Por Nick Srnicek
O texto abaixo é a primeira parte do conteúdo da apresentação de Nick Srnicek em um simpósio de 2018 sobre o futuro do trabalho. Ele foi publicado em 2020 sob título “Two Myths about the Future of the Economy”, no livro organizado por Robert Skidelsky e Nan Craig Work in the Future: The Automation Revolution.
O primeiro mito que quero enfrentar é que a Uber é o modelo econômico do futuro. Trata-se da ideia de que vamos assistir a uma uberização da economia, em que cada vez mais empresas assumirão esse modelo de negócio. Podemos constatar isso nos inúmeros novos aplicativos e plataformas que se rotulam como o ‘Uber para X’ na esperança de que parte do sucesso da Uber seja incorporado por eles. Levado ao extremo, vemos até um Uber para banheiros na forma de Airpnp, que permite aos usuários encontrar banheiros públicos compartilhados em residências particulares. A ‘uberização’ da economia também é muitas vezes interpretada como significando que a peculiar relação de emprego da Uber com seus trabalhadores será replicada e expandida por toda a economia. Essa crença em uma uberização em expansão é um mito particularmente pernicioso e tentarei explicar por quê.
Em primeiro lugar, qual é o modelo de negócios da Uber? Eles são o que chamei em outro lugar de “plataforma enxuta” [1]. Elas pretendem ser muito enxutas em relação aos ativos: tentam possuir o mínimo possível. A Uber, por exemplo, não é dona dos carros; não tem de pagar combustível; ela não é responsável pelo seguro ou pela manutenção do carro, ou qualquer coisa do tipo. Mesmo no núcleo do negócio, ela não possui massivos servidores de computador nem nada parecido. Em vez disso, ela os aluga de plataformas como a Amazon Web Services. Efetivamente, o modelo da Uber tem consistido em tentar possuir o mínimo possível. Mas o que ela possui é a plataforma tecnológica que conecta os motoristas aos passageiros, e essa é a fonte de sua extração de valor.
O problema para a Uber (e empresas com propostas semelhantes) é que esse modelo não tem sido muito rentável. Plataformas enxutas em geral tendem a ter margens muito baixas. Isso funciona para alguns serviços, como itens de frequência de consumo muito alta. Os serviços de táxi são um bom exemplo disso, pois em uma cidade como Londres, a qualquer momento, haverá um grande número de pessoas que precisam de um carro. Com serviços de alta frequência, mesmo um negócio de baixa margem ainda pode obter um lucro decente. O problema é que muitos serviços não são de alta frequência. Por exemplo, as compras de supermercado exigem que as pessoas usem o serviço apenas uma vez a cada poucas semanas — o resultado disso é que várias dessas empresas estão lutando para sobreviver. De fato, a uberização de serviços de baixa frequência parece em grande parte um fracasso.
Também podemos olhar para a uberização de empregos de alta qualificação. Mas aí também encontraremos um monte de problemas. Imaginemos um cenário onde, se você tem um trabalho altamente qualificado, você se cadastra em uma plataforma e começa a fazer alguns contatos com clientes. No entanto, dado que a plataforma está ficando com uma parte da remuneração de cada serviço que você oferece, eventualmente a melhor opção para você é deixar essa plataforma e iniciar um negócio autônomo. Isso é exatamente o que muitas empresas descobriram ao tentar trazer trabalhadores altamente qualificados para uma plataforma uberizada: os trabalhadores acabam se tornando autônomos, pois faz mais sentido econômico para eles. Um dos exemplos mais proeminentes disso é a Homejoy, que era uma espécie de Uber da limpeza doméstica. Ela entrou em colapso depois que muitos de seus faxineiros decidiram deixar a plataforma, porque poderiam ganhar mais dinheiro em outro lugar [2].
O crescimento da empresa na economia compartilhada e nessas plataformas enxutas tende a ter como premissa não ser lucrativo agora, e se fixar na promessa de que em algum momento no futuro ela será lucrativa. Atualmente, a maioria dessas empresas está perdendo quantias significativas de dinheiro. É o modelo de crescimento antes do lucro, que dita que as perdas fazem parte da estratégia. Nisso a Uber é insuperável. Ela perdeu US$ 1 bilhão por ano para lutar contra um concorrente chinês, mas acabou desistindo e saindo da China [3]. Perdeu cerca de US$ 3 bilhões em 2016, US$ 4,5 bilhões em 2017 e, em 2018, suas perdas vêm se acelerando (apesar do crescimento significativo da receita). É surpreendente que uma empresa possa perder US$ 7,5 bilhões em dois anos, nunca ter obtido lucro em toda a sua existência e, ainda assim, ser anunciada como a próxima grande novidade do capitalismo.
Em vez de sobreviver obtendo lucros, a Uber sobrevive por meio da segurança de capital de risco: injeções constantes de novos financiamentos por parte dos investidores. Olhando atentamente para as rodadas de financiamento da Uber, o que se torna aparente é que há cada vez mais desconfiança dos investidores. Na rodada de financiamento mais recente, por exemplo, o grupo de investidores do SoftBank de fato exigiu que a Uber aceitasse um corte de 30% em seu elevado valor [4]. Efetivamente, a Uber está achando cada vez mais difícil convencer os investidores de sua capacidade de gerar lucros mesmo no longo prazo.
A Uber também enfrenta desafios futuros. O primeiro exemplo disso são os reguladores. A expansão da relação de trabalho específica da Uber — onde os trabalhadores são considerados contratados em vez de empregados — só teve sucesso ao passar à frente dos reguladores e introduzir essas novas práticas trabalhistas antes que os reguladores soubessem o que fazer. Os reguladores agora estão se atualizando, com Londres sendo um excelente exemplo. Houve processos judiciais sobre a forma como a Uber lida com seus funcionários. E a Uber está atualmente enfrentando a ameaça de ser banida de Londres por se esquivar dos pedidos dos reguladores [5]. Portanto, os reguladores estão impondo restrições significativas sobre o que o modelo Uber pode ou não fazer.
O outro desafio é que o Uber e outras plataformas enxutas estão enfrentando lutas dos trabalhadores. Após um revés inicial, pois os trabalhadores não tinham certeza de como se organizar e lutar por seus direitos nesses novos modelos de negócios, ano passado vimos os trabalhadores contra-atacarem de maneiras cada vez mais significativas. Os motoristas da Uber, por exemplo, estão tentando formar sindicatos; os entregadores da Deliveroo também estão tentando; e muitas dessas empresas de plataforma enxuta estão enfrentando uma série de ações judiciais. A Uber teve de pagar US$ 100 milhões em um acordo; a Lyft teve que pagar $ 27 milhões em outro acordo; a Postmates está atualmente enfrentando um processo de US$ 800 milhões [6]. Um processo da Uber estimou que eles deveriam US$ 852 milhões aos motoristas se fossem considerados empregados e não autônomos. A Uber respondeu que custaria apenas US$ 429 milhões [7]. O resultado dessa resistência dos trabalhadores é que esses negócios com margens muito baixas se tornarão ainda menos lucrativos no futuro, e é improvável que o modelo de negócios se expanda muito mais.
Qual é o plano da Uber? Aqui vemos que nem a Uber pensa que o modelo de negócios que eles criaram provavelmente terá sucesso. Eles querem ficar grandes — para monopolizar os serviços de táxi. No entanto, seu próximo objetivo é substituir os motoristas por carros autônomos e construir um enorme fosso em torno de seus negócios com o qual ninguém mais possa competir. Essa é uma grande mudança na natureza de seus negócios, pois de repente eles estão assumindo os custos e responsabilidades de uma imensa quantidade de capital fixo.
Podemos ver a mudança olhando para uma citação, agora famosa, de 2015:
A Uber, a maior empresa de táxi do mundo, não possui veículos. Facebook, o proprietário de mídia mais popular, não cria conteúdo. Alibaba, o varejista mais valioso, não tem estoque. O Airbnb, o maior provedor de hospedagem, não possui imóveis [8].
Hoje, a realidade é muito diferente para todas essas empresas, e gostaríamos de reescrever a citação para 2018:
A Uber está comprando 24.000 carros, Facebook está gastando US$ 1 bilhão em conteúdo original de TV, o Alibaba está gastando US$ 2,6 bilhões em varejo físico e o Airbnb está abrindo prédios de apartamentos com marca.
Essas empresas perceberam que o modelo de negócios padrão da Uber não funciona e agora estão adotando uma abordagem de negócios muito mais tradicional. Portanto, o primeiro mito — de que a Uber é o futuro da economia, seja como modelo de negócios ou como prática de emprego — nada mais é do que um exagero equivocado.
Notas
[1] Srnicek, N. (2016). Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press.
[2] Farr, C. (2015, October 26). Why Homejoy Failed. Medium. Disponível em:
https://backchannel.com/why-homejoy-failed-bb0ab39d901a#.a4l51hejy
[3] Jourdan, A., & Ruwitch, J. (2016, February 18). Uber Losing $1 Billion a Year to Compete in China. Reuters. Disponível em: http://www.reuters.com/article/uber-china-idUSKCN0VR1M9
[4] Somerville, H. (2018, January 19). Softbank is Now Uber’s Largest Shareholder as Deal Closes. Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/article/usuber-softbank-tender/uber-softbank-deal-has-closed-making-softbanklargest-shareholder-idUSKBN1F72WL
[5] Estou menos convencido de que a Uber será um dia banida de Londres, e mais de que essa ameaça é uma tática de negociação. Mas isso mostra que os reguladores estão reprimindo esse tipo de modelo de negócios.
[6] Kosoff, M. (2017, November 9). Why the ‘Sharing Economy’ Keeps Getting Sued. Vanity Fair. Disponível em: https://www.vanityfair.com/news/2017/11/postmates-worker-classification-lawsuit
[7] Levine, D., & Somerville, H. (2016, May 10). Uber Drivers, If Employees, Owed $730 Million More: US Court Papers. Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-uber-tech-drivers-lawsuit-idUSKCN0Y02E8
[8] Goodwin, T. (2015, March 3). The Battle is for the Customer Interface. TechCrunch (blog). Disponível em: https://techcrunch.com/2015/03/03/in-the-age-of-disintermediation-the-battle-is-all-for-the-customer-interface/
Traduzido por Leo Vinicius.
A ilustração em destaque é a capa do álbum Neural Uberization, de N1L, e as demais são do artista Gaëtan de Séguin.
Muito bom o texto. Fiquei pensando: passados cinco anos, o que será que aconteceu – com o modelo de negócio e com o mito?
né meglio né peggio
nem rogéria nem astolfo
ney choa
Tema relevante, texto pertinente.
Tradução übercompetente de Leo Vinicius.
https://libgen.rs/book/index.php?md5=29B399B0895EA123A41CE84152221B85
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p.s.: E AS NOTAS?
Caro Ulisses,
Obrigado pela observação. As notas já foram inseridas.
Coletivo Passa Palavra