Por Thiago Canettieri
A presença do tráfico de drogas varejistas nas periferias urbanas brasileiras é algo já conhecido. Trata-se de uma iniciativa de “economia popular”, por um lado, e de uma “forma associativa periférica”, de outro, que garante a reprodução – mesmo que precária e com baixíssima expectativa de vida – de um enorme contingente de jovens periféricos.
Quero aqui oferecer uma possível interpretação sobre o fato de se observar, cada vez mais intensamente, a presença de agentes ligados ao tráfico de drogas em torno da questão imobiliária informal em Belo Horizonte. Minha hipótese, que pretendo apontar aqui (ainda em desenvolvimento e investigação), é que a apropriação violenta da renda da terra por agentes criminais oferece uma oportunidade de alavancagem das suas atividades.
Pesquisas recentes, como de Luiz Felipe Zilli, Rafael Rocha e Ana Beraldo sobre o mundo do crime em Belo Horizonte, apontam diferenças importantes em relação aos cenários “mais conhecidos”, isto é, São Paulo e Rio de Janeiro. A situação do crime organizado em Belo Horizonte é bem diferente das descrições do varejo do tráfico carioca ou paulistano. Geralmente, as gangues de Belo Horizonte são grupos pequenos (com cerca de 10 a 12 integrantes) e dispersos (dominam porções pequenas, não muito mais do que algumas ruas ou becos), formado por jovens, orientados, para além do tráfico de drogas, por um código de honra ou por contraposição às gangues adversárias. Contudo, recentemente ocorreu uma “profissionalização” e, portanto, uma tendência a maior eficiência econômica e uma pacificação potencial das periferias em nome da expansão desses mercados.
Para segurança das minhas fontes, nenhum território é identificado (nem mesmo o contexto geográfico), exceto o que já disse: são todos territórios periféricos na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Todos os nomes são fictícios.
1.
Dona Claudia me recebeu no novo centro cultural da ocupação. Já havia me avisado por WhatsApp que o endereço era outro agora. O antigo centro cultural da ocupação funcionava num pequeno barraco de dois cômodos. A proprietária tinha, além desse barraco, outras duas casas na ocupação: a que ela morava e outra que ela alugava. Ela cedia uma de suas casas para a Associação de Moradores e funcionava como o local de reuniões e para sediar festividades. Quando a proprietária viu o barraco “já ajeitadinho”, pediu novamente a posse. Dona Claudia, apesar da raiva que sentia, disse que não podia fazer nada, e devolveu a posse para a dona. No entanto, na ocasião que isso ocorreu, um dos “meninos” viu. Os meninos são aqueles que trabalham no tráfico e são diferenciados dos outros meninos com uma certa entonação na voz.
A gangue que atuava na ocupação expulsou a dona de sua casa, sob ameaça de espancamento. Assim, se apropriaram não apenas da casa que ela morava, mas também do antigo centro cultural e da casa que era alugada. Dona Claudia contou que “os meninos” reconheciam que tinha sido uma “sacanagem” o que ela fez com a associação, mas não cederam a casa novamente. A outra casa, que já estava com inquilino, eles também se apropriaram do recebimento dos aluguéis até que os moradores, uma família muito certa, esclareceu Claudia, resolveu sair – claramente insatisfeitos com os novos proprietários. Os meninos colocaram para vender ambas as casas. Foram vendidas rapidamente. Eles estavam em guerra com uma gangue rival que ocupava (e comandava) um empreendimento do Programa Minha Casa, Minha Vida próximo.
2.
Joaquim mora numa periferia metropolitana de Belo Horizonte. Nos anos 1990, ele foi uma liderança do movimento de moradia e, durante muitos anos de sua vida se dedicou a luta por casa para sua família e muitas outras. Ele conta que ver a situação de hoje em dia o deixa muito triste: “É muita gente que tá precisando, né?” – ele confidenciou numa das primeiras vezes que encontramos.
Em frente à sua casa, iniciou-se uma ocupação de terra. Era um terreno abandonado que serviria para a produção de prédios populares, mas como a empreiteira faliu o terreno foi deixado com a terra-planagem já feita. Logo atrás havia uma favela onde muitas pessoas moravam ainda em barracões de madeira numas “pirambeiras danadas”. Essas pessoas, vendo do outro lado do vale o terreno “já assim, tão planinho, tudo retinho de trator” sem nenhum uso, logo começaram a construir seus barracões.
Joaquim conta que quando começou essa movimentação, percebeu que iria virar uma ocupação. E resolveu, a partir de seus contatos do passado, chamar um movimento social para organizar as famílias e buscar o apoio jurídico para garantir a permanência das famílias. Um dia passou um carro com quatro homens. Eles mostraram uma arma, ameaçaram os ocupantes e disseram para que saíssem dali. Para esclarecer a situação, Joaquim foi até a favela onde moravam os moradores e foi até a biqueira. Contou da situação e os funcionários da biqueira disseram que conheciam as pessoas que estavam ocupando e estavam “apoiando o movimento”. Então Joaquim ofereceu um acordo: se eles garantissem a segurança da ocupação, poderiam ficar com alguns lotes. Assim como buscou apoio do movimento social e dos advogados populares, Joaquim ativou uma rede de contatos para constituir um “mercado de proteção”.
Em uma das assembleias para dividir os lotes, Joaquim procurou os apoiadores e esclareceu: “tem que dividir para mais, tá bom? Prometi três para os meninos do corre que estão ajudando aqui. Eles disseram que vão ocupar um e vender os outros”. Eles escolheram os lotes que “dão para o asfalto”. Dois anos mais tarde, os lotes foram vendidos e os meninos do corre abriram uma filial da biqueira dentro dessa ocupação. Joaquim contou que eles já tinham expulsado a outra gangue do bairro.
***
Os dois casos apontam para algo que, muitas das vezes, permanece pouco tratado nos trabalhos sobre as periferias, as ocupações, o acesso à terra. Existe um vínculo das atividades criminais com o mercado imobiliário informal.
O tema, contudo, ainda é pouco estudado em Belo Horizonte[1]. Começar a observar o funcionamento do mundo do crime, como diversas pesquisas etnográficas[2] têm demonstrado, ajuda na compreensão da constituição de um regime de legitimidade e de normatividade próprio do mundo do crime. Poderíamos, inclusive, reconhecer que essa nova normatividade está ordenando condutas e se tornando cada vez mais consolidada em territórios periféricos, ampliando formas coercitivas e práticas violentas desses grupos armados sobre as populações periféricas.
Como já sabemos, terra não é uma mercadoria qualquer – afinal, não é produzida como outra coisa. Terra é condição para estar e viver na cidade. Como também já sabemos, nossa “urbanização dos baixos salários” ocorreu por uma inserção precária das classes populares: o binômio mercado de terras restrito mais uma industrialização e urbanização baseada na superexploração da força de trabalho produziu uma forma de extensão do tecido urbano baseada na informalidade. A informalidade é funcional à dinâmica de acumulação do capital, que podia pagar baixíssimos salários já que o custo da moradia, entre outros, era internalizado na dinâmica familiar pelo trabalhador e sua família. O que interessa notar disso é: a informalidade não produziu apenas agentes “autoconstrutores” e “ocupantes pioneiros” – existe um mercado informal complexo e presente que garante a inserção de milhares de pessoas à cidade.
Esse mercado, apesar de informal, é, ainda, um mercado de terras. O que significa que está em jogo aí mercadorias de alto valor. Disputas fundiárias, portanto, também são disputas em torno da possibilidade de acessar uma determinada quantidade de riqueza socialmente produzida por meio da propriedade imobiliária.
Os agentes criminais se apropriam do mercado de terras como uma forma de alavancar suas atividades além de estender ainda mais sua legitimidade e normatividade nos territórios populares. Os mercados fundiários, considerando suas características, permitem a esses agentes mobilizarem quantias consideráveis de dinheiro. Esse dinheiro, ao menos nesses dois casos, é usado para financiar as guerras ou, pelo menos, para expandir as atividades econômicas desses agentes. A meu ver, a constituição do mundo do crime em Belo Horizonte, de modo fragmentado, torna o mercado imobiliário um meio promissor de alavancagem financeira que pode ser a diferença em relação à gangue rival.
Com a baixa regulação dos mercados imobiliários informais, as atividades criminais encontram, ao atuar nesse mercado, oportunidades de capitalização de baixo risco negociando moradias que financiam suas atividades de maior risco. A entrada dos agentes criminais no mercado imobiliário se dá, como vimos a partir dos casos, em pelo menos duas vias: pela legitimidade social construída ou então pelo uso da violência, isto é, com desapropriação violenta. O primeiro parece estar mais relacionado com a extensão periférica do tecido urbano por meio de ocupações, enquanto o segundo parece ser mais comum em espaços já consolidados.
A capitalização imobiliária para atividades criminais também aponta para a gestão econômica das economias ilícitas. Diante da concorrência, da pressão do Estado, é preciso que o volume de dinheiro suficiente para manter as atividades criminais seja suficiente. Enquanto “agentes de mercado” (se lícito ou ilícito, formal ou informal, importa muito pouco na verdade – afinal, a racionalidade é a mesma), buscam maximizar seus lucros e, nessas condições, ampliar seu “portifólio” de investimento é o que qualquer um faria.
Notas:
[1] César Santos-Simoni, Gustavo Prieto estudam esse assunto em São Paulo e Daniel Hirata no Rio.
[2] Vale remeter ao trabalho de Gabriel Feltran, Vera Telles, Ana Beraldo, entre outros.