representa os povos andinos.
[10] Jovens piqueteiros mortos pela polícia em junho de 2002.
[11] Militante trotskista morto pela polícia em abril de 2007.
[12] Emissora de TV aberta de Jujuy.
[13] Emissora de TV pertencente ao grupo Clarín.

A fotografia em destaque é de Germán Romeo Pena (ANRed).

Traduzido pelo Passa Palavra.

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