Por Jan Cenek

O grande revolucionário estava no leito de morte. Era questão de tempo. Estava lúcido. Sabia que o fim se aproximava e que dificilmente sairia vivo do hospital. Mas, mesmo assim, estava tranquilo. Os militantes do partido se dividiram para acompanhá-lo e apoiá-lo. Revezavam com a família. Naquela tarde o grande revolucionário recebeu a visita de dois companheiros de longa data, que não tinham o mesmo prestígio no partido, mas haviam travado diversas lutas, vivido muitas experiências e se tornado amigos. Divertiram-se contando causos da vida e da militância: prisões, frustrações, derrotas, traições (políticas e amorosas), manobras partidárias, paixões antigas, amores fracassados e por aí vai. A conversa estava tão boa que o tempo passou rápido.

No começo da noite chegou um companheiro jovem. Tinha aproximadamente 50 anos a menos que o grande revolucionário. O companheiro jovem substituiria os outros dois. Só que, como a conversa estava boa, eles não foram embora imediatamente. Para encurtar o percurso e não aborrecer o leitor, basta dizer que o papo dos velhos incomodou o jovem. Era como se ele quisesse aproveitar os últimos minutos com o grande revolucionário. Queria ensinamentos e sugestões. Queria dicas de leitura. Queria, sobretudo, demonstrar o carinho e o respeito que sentia pelo grande revolucionário. Cada segundo perdido com futilidades e brincadeiras, sem falar da revolução, parecia um enorme desperdício para o jovem. Aqueles causos de gosto duvidoso sobre outros militantes e sobre o próprio partido irritavam o companheiro mais novo. Ele tentava mudar de assunto. Não tinha coragem de cortar a fala do grande revolucionário, apesar da vontade. Mas interrompia os outros. Quando um deles estava falando, o jovem dizia para todos: “companheiros, por favor!” Ele não completava a frase, mas era como se dissesse “companheiros, por favor, vamos mudar de assunto!” Foi inútil. Os outros seguiam papeando e contando histórias. Riam como se estivessem numa mesa de bar e não num leito de hospital. Apenas o mais novo não se divertia.

Quanto mais o jovem militante tentava mudar de assunto dizendo “companheiros, por favor!”, mais os outros riam e se divertiam. O jovem se viu forçado a elevar o tom de voz e a completar a frase: “companheiros, por favor, vocês podem me dizer exatamente qual é a minha tarefa, o que devo fazer? Daqui a pouco vocês vão embora e eu não sei o que fazer.” Todos se calaram. O silêncio foi rompido por um companheiro mais velho, que olhou fixamente para o companheiro mais jovem e perguntou: “não te disseram exatamente qual é a sua tarefa?” O jovem balançou a cabeça para os lados, negativamente. Depois corrigiu-se dizendo que a tarefa não estava muito clara, que precisavam discutir a questão, que não podiam perder tempo. Foi quando o interlocutor opôs o polegar aos outros dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto – e chacoalhou a mão. O companheiro mais jovem pareceu não entender. O companheiro mais velho olhou fixamente e disse: “isso mesmo que você tá pensando, sua tarefa é bater uma pra ele, ele não dorme sem uma boa punheta, daqui a pouco vamos embora e você pode começar.” O grande revolucionário conteve o riso. Os companheiros mais velhos idem. O jovem ficou espantado. Realmente a tarefa não estava clara, ou ele não tinha entendido bem. Realmente precisavam discutir a questão.

Mas a conversa esquentou novamente. Os velhos contaram outros causos e piadas. O jovem ficou calado. Vez ou outra o companheiro mais velho olhava para o companheiro mais jovem, juntava o polegar aos outros dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto –, chacoalhava e dizia: “sua tarefa, hein, não esquece!” O grande revolucionário se esforçava para conter o riso. O jovem refletia.

No meio da noite os velhos companheiros se despediram do jovem militante e do grande revolucionário. Ao sair um deles opôs o polegar aos outros dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto – e repetiu chacoalhando a mão: “sua tarefa, não esquece!” Depois foram embora.

O jovem militante pediu licença ao grande revolucionário, foi até o corredor, se aproximou dos dois companheiros, opôs o polegar aos demais dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto –, chacoalhou e perguntou: “por que eu?” “É que você é novo e de confiança. Tem energia, é discreto e não tem preconceitos” – disse um. O outro assentiu e, para não cair na gargalhada, disse apenas “Exatamente!” Despediram-se outra vez. O jovem militante voltou para o leito do grande revolucionário. Os outros entraram no elevador e foram embora rindo.

O jovem militante sentiu raiva e orgulho ao mesmo tempo. Por que ele? Por outro lado, havia sido escolhido para uma tarefa delicada, o que era uma forma de reconhecimento. Mas ter o sexo do grande revolucionário entre os dedos não era o que ele planejava. Mais que isso, ocorreu-lhe que não sabia se devia executar a tarefa com o grande revolucionário na cama ou se precisaria conduzi-lo ao banheiro. Considerou a possibilidade de consultar a equipe médica. Mas lembrou se tratar de tarefa delicada, provavelmente secreta, designada para um militante “de confiança”, jovem, discreto, com energia e sem preconceitos. Aliás, quem teria executado a tarefa anteriormente? – pensou. Quem havia aliviado o grande revolucionário? Devia ter perguntado aos companheiros. Mas, enfim, pouco importava, o partido sabia o que fazia – tranquilizou-se.

Apesar do incômodo, a possibilidade de compartilhar um segredo e uma intimidade com o grande revolucionário parecia-lhe instigante, uma verdadeira honra, reconhecimento pela atuação no movimento estudantil. Ele não se dizia à disposição da revolução, do partido e do movimento? Ele não se autoproclamava livre da moral burguesa? Não daria a própria a vida pela causa? Uma punheta era o mínimo que podia fazer. Além disso, ele realmente amava e admirava o outro. Estava disposto a dar a vida pelo grande revolucionário, pelo partido e pela revolução…

Não vou contar o desfecho da noite. O leitor que imagine o que aconteceu no leito do hospital entre o jovem militante e o grande revolucionário. Mas alguém pode perguntar: se ia omitir o final, por que começou a história? É que o desfecho não é o mais importante. O desencontro é o que importa. Seja qual for o final imaginado por cada um, o que ocorreu foi apenas um desencontro – geracional, estético, existencial, político – entre uma esquerda que está morrendo e outra que não sabe rir. Um desencontro – geracional, estético, existencial, político – entre uma esquerda que está desaparecendo e outra que leva absolutamente tudo a sério, não raro se transformando em piada exatamente por isso.

7 COMENTÁRIOS

  1. Jan, sacanagem você trazer a história desse fulano assim em público. Você não disse quem é, eu também não direi, mas sabemos, ambos, que é pessoa muito conhecida, aliás querida por muita gente. Agora os outros que sabem o desfecho vão se deliciar contando detalhes sórdidos nas redes sociais. Será uma confusão. Ninguém vai querer vestir a carapuça depois que os detalhes vierem a público. Será tudo como daquela outra vez.

  2. Se, como dizia um foucaultiano libidinal-pragmático, um copo d’água e um boquete não se nega a ninguém…
    Então, uma empática bronha é o (talvez) mínimo a agenciar para manter acesa a faísca na pradaria.

  3. Jan…o filósofo ilumina os precipícios da alma quando diz que “se você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”. Mas acreditar que a esquerda casmurra não saiba olhar o abismo de volta, fazer a tréplica, é supor que o centro do problema seja de natureza cognitiva. Mas não é que ela não saiba, é o contrário: ela sabe e esse é o ponto: essa consciência exige pular no abismo sem saber se tem chão, se há luz. Quer dizer, agir sem certeza alguma.

    “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”, escreveu T.S. Eliot. Esse não é um medo do perigo exterior, mas de sua própria desintegração e de toda sua história. De perder a razão ou descobrir que nunca teve uma ou que tudo era, enfim, nada. De mergulhar na noite escura da alma e nunca mais voltar. Não ousaria falar aqui como quem fala de fora desse medo e aponta o medo alheio, mas é esta justamente a razão desse apontamento: não é algo de que se possa escapar sem riscos. É uma condição existencial. Mas se for possível lembrar mais do punhado de pó que do medo metafísico, rir seria infinitamente mais fácil diante da pergunta: o que é grave num punhado de pó? Poeirinha da poeira sem consolo transcendente, mas com certeza imanente, o jovem militante de sua história não pode desconfiar de sua existência de metáfora e que o homem é um eterno poema a decifrar.

  4. “A gente escreve o que ouve – nunca o que houve.”

    (Oswald de Andrade)

  5. Além do leito de um hospital (Beneficência Portuguesa, Sírio Libanês, Albert Einstein…?), onde encontrar o (s) grande (s) revolucionário (s)? No Bar do Biu? No Bar do Espanha? No Bar da Morgana? No Bar La Commune? No Tejo Bar? No Passa Palavra? Vai de ônibus ou avião? Vive de bolsa, renda ou mesada? Usa cartão ou passa cheque (ou é tudo no cash…?)? É grego ou lusitano? Paulista ou soteropolitano? Quando, enfim, o abismo conhecerá um revolucionário?

  6. Foi-se o tempo de um χάος fecundo e criador. Rompidos seus laços com ποίησις, agora agoniza, σχίζειν pela internet e pelos bares que frequenta.

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