Por Vitor Morais [1]
“ […] o sentido da evolução cultural já não é obscuro para nós. Ela nos apresenta a luta entre Eros e morte, instinto de vida e instinto de destruição, tal como se desenrola na espécie humana. Essa luta vital é o conteúdo essencial da vida, e por isso a evolução cultural pode ser designada, brevemente, como a luta vital da espécie humana. E é esse combate de gigantes que nossas babás querem amortecer com a ‘canção de ninar falando do céu’!” (Sigmund Freud, “O mal-estar na Civilização”).
1.
Em 29 de agosto de 2004, a Folha de S. Paulo publicou uma alentada entrevista do historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão em que esse declarava: “a canção acabou”. “Hoje é tudo coletivo, com recursos eletro-eletrônicos. Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra” [2]. A colocação de Tinhorão, que depois se saberia baseada nas ideias de José Miguel Wisnik em evento realizado no MIS/RJ em outubro de 2001 [3], fez barulho à época e como que inaugurou um longo debate entre a crítica sobre o fenômeno do “fim da canção”. A hipótese, que seria desdobrada em entrevista de Chico Buarque ao mesmo jornal em dezembro daquele mesmo ano [4], passou a ganhar corpo até se desdobrar em uma tríade de intelectuais, composta por Arthur Nestrovski, Wisnik e Luiz Tatit, que levaria ao limite a investigação e se materializaria em DVD de mesmo nome, gravado em 2011, no Sesc Vila Mariana.
A hipótese sobre o “fim da canção” que agitava os debates àquela época era mais ou menos a seguinte: com a emersão do rap nos anos 1990, sobretudo a partir da experiência dos Racionais MC’s, a canção brasileira – cuja característica nodal seria o entrelaçamento entre matéria poética e matéria sonora, constituindo matéria cantada –, teria perdido a centralidade que ocupou ao longo da segunda metade do século XX na vida brasileira. Ela não teria morrido no sentido de deixar de existir, mas pairava no ambiente certo ar de esgotamento, do qual a entrevista supracitada de Chico Buarque seria seu exemplo máximo. Convém lembrar que, diferentemente daquele momento no qual nasce a ideia da moderna Música Popular Brasileira (MPB) [5] nos anos 1960 pós-Golpe Civil-Militar de 1964, o cenário em que a crise da canção MPB se coloca é o da democracia encalacrada entre a globalização neoliberal e o acirramento das tensões populares no Brasil dos anos 1990, de cujo exemplo supremo será justamente o álbum “Sobrevivendo no inferno” (1997), dos Racionais MC’s.
Acontece que veio 2002 e, numa guinada de expectativas, o Partido dos Trabalhadores chegou à presidência da República. É neste cenário, do país em que as populações marginalizadas deixaram de denunciar que estão morrendo (anos FHC) para serem inseridas na ordem dominante via consumo [6], em que se instaura o dilema do esgotamento da canção. O país agora era governado pela esquerda e decolava na capa da revista direitista The economist, voltando a flertar com a noção de “país do futuro”; todavia, não havia a agitação político-cultural que marcara os momentos pretéritos em que esta conjugação de progresso e força social esquerdizante estava dada (anos 1960). Este enigma intrigava a intelectualidade da época, e aparece sumarizada nas declarações acima elencadas. Com a hegemonia da MPB perdida, o que consumia em matéria de música essa população que ascendia? Esta, a questão que pairava no ar.
Arriscando um pouco, creio que estes debates todos iam por dois caminhos, que nalguns casos se cruzavam. O primeiro deles, identificado com a propensão tropicalista de intervir por dentro, dada a impossibilidade de revolucionar por fora, buscava discutir o que fazer para a canção não ir pelo ralo de vez (vide as aulas-show ministradas à época pela tríade supracitada). Já o segundo, ligado à questão da formação cancelada por 1964, vinha buscando acertar as contas com aquele passado, agora que o presente parecia minimamente garantido – esta rota teria seu exemplo supremo no volume de ensaios quase memorialistas de Roberto Schwarz publicado em 2012 com o sugestivo título de “Martinha versus Lucrécia” [7]. Todo modo, e este me parece o ponto mais importante, todas estas questões orbitavam por entre um grupo intelectual que quero nomear como “veteranos”. Isto porque a esmagadora maioria desses – de Tinhorão a Wisnik, passando por Schwarz – foram personagens que ou atuaram, ou se formaram – nalguns casos ambos –, naquele agitado ambiente dos anos 1960. Neste sentido, o paradigma dos veteranos é o de buscar entender o país a luz de 1964, ainda que tomando rumos distintos (vide os casos de Wisnik e Schwarz).
Contudo, a normalidade democrática – se assim, talvez ironicamente, podemos nomear o não menos agitado (institucionalmente) início de século XXI – pouco durou. Se por um lado houve desde o início da chegada de Lula à presidência uma série de investidas midiáticas contra o governo – cujo ápice seria o chamado “Mensalão”, que teria seu julgamento estendido ao menos até 2012, quando ex-ministros como José Dirceu (veterano de 68, aliás) seriam condenados e presos [8]–, por outro, a panela de pressão social vinha fervendo há um tempo considerável. Explico-me: retomando André Singer, que questionava no mesmo 2012 se o lulismo seria um fenômeno de reformismo fraco – isto é, cujas reformas estruturantes demorariam anos afio para atingirem uma estatura de efetiva transformação social e demandariam a paciência de populações acostumadas com chumbo e fogo –, ele passaria a ter dificuldades em gerir esta paciência lá por volta de 2012 também.
Com muitos dos veteranos no governo, outros indo presos por lá terem estado, além daqueles buscando entender o país irreconhecível que cada dia mais lhes vinha dando as caras nas trilhas do lulismo, a panela ia fervendo e respirar ia ficando cada vez mais sufocante para ambos os lados, que beiravam antagonismos. Até que vem Junho de 2013, o mês-acontecimento [9]. Parte dos veteranos, rompidos com o sonho do reformismo manco de Lula já há um bom tempo, e que vinham agitando o caldeirão das inquietações contra o governo formando novas gerações de intelectuais críticos à ordem estabelecida, muitos ligados ao movimento autonomista, colheriam ali seus (talvez amargos) frutos. Que não me entendam mal, mas a cada dia que passa parece estar nítido, por exemplo, em Paulo Arantes, um ideólogo da razão junhista, que, capitulações à parte das jornadas como um todo, permanece no ar por meio do inacreditável e milagroso interesse por sua produção, manifestado em seus escritos e, principalmente, nas incontáveis e disputadíssimas lives que vem fazendo desde 2020, com a erupção pandêmica.
Neste sentido, se não me equivoco em meio aos meus saltos, arriscaria dizer que Junho representou o encontro do paradigma dos veteranos com outro, que por falta de nome melhor batizarei como “fora do eixo”. O paradigma “fora do eixo” seria composto pelas novas gerações intelectualizadas que, descontentes com os rumos conciliatórios do lulismo, passariam a investir contra o governo, buscando formas, ou de radicalizá-lo, ou de construir uma opção à esquerda para ele. Um dado importante a ser posto é que, todavia, alguma parcela do paradigma “fora do eixo” vinha das periferias em guerra contra o poder nos anos 1990 e que agora, na década inicial dos anos 2000, com a sagração de Lula ao governo, ansiavam poder respirar. As idiossincrasias do lulismo, contudo, produziriam uma quebra neste horizonte de expectativas, cujo melhor exemplo poderá ser feito nas canções do paradigma “fora do eixo”, que comentarei adiante. Apesar disso, haveria um encontro dos “fora do eixo” com os veteranos dissidentes que produziria um frutífero casamento. Disso, Junho foi o exemplo máximo. Acontece, como se é sabido, que como todo exemplo máximo, houve a queda depois – nas palavras de um importante documento de época sobre Junho redigido por dois ex-integrantes do Movimento Passe Livre de São Paulo: “A elaboração tática da revolta popular, gestada desde 2003, foi levada às últimas consequências. O novo caminho da luta urbana que se desdobrava nas diferentes jornadas contra cada aumento no país bate no topo em junho. Atingindo uma dimensão inédita, o sucesso definitivo da revolta enquanto tática em 2013 é também o esgotamento dela” [10].
Se Junho iniciou-se como a contestação da ordem manifestada por autonomistas no direito à locomoção urbana, a forma da revolta levou ao limite a liberação dos sentimentos recalcados de uma população que ia se integrando ao sistema capitalista via consumo. Assim, quando cai o aumento da passagem em São Paulo e o MPL deixa o timoneiro das jornadas, inicia-se um novo ciclo de inquietações, que teriam no seu epicentro a contestação do lulismo pela sociedade lulista [11]. Explico: quando os intelectuais – veteranos e autonomistas – deixam a cena, Junho se perde para algo novo dar as caras – “os protestos adquiriram tal dimensão que parecia estar ocorrendo algo nas entranhas da sociedade, algo que podia sair do controle” [12]. Este algo delineia um novo momento da experiência brasileira, quando a forma lulista de governar se esgota, e que tem na população que havia sido beneficiada em seus programas assistenciais seu antípoda. Por favor, não me confundam com um petista: o que quero dizer é que a inserção social via consumo do lulismo, fez com que a liberação possibilitada por Junho viesse na forma lulista, porém contra o governo no poder, também lulista, em que se encontravam os símbolos do reformismo fraco que nunca chegava de vez à população. Cansados de esperar pelo trem da revolução, por que não dar corpo àquela possível dentro da realidade que se impunha? Esta, a forma de todos os protestos que, depois de Junho, derrubariam Dilma e elegeriam o Capitão Messias.
2.
Mas o que o fim da canção tem a ver com isso? Ora, é a transição de esgotamento do paradigma 1964 a que a possibilidade do encerramento da “era da canção” alude. Paulo Arantes é, novamente aí, a voz que, em sendo deste paradigma, o abandona justamente para apregoar algo novo, o dia de amanhã; a canção que canta depois de seu fim: a “pós-canção” (não confundir, é claro, com “pós-modernidade”). A bem da verdade, cumprindo o papel deste movimento do presente ensaio de investigar o pré-Junho na canção, talvez seja possível dizer que um certo setor dos veteranos já vinha mimetizando os limites desta forma enquanto tal. Falo, em essência, de Chico Buarque; afinal, não será à toa que ele dará a declaração de 2004 em que entrega ao rap o futuro do passado cancional. Sem falar no romancista Chico, que desde “Estorvo” perseguirá o prisma da “sociedade sem classes, sob o signo da delinquência” [13], suas canções entram no século XXI fazendo jus à seara da desintegração nacional [14]. Veja-se, por exemplo, seus dois álbuns dos anos lulistas: “Carioca” (2006) e “Chico” (2011). Em ambos, há a narrativa da deterioração combinada com o acerto de contas com o passado, esta última característica central do paradigma veterano.
Em “Carioca” prevalece o primeiro, à medida que “Chico” se permite o segundo. No álbum de 2006, há a caracterização – talvez dual – por entre a população do “subúrbio”, abandonada à própria sorte, ante aos intelectuais mais preocupados em fazer cinema. É, antes, a caracterização da cidade dualista que ia se conformando à época no Rio de Janeiro, a “cidade partida”, de Zuenir Ventura [15]. De um lado, o ponto de vista periférico, do lugar em que “é pau, é pedra, é fim de linha” (“Subúrbio”); de outro, a elegia à cidade idílica sonhada noutro tempo com Tom Jobim em “Imagina”, interpretada em dueto com Mônica Salmaso. Note-se, contudo, que André Singer fará referência à canção “Subúrbio” ao dizer que o “Real do Lula” – os programas de assistência ao subproletariado com vistas à inserção social via consumo – visava justamente apenas “a camada da sociedade que não sai nas revistas”, referindo, em nota de rodapé, aos versos “Lá não tem moças douradas / Expostas, andam nus / Pelas quebradas teus exus / Não tem turistas / Não sai foto nas revistas” da canção [16]. Isto é, concorde Chico ou não com este ponto de vista, havia a visão que este substrato da sociedade, integrando-se ao hegemônico, conseguiria alcançar uma vida digna. Entretanto, uma vida digna à parte da exercida com regalias pela Zona Sul da cidade, que não abriria mão de seus privilégios de intelectuais.
Já em “Chico”, vem em casamento o paradigma veterano de acertar as contas com o passado junto a denúncia da violência como ente formativo da sociabilidade brasileira. Neste sentido, o acerto de Chico é com um passado bem distante de 1964, mas que ainda se fazia presente: o da violência colonial sintetizada na escravidão. Assim sendo, há dois caminhos possíveis para este acerto de contas com o passado, a partir da posição de veterano intelectualizado, e eles se encontram expressos nas canções “Querido diário” e “Sinhá” (parceria com João Bosco). “Querido diário” é o mundo do crime hoje, balizado pela exclusão social arquitetada com a abolição; contudo, ele convive com uma velha tradição, cuja transição-morte é ainda tema a ser estudado na produção de Chico Buarque: a figura do malandro. Convém cotejar este ponto com os dois versos que fecham a canção, quando é esboçada a reação do eu-lírico ante o mundo do crime do “inimigo”; ei-los: “Mas eu não quebro não / Porque sou macio, viu?”. Em ensaio sobre o álbum, Walter Garcia relembra que a noção de “macio” – ou “voz macia” – retoma o tema malandro à Noel Rosa [17]. Ou seja, a ideia do malandro que vence o inimigo do mundo do crime está colocada, ainda que com certo verniz anacrônico, dada a obsolescência da figura marginalizada identificada com a malandragem e a ascensão do crime organizado.
“Querido diário” é, assim, sobre um passado que Chico teima em não dar como morto à luz do que se impunha nesse hoje. Outro caminho toma a parceria com João Bosco, “Sinhá”. Ali, é cantada, num primeiro momento, a torturada jornada mortífera de um cativo, até que se revele, em segundo âmbito e já ao final da canção, a voz distanciada da cena do “cantor atormentado”. Na voz do escravizado, a justificativa para não ser punido – “Por Deus Nosso Senhor, eu não olhei Sinhá” –, cuja referência vem forçosamente integrada ao mundo do Catolicismo à época dominante, vem entremeada por dois aspectos: o primeiro, também notado por Walter Garcia, é a contínua repetição em coro ao longo do fonograma de “êri ere” [18]; o segundo é expresso logo ao final da parte que dá voz ao cativo: “eu choro em ioruba, mas oro por Jesus”. No primeiro ponto, temos um adocicamento da crueldade cantada pela canção; na segunda, a afirmação da permanência de uma cultura subalterna, em meio às necessidades de se orar por Jesus.
Se não estou equivocado, penso que este conflito já apresentado na voz do escravizado torturado, que poderia suavizar ainda mais a cena violenta descrita, se acentua e encaminha-se para uma conclusão no segundo momento da canção, em que o eu-lírico muito poderia se identificar com o próprio Chico Buarque. Isto porque o “cantor atormentado” que canta o conto é “Herdeiro sarará / Do nome e do renome / De um feroz senhor de engenho / E das mandingas de um escravo / Que no engenho enfeitiçou Sinhá”. Versos esses que atestam a leitura à progressismo dos anos lulistas do passado escravocrata: o eu-lírico, agora um intelectual que canta o passado de seu ancestral escravizado, não só atesta que houve o feitiço à Sinhá, como coloca-se como herdeiro de ambos os lados, do torturador e do torturado. Isto porque o cativo aqui contado não está às voltas com um aquilombamento, por exemplo – realidade que ainda não possuía à época o lastro ideológico que hoje se impõe nesta pauta –, mas tem como objetivo principal escapar da tortura e enfeitiçar (novamente?) Sinhá.
No limite, o ponto de vista de Chico Buarque poderia ser sintetizado no seguinte: sei de meu passado e dele não desconfio; sei da violência dele, mas entre a violência e a festa do cativo – manifestada na forma sonora da canção e em seu gênero – fiquemos com a segunda. Sei também que esta realidade de afirmação cordial do cativo ante ao seu senhor tem pouco lastro hoje, vide “Querido diário”; contudo, interessa mais reiterar este ponto de vista, que funciona dentro das ruínas da utopia MPB.
Ponto radicalmente oposto, é bom não confundir, com o adotado por Caetano Veloso, por exemplo. Isto porque Junho pega Chico Buarque afastado da cena, porém consciente de que um colapso estava por vir. O ponto capital para a análise que proponho aqui, contudo, é o duplo de Junho: explodida a panela de pressão – algo previsível no diagnóstico de época de Chico Buarque –, o dia que viria era uma incógnita, e, se não estou enganado, isso freia Chico, dado que a princípio, seu diagnóstico era de que Junho seria uma manifestação do colapso o qual levaria a algo destrutivo de imediato. Contudo, é bom resgatar uma declaração de Roberto Schwarz realizada – ironicamente – no Teatro Oficina, logo após o turbilhão, em 08 de julho de 2013, e que serve como radiografia das interrogações daquele momento: para onde iria a revolta de Junho? Diz Schwarz: “Em duas semanas o Brasil que diziam que havia dado certo, que derrubou a inflação, que incluiu os excluídos, que está acabando com a pobreza extrema, que é um exemplo internacional, foi substituído por outro país muito pior, em que a classe política é uma vergonha, sem falar na corrupção. Qual das duas versões estará certa? […] A viravolta, que foi impressionante, com certeza teve um lado midiático, de propaganda eleitoral, visando 2014. Ainda assim, ela é histórica, e vai fazer diferença, principalmente no âmbito da cultura. O espírito crítico, que esteve fora de moda, para não dizer excluído da pauta, tem agora a oportunidade de renascer” [19].
Penso que este trecho é muito potente para pensar os caminhos que podiam ser vislumbrados imediatamente após Junho. Havia algo em aberto ali, que não se sabia para onde iria. Dez anos depois, sabemos, contudo, que os influxos de Junho levariam, em um longo continuum, até a disputadíssima guerra civil que hoje se impõe no Brasil – mas essa é outra história. Neste sentido, Chico Buarque opta por esperar ver para onde iriam aquelas agitações todas, e, somente em 2017, lança trabalho musical novo, o álbum “Caravanas”, que cumpre o papel de dobrar a aposta no colapso civilizacional do país. O Junho de Chico é, assim, a corrida pela tomada dos poderes pelas populações daquele país cujo ordenamento era justamente o do “signo da delinquência”, constatado em “Estorvo” (1991) [20]. Salvo engano, este entendimento é radicalmente oposto ao de Caetano Veloso naquele período. Retomando alguns anos antes, Francisco Alambert pontuou em ensaio originalmente publicado também em 2012 (!) que a “razão” tropicalista, isto é, a forma tropicalista de interpretar a matéria brasileira, atingira “o auge desse processo de conquista da hegemonia” em 2003, justamente com a chegada do lulismo ao poder e o convite para que o tropicalista Gilberto Gil se tornasse o Ministro da Cultura – além disso, no mesmo ano Caetano cantou na cerimônia de entrega do Oscar (“o Tropicalismo chegava aonde sempre quis chegar, ao topo da Indústria Cultural”) [21].
Este ponto de vista da ideologia dominante tropicalista durante os anos lulistas pode ser muito bem notada cotejando o excerto de Alambert com a produção de Caetano no período, junto da Banda Cê, que arquitetou a trilogia Cê, composta pelos álbuns “Cê” (2006), “Zii & Zie” (2009) e “Abraçaço” (2012). Acredito que sobretudo duas canções dos dois primeiros álbuns podem escancarar tal ponto. Tratam-se, respectivamente, de “O Herói” (2006) e “Lapa” (2009) [22]. Embora versem sobre searas distintas – a primeira, sobre a questão racial e o declínio da noção de mestiçagem como meta-síntese da civilização brasileira, assunto em polvorosa à época do lançamento da canção; a segunda, sobre a institucionalização das esperanças (utópicas?) da Nova República e da cidade do Rio de Janeiro –, creio que elas estabeleçam entre si e uma certa raiz de fundo de Junho um diálogo tácito.
Digo isso pois em 2006, ano de “Cê”, circulou entre os meios intelectualizados o famigerado manifesto contrário às cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, que teria em Caetano Veloso não só um de seus signatários, como o mais importante deles [23]. No limite, a canção “O Herói” é sobre um dia que veio, ao menos na acepção de Caetano, com a instalação deste debate [24]. A canção, cuja forma flerta com o happening tropicalista e detém um tom jocoso fora de hora com pauta seríssima, retoma a questão racial como emblema máximo para a compreensão veloseana da matéria brasileira, desde sempre presente, mas cuja preocupação se escancara em álbuns anteriores como “Livro” (1997) e “Noites do Norte” (2000), e canta a estória de um homem negro racializado à norte-americano que termina, diferentemente desses, como defensor da democracia racial. Forçando um pouco a trama das tensões, pode-se afirmar que a categoria que opera como ente redentor encalacrado e quase que superado, mas renitente, em Chico Buarque, a do malandro, é radicalmente (e racialmente) sobreposta neste Caetano dos anos lulistas. Em “O Herói”, numa genealogia manca, porém com lastro, o malandro foi forçosamente superado pela “ontologia racial dualista” (Wisnik), expressa magistralmente no teor do manifesto de mesmo ano que tem em Caetano, como visto, seu signatário máximo.
O diagnóstico de fundo de Caetano em “O Herói” é o de que haveria uma movimentação por parte das esquerdas racializadas de imposição de uma pauta com lastro histórico espoliativo – a escravidão – a qual, ainda que legítima, não seria brasileira: “Quero ser negro, 100% americano / Sul-africano, tudo menos o santo / Que a brisa do Brasil, briga e balança”. E que, justamente por conta desta “importação”, só se poderia esperar o acirramento das transas dualistas que dividiriam o Brasil na seara das lutas por reconhecimento que, dez anos depois, explodiriam, à luz do day after de Junho. Este, o Caetano que rompe com os prognósticos de Chico e aponta para a necessidade – quase imposição – de dobrar a aposta na institucionalização da “razão” tropicalista, no termo de Alambert, e enfatizar a convivência harmônica entre as diferenças à luz do mundo globalizado [25], o que desaguará em “Lapa”.
“Lapa” é o Rio de Janeiro que vai dar certo, ou melhor, que já estava dando certo. A cidade em que a antiga Lapa de Wilson Batista – “Foi na Lapa que eu nasci / Foi na Lapa que eu aprendi a ler / Foi na Lapa que eu cresci / E na Lapa, quero morrer” (“Largo da Lapa”) –, ostracizada décadas atrás, renascia e teimava a trazer à cena a ideia de “cidade maravilhosa” no mesmo momento em que o país, como visto, voltava a flertar com a ideia de “país do futuro”. A “cidade maravilhosa” dos Jogos Pan-Americanos de 2007, que quase elegera Fernando Gabeira em 2010 e que se preparava para as Copas (2013, Confederações; 2014, Mundial) e para as Olimpíadas (2016). Sabemos, entretanto, que esta “cidade maravilhosa” na qual o Cristo Redentor decolava na capa de The economist, não se moldou baseada na ideia da convivência harmônica por entre as alteridades. Não será à toa, por exemplo, que em seu estudo sobre Junho de 2013, Paulo Arantes o inicie – falo do longo ensaio-intervenção “Depois de Junho a paz será total” – fazendo uma genealogia do Junho carioca [26]. Se não estou enganado, é justamente a noção de “paz total” que moldava o Rio de Janeiro pré-durante-pós-Junho cada vez mais “pacificado” em meio ao avanço das Unidades de Polícia Pacificadora do secretário José Mariano Beltrame, o que define a gestão urbana das expectativas decrescentes dos cariocas – o que explicaria também, é bom dizer, uma das incontáveis diferenças entre o Junho de São Paulo e o Junho do Rio de Janeiro.
Neste sentido, nada mais institucionalizado que cantar a “Lapa” “Cool e popular”, como enfatizam diversos versos da canção, enquanto na periferia o chumbo grosso cantava. No limite, a “Lapa” de Caetano é uma invenção (urbana?) das expectativas crescentes da Zona Sul intelectualizada do Rio de Janeiro, as quais se contrastam com o ponto de vista periférico, quase que irreconciliavelmente [27]. Este, um ponto que conecta a “Lapa” de Caetano com a “Faria Lima” do não esquecido (vide próximo movimento) paradigma “fora do eixo”. Isto porque estamos às voltas nesta altura deste ensaio com o paradigma dos veteranos. Vimos que Chico Buarque narrava um lento colapso do país fraturado, à medida que Caetano institucionalizava-se ainda mais. E as novas gerações? Um ponto que quase me escapa é justamente o de que Caetano faz sua trilogia “Cê” junto de banda homônima composta por jovens músicos cariocas, identificados com… o mundo da Zona Sul. Choque de paradigmas? Questão menor ante ao dia de amanhã que viria em chave oposta à “Lapa” do baiano Caetano.
Até onde tenho notícia, esta ponte entre Rio e São Paulo foi pensada por alguém que logo penderia ao mercado da produção musical e produziria anos depois o impagável sincericídio herdeiro chamado “Bala Desejo”: falo de Marcus Preto. Sim, foi ele quem escreveu na Folha de S. Paulo o que segue sobre o álbum “Zii & Zie”: “Nele, mais do que simplesmente rock e samba, Caetano cruza informações que não querem conviver, criando um disco paulista na forma (escuro, experimental) e carioca no conteúdo (quase metade das faixas tem o Rio como tema). Parece querer tornar ainda mais óbvias as diferenças entre as duas cidades, entre o túmulo e o berço do samba” [28]. Que não entendam mal Marcus Preto; isto porque se “Cê” foi o disco dos transrocks, “Zii & Zie” era o disco dos transambas. Vejamos: o Rio é o conteúdo, a cidade institucionalizada, símbolo do país tropical; São Paulo é “escura, experimental”. Caso não esteja delirando a esta altura do campeonato, penso que a palavra experimental não vem aí infortuitamente, afinal, ao menos desde 2008 vinha se desenhando, no paradigma “fora do eixo” paulista, uma radical experimentação sonora, nalguns casos advinda de músicos oriundos das periferias da grande metrópole. Antes de entrar definitivamente no caldeirão de Junho com o pós-paradigmático Caetano de “Abraçaço” (2012), demos um passo atrás para pensar ainda uma vez mais o paradigma “fora do eixo” [29].
3.
Retomando o que dizia já bem acima da altura destas linhas, o Brasil que se delineia aos meus olhos no século XXI pode ser sumarizado em dois paradigmas que, nalguns casos, são incomunicáveis entre si e, noutros, possuem profícua interlocução. Trata-se do paradigma “veterano” – isto é, aquele que pensa o Brasil a partir da fratura irreversível do Golpe de 1964 – e do paradigma “fora do eixo” – aquele que, deslocado da hegemonia lulista, pensa caminhos ou de radicalização deste ou de ruptura para com ele. Quero pontuar que vejo, como numa aproximação colisiva, os veteranos Paulo Arantes e Caetano Veloso como ideólogos dialéticos dos “fora do eixo”. Paulo, como já procurei argumentar, é, até onde vejo, o ideólogo do Junho de lutas, da possibilidade de retomada das aspirações críticas por uma nova geração, dada a extinção do pensamento crítico na anterior [30]– um Junho que, aliás, não começa em Junho, vem de antes, num complexo caldo de cultura que venho tentando reconstituir. Já Caetano, é o veterano ideólogo das possibilidades de superação por dentro do lulismo, daí os flertes com a radicalidade consentida da trilogia Cê versus – e concomitantemente! – com a institucionalização estudada por Alambert em seu ensaio de 2012, ano nevrálgico para pensar a fermentação de Junho.
Se podemos dizer que o paradigma veterano de Caetano é carioca – vide “Lapa” –, Paulo é o desejo dos populares paulistas de terem o timoneiro da revolta. Salvo engano, este prognóstico paulista está muitíssimo bem documentado em um debate promovido pelo Instituto Moreira Salles via Revista Serrote entre o músico e compositor Rômulo Fróes (que fora, informação importante, assistente de Nuno Ramos) e o professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, também compositor e violonista, Walter Garcia [31]. Igualmente de 2012, o debate permite pensar os diferentes caminhos que o paradigma “fora do eixo”, em meio à sua aliança (programática?) com os “veteranos”, estava por tomar. Isto porque tanto Rômulo quanto Walter foram, por exemplo, gravados por Juçara Marçal, a voz principal do paradigma “fora do eixo” de São Paulo. Havia ali um ponto de união, neste sentido. Contudo, existiam também fendas: Fróes apontava que as escolhas musicais de Luiz Cláudio Ramos nos álbuns de Chico Buarque os tornavam passadistas, retomando uma acepção ainda dos anos 60. Já Caetano havia se reinventado com a Banda Cê e trazido Gal de volta à cena com “Recanto” (2011) [32]. Enquanto isso, Walter defende Luiz Cláudio Ramos e, por consequência, Chico, apontando que haveria ali um profundo diagnóstico conectado à medida do tempo. Contudo, se o salto não aparenta disparatado, penso que ambos convergem para dois álbuns que haviam agitado o paradigma “fora do eixo” anos antes: “Padê” (2008, Juçara Marçal e Kiko Dinucci) e “São Mateus não é um lugar tão longe assim” (2009, Rodrigo Campos).
Convém lembrar que entre 2008 e 2009, enquanto o mundo ia à bancarrota para salvar os bancos “too big to fail”, que quebraram em 2008, e impedir que o capitalismo fosse pelo ralo, o Brasil vivia anos de euforia com a ativação do mercado interno via grandes obras públicas e programa “Minha casa, minha vida”, garantindo, como resposta, altas taxas de aprovação ao presidente Lula, a ponto de conseguir fazer sua sucessora na eleição de 2010. Uma mulher, pouco conhecida entre a população, e com trajetória eleitoral inexistente até aquele momento: Dilma Rousseff. Este espírito harmonizante do “país do futuro”, tão bem registado na “Lapa” de Caetano, não era, todavia, o que aparecia em “Padê” e, sobretudo, em “São Mateus não é um lugar tão longe assim”. O álbum de Rodrigo Campos, dessas verdadeiras pérolas que o tempo tratou de fazer sumir, vai apontando aspectos como: a inviabilidade crônica da metrópole São Paulo; o ponto de vista periférico na equação lulista do Ornitorrinco via canção; as possibilidades de ascensão social e seus custos no que diz respeito a manutenção das práticas de vida comunitária devido à integração ao sistema capitalista. Tudo isso serve para demarcar o álbum de Rodrigo Campos como um farol de época, com pontos de vista inéditos – ao menos nesta forma – que já apontavam para os riscos que a aposta lulista poderia trazer. Enquanto que “Padê” soa quase como que um devir, se comparado com “São Mateus não é um lugar tão longe assim”.
“Padê” é o primeiro álbum dos anos lulistas a promover a noção de “ancestralidade”, ideal tão em voga neste 2023, na canção – ao menos da maneira como aparece. Recuperando sonoridades de outrora, como por exemplo a regravação da “Cabocla jurema” de Candeia, Juçara Marçal e Kiko Dinucci vão ali dando caminhos e amparos a quem os escuta. Ademais, é importante pontuar que a questão vida urbana versus vida comunitária também aparece ali, por exemplo em “Samba esquisito” (Paulo Padilha) e “Roda de sampa” (Kiko Dinucci): à medida que a primeira narra um delírio em meio ao ontem e o hoje, a relação com o passado e as benesses da modernidade (“Eu disse chega, eu quero voltar pro presente”), o segundo faz um inventário da música negra (leia-se: samba) na São Paulo de priscas eras. É, antes, o diagnóstico de que não se deve fazer tábula rasa deste passado, porque pode haver ali uma chave de salvação/redenção [33]– “Aprender que a Paulicéia ainda pode cantar”.
Mas não será nem “Padê” nem “São Mateus não é um lugar tão longe assim” que mostrarão a panela de pressão de Junho prestes a explodir. Ainda que Juçara e Kiko tenham se juntado a Thiago França para compor o bem-sucedido “Metá Metá”, cujo primeiro álbum é de 2011 e mantém na ordem do dia a questão da relação passado dos vencidos–presente “fora do eixo”, penso que será a produção de Rômulo Fróes e, mais especialmente, a articulação em torno do grupo “Passo Torto”, composto por Fróes, Kiko, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, que levará ao limite o caldo do pré-Junho. Isto dado que Rômulo Fróes vinha explorando em seus dois primeiros álbuns, “Calado” (2004) e “Cão” (2006), não o samba malandro, mas o samba melancólico, como os de Cartola, Nelson Cavaquinho e Batatinha [34] e que em 2009, sem abandonar o samba, explorará novas sonoridades no arrojado álbum duplo “No chão sem o chão”. Estou dizendo isso pois, até onde vejo, o álbum que melhor prenuncia as raízes do Junho de 2013 paulistano – a saber, a pauta da mobilidade urbana, liderada pelo movimento autonomista –, funciona quase que como uma continuidade desta trajetória de Rômulo Fróes, que também nele tem dedo: trata-se de “Passo Torto” (2011). “Passo Torto” é um álbum nada anacrônico de sambas que versam, no limite, sobre a questão urbana e a impossibilidade de uma vida digna na Paulicéia, bem à maneira de “São Mateus não é um lugar tão longe assim”. Seus sambas não são restitucionistas e sua sonoridade é onipresentemente tensa, encalacrada numa vida sufocante, de modo que poucos são os momentos de lirismo no álbum como um todo. E, até mesmo quando eles aparecem, a questão urbana é o mote que os encaminha – veja-se, por exemplo, a canção “Cidadão” (Rodrigo Campos / Rômulo Fróes): “Cidadão, esquizofrênico, rondando na periferia / Às vezes lúcido, infeliz, conforme a luz, conforme o dia”.
Em “Passo Torto” há, ainda, a aposta na forma samba como sonoridade resistente daquele momento, pelas questões que venho advogando ao longo deste movimento do presente ensaio. Samba, metrô, Vila Guilherme, Jardim Valquíria, Faria Lima, todos elementos da vida urbana que aparecem no álbum. Analisando, por exemplo, “Faria Lima pra cá” (Rodrigo Campos e Kiko Dinucci), canção que alude ao rap dos Racionais MC’s “Da ponte pra cá” (2002, do álbum “Nada como um dia após outro dia”), o Passo Torto canta “Hoje ali tem o metrô / Nem bem um ano passou / Havia o bar do João / E hoje tem a estação / Faria Lima pra cá / Nem dá, um dois / Eu vou de trem do metrô / Meu Deus, eu vou”. Este trecho é interessantíssimo para pensar o pré-Junho; vejamos: o bar do João, espaço de prática comunitária, deu lugar à vertigem pelo moderno do metrô, meio de transporte pelo qual, mezzo inconformado, mezzo amedrontado, o narrador vai visitar o irmão na Linha Azul em versos posteriores. Isto é, a gestão das insatisfações populares lulistas, no desejo de que todos os periféricos tenham acesso ao que as classes médias, por exemplo, sempre o tiveram (baseado no mérito do trabalho, é certo), dava vazão para que a prática social periférica fosse ou se integrando ou se distanciando ainda mais da realidade da “Faria Lima pra cá”. E tudo isso via samba, gênero que ia vivendo na pele (se é que é assim possível dizer) esses dilemas colocados, afinal, encalacrado entre a produção na periferia e o consumo pelos ilustrados do centro expandido de São Paulo [35].
No meio disso tudo, não será à toa que uma canção como “Sem título, sem amor” (Rodrigo Campos, Rômulo Fróes) cantará que “O amor morreu, o amor morreu / Bem antes da canção”. Se não estou enganado, há um afinamento profundo aqui entre as noções apocalípticas de tempo do fim, à luz da cada vez mais radicalizada “Era Atômica”, que ronda toda a produção do “Passo Torto”. Segundo Paulo Arantes, glosando Güther Anders, a “Era Atômica” seria caracterizada, grosso modo, pelo colapso da humanidade e a instauração – como tempo contínuo – do “tempo do fim”, em que já viveríamos após o fim [36]. Sei que a associação entre as noções de Anders e o álbum do “Passo Torto” podem parecer maluquice à primeira vista, mas até onde vejo, o “Passo Torto” canta em seu álbum homônimo a vida no “tempo do fim” e vai buscando encontrar maneiras de transformar este “tempo do fim”, com vistas à vida, ao direito à vida, pautas e lutas que explodiriam em Junho para todos os lados.
Vejamos. Até aqui falamos sobre as raízes de Junho, sua formação, o caldo de cultura que permite a disrupção para todos os lados daquele esquecido mês de 2013. De um lado, os “veteranos” de 64, uns no governo, outros apontando que o lulismo não caminhava para um caminho de justiça e igualdade social. Por outro, os “fora do eixo”, nascidos na Nova República e insatisfeitos com os rumos das expectativas que o lulismo prometera ao país, como que desconfiando daquele senso comum de que o país decolaria nas trilhas do progresso. Estas, as condições para que Junho tomasse as proporções que tomou. Vejamos agora como a canção popular dos anos lulistas tratou do tema Junho no calor da hora, quando, como já dito, o futuro do país parecia estar em aberto.
*Vitor Morais é graduando em História pela FFLCH/USP
Notas
[1] Agradeço a Lucas Paolillo, pela intuição crítica, e a Julio d’Ávila, pela leitura meticulosa, eximindo-os, é certo, de quaisquer equívocos.
[2] TINHORÃO, José Ramos / SANCHES, Pedro Alexandre. Era uma vez uma canção. Folha de S. Paulo, 29.08.2004. Disponível online em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2908200404.htm. Acesso em: 29.06.2023.
[3] Ver declaração de Wisnik sobre em WISNIK, José Miguel. Global e mundial / Eu, você, nós dois. In: Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: PubliFolha, 2004, pp. 319 – 333.
[4] BUARQUE, Chico / BARROS E SILVA, Fernando de. O tempo e o artista. A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico. Folha de S. Paulo, 26.12.2004. Disponível online em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2612200408.htm. Acesso em: 29.06.2023.
[5] Compreendo a MPB como uma instituição sociocultural nos termos de NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959 / 1969). São Paulo: AnnaBlume / Fapesp, 2001.
[6] Gloso, aqui, as ideias de SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[7] SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[8] Agradeço a Victor Ferreira pela lembrança quase ofuscada da data da detenção de José Dirceu.
[9] Sigo aqui a acepção de Irene Cardoso para “acontecimento”: “o acontecimento não é o esperado a partir de uma visão totalizante e integradora do processo histórico, mas o que interrompe uma historicidade, o que a recorta, aquilo que constitui a fronteira ou o limite dela. O acontecimento pela irrupção revela as diferenças temporais no interior de uma historicidade que se apresenta como homogênea”. Ver CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 17 – 18.
[10] CORDEIRO, Leonardo / MARTINS, Caio. Revolta popular: o limite da tática. Passa Palavra, 27.05.2014. Disponível online em: https://passapalavra.info/2014/05/95701/. Acesso em: 29.06.2023.
[11] Ideia que persigo desde MORAIS, Vitor. Fernando Haddad. A terra é redonda, 09.12.2022. Disponível online em: https://aterraeredonda.com.br/fernando-haddad/. Acesso em: 29.06.2023.
[12] SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011 – 2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 102. Agradeço a Julio d’Ávila pela lembrança desta passagem de Singer.
[13] SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 179.
[14] SCHWARZ, Roberto. Fim de século. In: Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 160.
[15] VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[16] SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 69.
[17] GARCIA, Walter. Elementos para a crítica do disco “Chico” (2011). In: GARCIA, Tânia da Costa / FENERICK, José Adriano (Orgs.). Música popular – História, memória e identidades. São Paulo: Alameda, 2015, p. 206.
[18] GARCIA, Walter. Elementos para a crítica do disco “Chico” (2011). In: GARCIA, Tânia da Costa / FENERICK, José Adriano (Orgs.). Música popular – História, memória e identidades. São Paulo: Alameda, 2015, p. 210.
[19] CEVASCO, Maria Elisa. A crítica cultural lê o Brasil. In: LOUREIRO, Isabel / SINGER, André (Orgs.). As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? São Paulo: Boitempo editorial, 2016, pp. 278 – 279.
[20] SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In:Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 179. Arriscando um pouco, creio que este ponto de vista buarqueano sobre Junho é compartilhado por Roberto Schwarz em sua leitura global (e artística) do período em SCHWARZ, Roberto. Rainha Lira. São Paulo: Editora 34, 2022.
[21] ALAMBERT, Francisco. A realidade tropical. In:História, arte e cultura: ensaios. São Paulo: Intermeios, 2020, p.33, p. 39.
[22] Agradeço a Lucas Paolillo pela lembrança da central importância de “Lapa” para o esquema que proponho.
[23] Manifesto contra as cotas raciais. Vários signatários. Disponível online em: https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/a-integra-do-manifesto-contra-as-cotas-raciais/. Acesso em: 03.07.2023.
[24] No âmbito paulista/uspiano da equação, fundamental para a compreensão de Junho que proponho – é bom lembrar que Caetano é baseado no Rio de Janeiro, como desenvolverei adiante –, um bom exemplo da crítica ao racialismo (ainda não desdobrado em identitarismo, como será no rescaldo de Junho, em tema que será desenvolvido abaixo) que não aderiu ao manifesto contra as cotas, está em excerto do livro de José Miguel Wisnik sobre o futebol. Afirmando que “a droga-Brasil é irredutível a uma lógica simplista”, Wisnik acusa os setores do movimento negro defensores das cotas raciais de ansiarem “desmistificar a história da experiência brasileira à luz de uma ontologia racial dualista que essa mesma experiência desmente e problematiza”. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 421.
[25] Um brevíssimo comentário analítico quanto à utopia harmonizante das diferenças brasileiras no Tropicalismo pode ser encontrado em GARCIA, Walter. Notas sobre “Cálice” (2010, 1973, 1978, 2011). Música Popular em Revista, ano 2, vol. 2, jan.-jul. 2014, p. 127.
[26] ARANTES, Paulo. Depois de Junho a paz será total. In:O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a Era da Emergência. São Paulo: Boitempo editorial, 2014, pp. 353 – 378 (sobre a parte carioca de Junho). Ver também BRITO, Felipe / OLIVEIRA, Pedro Rocha de (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo editorial, 2013. O livro foi editado, não ironicamente, pela coleção Estado de Sítio, coordenada por Paulo Arantes.
[27] Arriscando um pouco e também fugindo ao nosso escopo, convém lembrar o episódio em que Caetano Veloso avança em direção ao microfone após a muito comentada fala de Mano Brown em comício da campanha presidencial de Fernando Haddad em 2018. Agradeço a Francisco Alambert pela lembrança deste fato.
[28] Citado sem a devida referência em CARNEIRO, Luiz Felipe / GUEDES, Tito. Lado C: a trajetória musical de Caetano Veloso até a reinvenção com a bandaCê. Rio de Janeiro: Máquina de Livros, 2022, p. 178.
[29] Minha proposta inicial era a de analisar “Abraçaço” no âmbito do pré-Junho. Contudo, a cada momento que avança o signo do tempo, vai se conformando em mim, graças às trocas com Lucas Paolillo, que “Abraçaço” possui relações prelúdicas com Junho, e que sua turnê, como comentarei adiante, estendida até 2015, foi de fato uma manifestação quiçá engajada de Caetano em nome das agitações populares que tomaram de assalto a pax lulista.
[30] Percepção muito bem notada em ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo editorial, 2007.
[31] Desentendimento: o mal-estar na canção. Debate entre Rômulo Fróes e Walter Garcia, disponível online em: https://www.revistaserrote.com.br/2012/07/o-mal-estar-na-cancao-romulo-froes-e-walter-garcia/. Acesso em: 04.07.2023.
[32] Como minha análise, no movimento segundo, centrava-se em Chico Buarque e Caetano Veloso, se faz preciso apontar que o álbum de Gal Costa “Recanto” (2011), em que todas as canções são de autoria de Caetano, é o grande disco do Brasil ornitorrinco – gloso aqui a já célebre ideia de Chico de Oliveira para pensar o Brasil de Lula, presente em OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. Veja-se, por exemplo, os seguintes versos da canção “Neguinho”, cuja sonoridade influenciada pela forma funk carioca da época vai de encontro com a da Banda Cê: “Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país / Só pensa em se dar bem – neguinho também se acha / Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz / Neguinho também só quer saber de filme em shopping”. Ou seja, o que importa está na ordem do consumo e, só depois e via consumo, virá a emancipação social. Penso que a cena de “só quer saber de filme em shopping” capta muito bem o espírito dos anos lulistas que, neste caso, no rescaldo de Junho, levariam lá por volta de 2014 ao fenômeno dos “rolezinhos”. A própria ideia, reiterada no refrão da canção, de que “neguinho é rei” reforça isso. Sem politização, só consumo? Salvo engano, a única canção de “Recanto” que mostra um outro horizonte para os anos lulistas – e que, neste sentido, atualiza um paradigma caro a Chico Buarque, porém nele cancelado e anacronizado – é “Miami maculelê”, em que Caetano narra à funk a vida malandra possível no Brasil do ornitorrinco. Há versos mesmo que parecem datados, tais como “Vou virar trabalhador / Vou deixar o movimento”, mas que demonstram que a força malandra possível, ainda que ornitorrinizada, ainda possui lastro – “Na verdade o malandro sou eu”, reitera a canção. Seja como for, trata-se de um raro momento no Caetano contemporâneo em que esta brecha de ruptura por dentro aparece à luz do diagnóstico do mundo sem culpa flamante de Antonio Candido em CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (Caracterização das “Memórias de um Sargento de Milícias”). In:O discurso e a cidade. São Paulo: Todavia, 2023. Arriscando um tanto, talvez seja possível dizer que este movimento em direção à malandragem do mundo sem culpa 2.0 do funk carioca antecipa diagnósticos que viriam em 2012 com “Abraçaço” e que, de certa maneira, preludiam Junho de 2013, em que tudo isso viria à tona, ainda que com desdobramentos adversos.
[33] Ao longo da trajetória de Juçara Marçal, a relação com o poder redentor do presente no passado aparecerá de maneiras distintas. Analisei, em outra oportunidade, como isso se dá em seu mais recente álbum, “Delta Estácio Blues” (2021) em MORAIS, Vitor. Juçara Marçal – luto e redenção. A terra é redonda, 28.04.2022. Disponível online em: https://aterraeredonda.com.br/jucara-marcal-luto-e-redencao/. Acesso em: 05.07.2023.
[34] Veja-se que foi nessa época que Nuno Ramos – de quem, como já dito, Rômulo fora assistente – publicou seu ensaio sobre Paulinho da Viola, dedicado a Clima, Rodrigo e Rômulo – RAMOS, Nuno. Ao redor de Paulinho da Viola. In:Ensaio Geral. Rio de Janeiro, Biblioteca Azul/Globo, 2007. Pouco tempo depois, viriam também ensaios sobre Nelson Cavaquinho (em que comenta Cartola) e Batatinha. Ver RAMOS, Nuno. Rugas: Nelson Cavaquinho. In:Verifique se o mesmo. São Paulo: Todavia, 2019, pp. 146 – 162. E RAMOS, Nuno. Hora da razão (chorando com Batatinha). In:Verifique se o mesmo. São Paulo: Todavia, 2019, pp. 163 – 168.
[35] Foi tentando entender o samba no rescaldo de Junho que Thiago B. Mendonça produziu seu “Curtas jornadas noite adentro” e que estudei, noutra oportunidade, a produção de Douglas Germano, o homem do povo em meio aos consumidores intelectualizados. Ver MORAIS, Vitor. Douglas Germano – a tempestade e o mar. A terra é redonda, 11.02.2023. Disponível online em: https://aterraeredonda.com.br/douglas-germano-a-tempestade-e-o-mar/. Acesso em: 05.07.2023. Importante dizer que o “Passo Torto” abandonaria este ponto de vista já no seu segundo álbum, “Passo Elétrico” (2013).
[36] Ver as declarações de Arantes em ARANTES, Paulo. Ainda se trata da Era Atômica: o tempo do fim. Conferência realizada virtualmente como parte do ciclo Hegel e a Política, organizado pelo IFCH da UFRGS. Disponível online em: https://www.youtube.com/watch?v=3kuwBf8zhrc. Acesso em: 09.07.2023. Uma lembrança oportuna do mesmo Paulo Arantes quanto ao tema pode ser conferida na orelha do volume UM GRUPO DE MILITANTES NA NEBLINA. Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro. São Paulo: Contrabando, 2022, em que Arantes retoma uma carta escrita por funcionários de uma livraria que diz o seguinte: “o grande problema do fim do mundo é que alguém vai ter que ficar depois pra [sic] varrer”.
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