Por Adriano Alves
Quem acompanha esta coluna já reparou que Milan Kundera é uma das minhas principais referências. Para fechar 2023, convidei um grande camarada para escrever sobre o romancista tcheco. Chegamos em Kundera mais ou menos na mesma época, mas por caminhos distintos. De lá para cá, temos discutido e, sobretudo, saboreado os textos do bardo. Logo no segundo parágrafo do romance A insustentável leveza do ser, Kundera registra que a vida é semelhante a uma sombra, não tem peso nem sentido. Concordo. Mas, por outro lado, quando penso em irmãos que conheci – como o autor do ensaio, os dois que ele menciona no texto e outros -, penso que valeu: valeu demais! Se, mais ou menos como num romance de Kundera, um anjo me perguntar se quero viver novamente, eu perguntaria pelos meus camaradas: vou reencontrar os caras? Se sim, sim. Se não, não sei. O ensaio “Os paradoxos de Milan Kundera” será publicado em duas partes, a primeira em novembro e a segunda em dezembro. Forte abraço e boa leitura, Jan Cenek.
Evasão ou engajamento? Elementos do romance
O ofício de um escritor, a despeito da reputação transcendental e superior de que normalmente goza entre seus pares e a “intelligentsia” – imortais como ele -, sempre compartilhou com o do filósofo certo desprestígio entre as demais camadas da sociedade. É envolto em tal aura de mistério que se julga que ele descreva suas próprias experiências com eventos distantes da existência ordinária, incomuns e até rejeitados por nós, mortais, e que quase sempre não faz mais que entregar-se ao vício ocioso e extravagante de ocupações inúteis. Milan Kundera é um autor que não reivindica para si o ofício de escritor e menos ainda o de filósofo, mas o de romancista, e não poderia haver autor de literatura mais mergulhado em reflexões filosóficas que o tcheco, cuja imortalidade está intimamente ligada a sua capacidade incomum de rasgar a mortalha do hábito na busca pela descoberta que o romance ainda não fez e que somente ele pode fazer, e, com isso, restituir à forma romanesca sua própria história.
Esse distanciamento entre o romancista e o escritor é produto da concepção do autor sobre o romance como ferramenta de investigação da existência e confidente da história do ser, o que faz do romancista mais um descobridor que um autor de ideias ou difusor de conteúdos próprios. A distinção é fundamental para a autonomia do romance em relação, inclusive, ao próprio autor.
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Minha relação com a obra do tcheco não é recente, comecei a lê-lo há mais de dez anos pelo belo best-seller A insustentável leveza do ser. Foi nesta época em que meti-me num prolongado debate literário sobre o livro com um amigo que também havia acabado de lê-lo. O título, junto a O homem que foi quinta-feira, de G. K. Chesterton, era um dos que me intrigava desde que aparecera, muito antes, em minha cabeça. A menção a Nietzsche na abertura me atraiu e a leitura das primeiras páginas, reflexão existencial que ilumina o horizonte da história que se segue, me levou à obra do tcheco. A atmosfera política e as questões existenciais abertas pelo autor a partir do prosaico da existência, que o tornavam quase um amigo a mais na mesa dos bares que então eu frequentava mais que minha casa, impossibilitaram dissociar minha relação com a obra de Kundera, a influência que sua leitura teve sobre mim, do momento que vivia quando o li pela primeira vez. O modo como usa o mito do eterno retorno, de Nietzsche, iluminando a existência da perspectiva da finitude humana, que torna a vida um eterno rascunho, um esboço para nada do que é vivido apenas uma vez, leve como o que vai desaparecer amanhã, desprende a potência da vida do valor, do peso, e vê a depauperação da existência como simples presença desnuda que revela o que sobra: a leveza do que é efêmero e que a tudo perdoa por antecipação.
É da famosa obra a afirmação de Kundera segundo a qual seus personagens são suas possibilidades não realizadas. Lembro que por algum tempo essa ideia evocou em minha memória um tipo de relação entre obra e autor que há muito não era mais aquela do universo literário em que eu, leitor, me encontrava. Meus autores tinham com suas obras uma relação de natureza oposta àquela que produz obras gratuitas, romances de evasão do tipo entretenimento que pode facilmente ser separado de seu autor, que pode ser escrito por outro. E a frase de Kundera, que admitiu não se irritar com os romances policiais de Agatha Christie, soava, solta de suas páginas, como uma imensa fronteira entre autor e obra. Meditando sobre isso por ocasião de sua morte, resolvi considerar esta afirmação, na condição de leitor não especialista, de um ponto de vista que, espero, nos dê um panorama mais amplo do solo fecundo do romance desbravador das possibilidades da existência. Vejo um pouco do autor, em momentos distintos de sua vida, em cada personagem, e imagino que esta seja uma sutil percepção, dado o caráter peculiar da narrativa do tcheco, que torna explícita a proximidade entre o autor-narrador e as circunstâncias de seus personagens, mais ou menos comum à confraria que une seus leitores. Esta suspeita é exposta pelo aspecto singular de sua escrita, que une narrativa ficcional e teorização ensaística numa forma hipotética que parece declarar o estado sempre provisório da antropologia em favor de uma aproximação fenomenológica que compartilha com seus personagens, ou seus “egos experimentais”, e pela presença de si mesmo em suas obras sob situações reflexivas. Seu estilo de reflexão livre e seu idioleto – considerada a tradução – criam um ambiente que torna manifesto ao leitor que frequenta suas obras o universo de problemas existenciais compartilhado entre o autor e seus personagens. Seus romances, cujo marcante caráter ensaístico reflete a concepção do ser como possibilidades, rejeitam juízos morais e julgamentos antecipados como obstáculos ao âmago do enigma posto pela trama existencial dos personagens. Sua literatura lida com reflexões profundas sobre os sentidos e a dimensão histórica das ações dos homens em circunstâncias distintas através de situações prosaicas para as quais o autor desenha hipóteses existenciais cujas causas e efeitos antrópicos implicam desdobramentos sobre a condição humana, revelando novos sentidos e outras possibilidades da existência e o mundo capaz de abarcá-las. Estes são elementos que evidenciam a natureza do comprometimento na obra do romancista e dão outro sentido à expressão “literatura engajada”. Ter como meio privilegiado de reflexão a existência cotidiana atesta que sua própria vida não está livre de implicar-se no fluxo da existência que compõe seus romances. Tais alegações, no entanto, não apenas têm valor nulo como apoio para o “biografismo” – essa invasão da vida privada pelo espírito intruso da devassa exposto na obra do bardo tcheco – como esperam repeli-lo enquanto ferramenta rebaixada de análise e obstáculo à alma do romance. Evidentemente, ainda que não se trate de inverter a ideia e “corrigir” o autor, mas de deslocar a ênfase suposta no predicativo do objeto “não realizadas”, que distancia autor e personagem, para fixá-la sobre o objeto da oração, “minhas possibilidades”, que os aproximam, é preciso assumir o risco do exercício. As linhas que seguem, no entanto, não pretendem mais que propor alguns caminhos e possibilidades através de apontamentos para a obra de Milan Kundera. O limite preciso posto pela separação entre as fronteiras das possibilidades realizadas e as das possibilidades não realizadas é estranho à “sabedoria da incerteza”, âmago da arte romanesca de Milan Kundera. Já que nunca se sabe ao certo onde termina uma e começa outra, submeta-se a sentença do autor à sabedoria da incerteza a fim de sondar as características básicas de sua relação com o romance.
Implosão e possibilidades
Para um romancista como Milan Kundera, cujos romances são um mergulho profundo na natureza ambígua da condição humana, os personagens permanecem como suas experiências possíveis porque sua relação com a literatura é tal que não lhe impõe uma técnica estética que sobrevalorize a forma às expensas do conteúdo e liberte o romancista para devaneios estéticos que flutuem distante de relações fundamentais com seus temas e personagens atravessados pela incerteza[1]; a sóbria prosa do tcheco é marcada pela harmonia e leveza formais e pelo equilíbrio estrutural conduzidos pela busca do enigma do ser; nada mais distante do romancista que a estética narcisista da perfeição da forma como objetivo perseguido pelo romance. Suas obras examinam “o enigma da existência” e esta condição, como tal, envolve o ser do romancista de modo incontornável. Seus leitores não devem esquecer que seus personagens, antes de refletirem suas possibilidades não realizadas, refletem suas efetivas possibilidades. Há uma hierarquia lógica e ontológica entre “possibilidade” e “possibilidade não realizada” que na terminologia aristotélica é da mesma ordem da relação entre ato e potência. Para que algo se realize ou não se realize é preciso que exista como possibilidade, do contrário a mera menção a “possibilidades não realizadas” perde qualquer sentido[2].
Seus personagens seriam, por conjecturas iniciais, realizações experimentais do que no autor permanece como possibilidade. Dito assim, no entanto, parece não haver diferenças com a afirmação do romancista, mas se pensarmos suas possibilidades como latências das quais as realizações romanescas são alargamento, extensão experimental ou prolongamento, uma sutil diferença assim concebida começa a abrir caminhos para uma recomposição adequada. Diz o romancista na obra citada: “como já disse, os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial”[3]. Essa gênese fenomênica do personagem reflete a concepção do romancista da existência como “ser-no-mundo”, o in-der-welt-sein heideggeriano.
Pelo menos duas conclusões partem desta reflexão: a primeira é que o enigma do ser sondado pelo romance é imensamente maior que suas possibilidades realizadas, fato que confere ao romance objetividade para o alcance de seu amplo campo de investigação e forma a condição base do testemunho paradoxal que a história do romance dá da avareza da existência para o relevo do ser. A segunda conclusão é que dizer algo essencial sobre uma possibilidade apenas lógica implicaria romper a linha de continuidade que parte do concreto para o mais abstrato, ou do autor para o personagem, e dá à experimentação abstrata seu caráter de efetiva possibilidade. Possibilidade não apenas lógica, portanto, mas ontológica. Os personagens do romancista não são suas possibilidades não realizadas como são as possibilidades não realizadas de qualquer um, mas as possibilidades não realizadas de alguém a quem a existência importa como problema e que busca pela chave do enigma do ser. Ainda que o autor sonde uma possibilidade humana da qual permanece distante, trata-se de uma distância contingente. No ensaio A arte do romance Kundera critica em “Os sonâmbulos”, romance de Hermann Broch, o caráter apodítico do ensaio ali presente sobre a degradação dos valores na medida em que isso afasta o grande romancista que vê em Broch do caráter hipotético do romance que sonda o que é ambíguo por sua própria natureza. Ora, a ambiguidade das coisas humanas pede do romance uma consideração hipotética que não obstaculize nos juízos apodíticos a especulação sobre uma condição projetada para as possibilidades. O ceticismo da sabedoria da incerteza, que tem no romance “uma longa interrogação”, suspende os juízos apodíticos sem cessar sua busca posto que só pode avançar sobre as possibilidades do ser a partir das conjecturas que se abrem em cada cenário existencial. O que Nietzsche chama de “Pathos da distância”, considerado sob seu ideal de identidade, é dissolvido na arte romanesca do bardo tcheco, que explora essa ambiguidade das coisas humanas a partir de uma alteridade pela qual transita entre as fronteiras das possibilidades.
A imaterialidade dos personagens pode dizer, das possibilidades humanas que são, que talvez essa possibilidade só se realize no romance como pulsão sublimada, como é o caso na Teoria Crítica de Herbert Marcuse, em que a literatura é o lugar da “consciência infeliz” na medida em que contém sublimadas as potências não realizadas da existência – e a esse estado negativo da existência dos personagens poderíamos chamar de a “tragédia do romance”. Mas fazer aproximações psicanalíticas da obra de um autor que se situa além do romance psicológico em favor de uma abordagem de caráter fenomenológico – como reconhece o romancista tcheco em entrevista ao amigo, assistente e escritor Christian Salmon no brilhante e já citado ensaio A arte do romance[4] -, que exclui a abstração filosófica, a cena sem o personagem, é a nostalgia, da qual se lamenta o romancista, do vasto mundo interior que perdeu lugar para as determinações exteriores da história e espaço para o encurtamento de horizontes na aldeia global de McLuhan. Afinal, quantas dimensões do ser desaparecem – e aparecem – com a ascensão e o declínio das eras históricas?
Não existe ser que não seja um modo ou uma possibilidade do ser. Daí o acesso romanesco do personagem indissociável de seu modo de estar no mundo, das situações humanas. Por isso os romances do tcheco são econômicos na caracterização isolada dos personagens. “Pois tornar um personagem ‘vivo’ significa: ir até o fim de sua problemática existencial”[5]. O que torna o personagem vivo aqui não é a representação objetal das pulsações de um coração, mas a condição do ser no mundo dado na circunstância em que se encontra e somente a partir da qual irrompe o tema ou os temas existenciais que regem e dão significado a seus atos.
Se o personagem que está no romancista como possibilidade está num estado muito mais próximo de realização do que está, por exemplo, num historiador, num antropólogo ou num sociólogo – quando estes tentam individualizar a perspectiva de suas análises -, nos quais só é considerado sob determinações abstratas, é que a realidade que estes últimos buscam apreender é discursiva e impessoal. Enquanto estes descrevem à distância e tendem ao dogma unificante da verdade universal, o romancista torna o personagem vivo a partir do núcleo expansivo e ambíguo de uma situação existencial que implode a essência unívoca do ser e abre o campo das possibilidades. Por isso Kundera é um romancista e não um antropólogo, sociólogo ou filósofo – na estrita acepção do conceito. A potência humana do discurso que conta sua própria história num romancista como Milan Kundera implica não o sentido geral e abstrato do ser como ocorre na dogmática do discurso filosófico, mas a apreensão romanesca da fragmentação do ser num dos estilhaços da verdade que é o personagem e na linguagem ambígua que perdeu a verdade unificadora da existência: “compreender, com Cervantes, o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem […] ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza […]”[6].
De dentro pra fora: o romancista
Se não pretendo defender, desmentindo o autor, uma interpretação vulgar de que seus personagens são representações ficcionais de suas opiniões e pontos de vista pessoais, condição na qual seu romance perderia um ponto de tensão fundamental que é a sondagem e a experimentação das situações existenciais possíveis a partir do limite das linhas extremas do território existencial, pretendo que a aproximação do romancista com seus personagens revele uma relação de tipo radical com a literatura em que o próprio autor empenha mais que mero exercício estético e criativo para sondar o enigma da existência. Se, por um lado, nesse passo torna-se inevitável reconhecer fragmentos do romancista dispersos em seus romances, o caráter problemático da aproximação de um e outro pólo da criação, autor e personagem na obra de Milan Kundera, também dissipa a tentação vulgar do biografismo enquanto dimensão hermenêutica válida para uma obra como a do tcheco, perpassada pelas reflexões do autor sobre a narrativa. A aversão do romancista a entrevistas é conhecida da imprensa, de seus leitores e de seus biógrafos. Quando perguntado sobre sua posição política, se era de esquerda, de direita ou dissidente – certamente com vistas a transpor a resposta para a hermenêutica de seus romances -, respondia “não, sou romancista”. Para além de conjecturas sobre que relações com isto o romancista gostaria de ocultar[7], detenho-me na explícita concepção do autor sobre o romance e suponho duas dimensões existenciais nesta resposta. A primeira refere a sua própria atitude como romancista; a segunda se refere ao fato de que a um romancista como ele perguntas como esta denotavam uma grande incompreensão de uma das chaves de suas obras, senão a mais relevante, a “sabedoria da incerteza”, ou a “sabedoria do romance”, base do acesso à problemática do ser e “herança depreciada de Cervantes”[8] do náufrago da história Milan Kundera. Este espírito romanesco rejeita a ênfase do preconceito moral dos juízos de valor como obstáculos para o acesso do ser que se antepõem à especulação e à sondagem do código existencial dos personagens, ou de certas afecções do ser como suas chaves de interpretação e de uma composição existencial histórica, apenas possíveis de conhecer desarmado de expectativas morais e ideológicas. A modernidade trouxe consigo a fragmentação da verdade que fazia da humanidade, sob Deus, “a” humanidade, um ente abstrato total para o qual confluía o sentido do ser em comunhão. Dos destroços desta fragmentação começa a surgir o indivíduo, e com ele verdades conflitantes. O romance tenta dar conta deste problema considerado a partir da história do ser, das situações humanas e do personagem como condição fragmentária do homem no mundo, e não dos grandes acontecimentos sociais e políticos. A história do romance é a história desse homem moderno. Este estado de coisas é o fundamento da “sabedoria da incerteza”, ou a “sabedoria do romance”, cuja paternidade e tradição fundadora o romancista atribui a Dom Quixote, que deixou a aldeia de La Mancha na aurora dos tempos modernos, quando Deus começava a deixar o trono do mundo vazio, e não foi mais capaz de se encontrar.
Para interpelações como esta, portanto, é difícil compreender que a resposta do romancista pouco ou nada dirá sobre suas críticas às experiências do socialismo do século XX no Leste Europeu em suas obras. Ele não parte de fora, do contexto das grandes narrativas históricas – tampouco está restrito a sua experiência pessoal -, mas de dentro, do microcosmo da experiência humana e do que as situações existenciais dos personagens revelam sobre o mundo. São as atitudes humanas que abrem o sentido do mundo ao qual o indivíduo está preso como um “caracol a sua concha”. Episódios pessoais narrados em seus romances e ensaios – como a reconciliação com a figura de Hitler em A insustentável leveza do ser, o diálogo trivial e revelador com uma amiga narrado no ensaio A arte do romance ou a viagem com a esposa que abre A lentidão, entre outros, nada dizem sobre a relevância de sua vida pessoal para o esclarecimento de sua obra. Nesta condição são experimentações existenciais encontradas pelo romance, que despreza o caráter prosaico dos fatos. Trazidos para dentro de suas obras, tais episódios arrastam a existência para a ribalta do romance, não são a luz que o ilumina. Tais eventos são, eles mesmos, experimentações romanescas que revelam descobertas e sondam o campo aberto das possibilidades e apenas nesta condição têm lugar na obra, não estão ali como as vulgaridades ordinárias da vida. O que importa neles é a situação existencial que compõem, e não eles em si mesmos. Uma coisa é a biografia, a vida pessoal do autor com suas opiniões, crenças e ideias consideradas como explicação de sua obra, comum a um escritor que não está necessariamente preocupado com as potências do ser; outra coisa é sua vida como existência, como experiência e como fenômeno pleno de sentidos, aspectos próprios de um romancista, que desdobra um campo de possibilidades que escapa ao escopo das opiniões e crenças pessoais e só assim se abre à arte do romance. Num léxico de palavras-chave de seus romances no ensaio A arte do romance, Kundera define o biografismo por uma metáfora arquiconhecida: “o romancista desfaz a casa de sua vida para, com as pedras, construir a casa de seu romance. Os biógrafos de um romancista desfazem portanto o que ele fez, refazem o que ele desfez. O trabalho deles não pode esclarecer nem o valor nem o sentido de um romance […]”[9].
Nesse ponto, em que escapa ao romancista enquanto tal o conhecimento prévio das possibilidades da existência, o distanciamento que Milan Kundera declara da condição do escritor revela seu sentido mais substancial. Esse caráter independente e autônomo do romance confere ao autor a propriedade específica da arte do romancista e a distingue da arte do escritor. Se o romance persegue o enigma da existência, o enigma do ser, o romancista não está expressando nele suas próprias ideias, mas examinando possibilidades que estão fora, sondando o desconhecido, enquanto o escritor expressa em suas obras suas próprias ideias e o romance é, para ele, uma extensão, um difusor de suas ideias. Mas o que o romancista escreve são as obscurecidas e inseparáveis possibilidades do ser e do mundo, é o que vem de fora da casca da vida realizada; o escritor dá vazão a suas ideias, sua obra ecoa seus próprios conteúdos.
Como presságios de um ser inacabado, essa autonomia do romance dará asas ao sonho e à imaginação dos quais e para os quais o romancista, enquanto tal, é vetor e hospedeiro das possibilidades do ser.
Notas:
[1] A morte do grande romancista tcheco foi causa para publicações jornalísticas em todo o mundo. Por aqui, o jornalista Euler de França Belém afirmou que o sucesso de A insustentável leveza do ser, que ganhou adaptação para o cinema pelo diretor Philip Kaufman, tornou Kundera “quase uma espécie de Graham Greene tcheco, quer dizer, um autor de livros – romances e contos – de entretenimento”. O teor da matéria, disponível aqui, leva a crer que a conversão teria sido um fenômeno da percepção no público. Mas o jornalista afirma também que o romancista “apreciava a ideia de obras de “divertissement“, obras de entretenimento, e ilustra essa afirmação citando Laurence Sterne e Denis Diderot como mestres do tcheco nesse campo, certamente porque Kundera capturou em A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Sterne, e em Jacques, o fatalista, de Diderot, dois grandes apelos à diversão como possibilidades do romance perdidas pela evolução posterior da arte romanesca. Mas Euler deixa passar, aparentemente, que essa diversão é antes uma porta pela qual o romance adentraria a história e a problemática existencial do ser, o que inclui, por exemplo, a tragédia, e não uma “fuga” do ser como dá a entender o substantivo divertissement usado sem maiores explicações. Ainda que se possa lê-los como entretenimento, o jornalista esqueceu que a leitura que Milan Kundera faz de Jacques, o fatalista no ensaio A arte do romance está absolutamente distante de um entretenimento entendido como fim em si mesmo? Também há “divertissement” em Dom Quixote e em O bravo soldado Chveik, de Hasek, mas estes dois romances são vistos pelo tcheco como duas interrogações sobre a existência humana. Este último, aliás, o romancista apresenta, junto à Kafka, como evidência do período dos “paradoxos terminais”. Se Milan Kundera vê em Dom Quixote o romance fundador dos tempos modernos, não é por sua capacidade de entretenimento.
[2] “Toda potência é, ao mesmo tempo, potência de ambos os contrários. De fato, o que não tem potência de ser não pode existir em parte alguma, enquanto tudo o que tem potência pode também não existir em ato”. Aristóteles, Metafísica. Livro Theta, 1050b. Edições Loyola: São Paulo, 2002, p. 423
[3] Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986. p. 221.
[4] Kundera, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 37.
[5] Ibidem, p. 39.
[6] Ibidem, p. 14.
[7] Em 2008, o Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários (em tcheco: Ústav pro studium totalitních režimů – USTR), em Praga, República Tcheca, publicou em seu site um relatório da polícia comunista tchecoslovaca que apresentava uma delação datada de março de 1950 feita por Milan Kundera contra um suposto espião desertor que terminou condenado e preso por 14 anos sob regime de trabalhos forçados numa mina de urânio. Kundera sempre negou a acusação e contou com a defesa pública de escritores e intelectuais ilustres como os nobéis J. M. Coetzee, Nadime Godimer, Gabriel Garcia Marques e Orhan Pamuk, além de Carlos Fuentes, Philip Roth, Salman Rusdhie e outros. O caso envolve um homem então separado de seu passado por quase 60 anos num país e num regime que não existem mais. Nenhum dos dois é mais o mesmo. Mas lembremos das profundezas líricas dos homens e da “estúpida idade lírica” da juventude, aquela vista por Kundera no poeta Paul Eluard no caso emblemático descrito no espetacular O livro do riso e do esquecimento, e da admitida dificuldade do romancista com o próprio passado: “si mi acuerdo de mi mismo de joven, no siento ningún entusiasmo, ninguna nostalgia lirica. Más bien penso: ‘No me gustaria ver a esse cretino que yo era’. No vivo em paz conmigo mismo a la edad de 20 año. Tengo la impresión de haber sido um total imbecil em cada aspecto, de ahi, probablemente, mi actitud suspicaz com la juventud”. Esta reflexão aparece no ótimo documentário de Jarmila Buzkova de 2021, Odyssée dês illusions trahies. França, República Tcheca. Arte, 2021. Disponível aqui.
[8] Kundera, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25.
[9] Ibidem, p. 138.
Leia aqui a parte dois
Camarada Jan Cenek…faço aqui a recíproca de sua apresentação. Em primeiro lugar agradeço o espaço a você e ao passapalavra, espaços como esse são importantes para o debate e a circulação de ideias. Sobretudo nos tempos atuais.
À pergunta do anjo de Kundera eu respondo como responderia ao demônio de Nietzsche, velho interlocutor do tcheco. Na penúltima seção do Livro IV da Gaia Ciência, no aforismo 341, de nome “o maior dos pesos”, o bigodudo põe a questão sobre como responderíamos ao demônio que nos aparecesse dizendo que nossa vida se repetiria pela eternidade com cada miséria, cada infâmia, cada dor e alegria, cada grandeza e cada pequenez, e nos pergunta: “você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: ‘você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!'” Ao pensar nos camaradas e nas camaradas e nos momentos mágicos que vivemos eu responderia sem titubear ao demônio: eu vivi esse instante imenso e se preciso pagá-los com minhas dores e misérias…pago! Quero vivê-lo outra vez!
A você, grande irmão camarada, aos que se foram e aos que estão aqui…valeu a pena!
Introdução
Ao ler seu ensaio, que aliás é deveras supimpa, lembrei-me de minha ligação literária com Knut Hamsun e sua obra Fome, ao contrario de Kundera do qual li um único livro, exposto em seu ensaio, conheço toda a obra de Hamsun, que em mim teve, acredito, o mesmo impacto que Kundera teve para você, me vi como o protagonista do romance, até porque o protagonista não tem nome, isso é algo comum em toda a sua obra, dessa forma, o autor, o personagem e o leitor se tornam um só, no livro em questão, levei tempo para entender o personagem, anti-herói, altivo, porém vulnerável, imerso em uma luta constante contra as forças do destino da própria existência. A genialidade de Hamsun reside na habilidade de transcender as palavras e conectar-se diretamente com nossas emoções, mostrando que a Fome em questão não se trata apenas de alimento para o corpo…
Assim como você destacou a complexidade das obras de Kundera em seu belo ensaio, percebo em Hamsun uma maestria semelhante, guardadas as devidas proporções, na exploração da condição humana. Uma narrativa, muitas vezes crua e desprovida de artificio.
Do Ensaio
Bem, primeiro preciso dizer que não conheço a obra de Kundera, li apenas A Insustentável Leveza Do Ser, e preciso ser sincero não me causou nenhum grande impacto ou impressão, após ler seu ensaio houve uma ligeira mudança na forma que interpretei a obra em questão, ainda assim não o suficiente para mudar minha visão a respeito do romance, não me vi impactado de maneira significativa ou profundamente sensível pela leitura inicial. Apesar disso, ao absorver as análises apresentados em seu ensaio, pude refletir uma sutil mudança na forma como interpretei o romance.
Seu texto propôs uma lente perspicaz para enxergar as camadas mais profunda da narrativa e os dilemas existenciais que permeiam a trama. As reflexões sobre a busca do significado na vida e as complexidades dos relacionamentos adicionaram nuances que escaparam a minha percepção inicial. Essa nova perspectiva enriqueceu minha compreensão do contexto em que os personagens vivem e enfrentam suas escolhas.
Contudo, mesmo com essa ampliação de horizontes, devo admitir que a obra ainda não conseguiu provocar uma transformação completa em minha visão sobre o romance. Ainda sinto uma certa distancia emocional em relação aos personagens e suas jornadas, o que pode ser resultado de uma experiência literária subjetiva e altamente pessoal.
Seu ensaio, no entanto, cumpre um papel detalhado ao fornecer uma análise aprofundada e apresentar interpretações que podem ressoar de maneira mais intensa a outros leitores. Acredito que, ao compartilhar suas percepções, você contribui para enriquecer o diálogo em torno da obra, proporcionando uma experiência mais completa para aqueles que buscam desbravar os labirintos filosóficos e emocionais de A Insustentável Leveza Do Ser.
A meu ver, e claro, posso e até acredito testar errado na interpretação, quase todas as frases do livro A Insustentável Leveza do Ser referem-se ao amor e a suas vicissitudes. O romance expressa muitas das formas que um relacionamento amoroso pode ter. Ele tenta, em repetidas ocasiões, definir o amor.
Não consegui enxergá-lo como uma obra que deixará um rigor literário em minha memória. Kundera aborda temas complexos e filosóficos, explorando a leveza e a insignificância da existência humana, mas, para mim, a narrativa não conseguiu atingir uma profundidade emocional que me conectasse de maneira visceral aos personagens.
A estrutura não linear da trama, embora inovadora, por vezes me deixou desconectado, dificultando a particularidade no romance. Os personagens embora bem construídos e carregados de simbolismo, não despertaram em mim nenhuma empatia profunda, tornando a identificação de suas jornadas existenciais difíceis.
*Aguardo, ansioso, para formular, o que pobremente tentei expressar e talvez até mudar minha visão sobre a obra.
Caritas fraternitatis, frater eius
Pascoal Nils
Pascoal Nils…valeu pelo comentário. Li “Fome”, do Hamsun, há mais tempo que meu contato com a obra do romancista tcheco. Tive sorte de tê-lo lido pela tradução de Carlos Drummond de Andrade, o que certamente compensou na tradução o que se perde do original. Até hoje aquela abertura desoladora vez em quando emerge em meus pensamentos: “Cristiânia, cidade singular que deixa marca nas pessoas. Naquele tempo, com a barriga na miséria […]”. Hamsun, Nobel de literatura, me parece um exemplo das infinitas possibilidades da miséria e da grandeza e como essas coisas se cruzam. Para além disso Hamsun e Kundera estão distantes um do outro pela característica mais específica do tcheco como um romancista propriamente dito, o que ele entende por isso e suas consequências.
Cada releitura de uma obra literária sempre traz algo novo que deixamos escapar antes, isso me parece algo bem bem claro hoje. Os escritores, eles próprios, escrevem suas obras com tempo, não numa noite ou numa tarde. Li o best seller de Kundera algumas vezes, a última recentemente para escrever esse ensaio. Mas na primeira vez já me foi possível perceber a riqueza reflexiva e se tratar de uma obra que ficaria.
A distância emocional que você declara ter sentido em relação aos personagens de “A insustentável leveza do ser” talvez decorra, como eu acho que seja o caso, de certa intencionalidade do autor, mais interessado em explorar o que é o ser e sondar as possibilidades da existência que estabelecer vínculos emocionais entre seus personagens e o leitor (fórmula comum aos best-sellers). A despeito dessa intencionalidade isso acontece, claro. É habitual ao leitor comum, de ocasião, ver em Tomas, por exemplo, um dos personagens centrais da Insustentável leveza do ser, um “depravado”, um “velho safado” ou um “irresponsável emocional” (curioso que Sabina também poderia ser vista assim, mas normalmente ela é poupada). Ele é tudo isso, certamente. Mas é isso o problema na obra? Ela é redutível a isso? Um autor como Milan Kundera gastaria sua tinta para escrever isso? A resposta é não para todas essas perguntas.
Sobre essa “estrutura não linear” da obra, bem…eu não a vi dessa forma. Não sei se se refere ao conteúdo ensaístico que poderia criar uma sensação digressiva no leitor, mas esse conteúdo ensaístico, nesse caso, está em estreita relação com a narrativa, não foge dela. A ruptura cronológica que acontece na estrutura narrativa não confere a ela, a meu ver, uma “estrutura não linear”. Antes e pelo contrário essa ruptura lhe acentua a estrutura linear.
Sobre essa carga de simbolismo dos personagens, não sei. Se quiser desenvolver mais essa impressão que teve, é possível. De cara, no entanto, eu diria que não pq Kundera dá pistas de que há uma literalidade em seus textos. Toco nesse assunto na parte 2 deste ensaio. Quer dizer, o sentido está na própria coisa, nos próprios personagens e suas circunstâncias, eles não são concebidos como meios para comunicar algo que lhes esteja além (o que não lhes significa uma consciência absoluta de sua ação). Isso é característico da abordagem de caráter fenomenológico dos romances do tcheco.
Enfim…Kundera exercita as definições possíveis do que está tentando compreender, portanto há essas tentativas sobre o amor e sobre outras dimensões da existência. Cada ponto de chegada nesses campos são alargamentos das possibilidades da existência. Espero que você queira e possa reler a obra, já que mostrou suficiente percepção sobre algo mais nela.
Aguardo a segunda parte para reflexão mais profunda sobre o tema, como antes mencionei, li o livro apenas uma vez e até com certa displicência, talvez seja a hora pa reler de forma mais profunda.
Uma das características de Kundera é ser envolvente, eu diria muito mais por conter em seus romances, aquela parte em que ele “costura” trechos que, a princípio, pode parecer fugir do contexto, pois o que tem a ver com o romance de A insustentável leveza do ser o gênio Bethoven e sua composição Es muss sein? Mas, lendo mais que uma vez – é, tem que ser lido mais de uma vez, pois assim não deixaremos passar “batido” toda a riqueza de seu conteúdo, enfim, a composição de Bethoven serve justamente para delinear com contornos mais definidos a personagem e sua ação específica.
Em alguma outra passagem do livro, eis que surge o autor falando de algum trecho de sua própria história e essa também será um delineador que acentua um fato ocorrido ou um comportamento de uma das personagens.
E, assim, segue a história narrada por um escritor presente e que vai tecendo entrelaços com a História e análise comportamental ou mesmo certos conceitos filosóficos e, consequentemente, o que poderia ser apenas um romance de entretenimento se torna um grande livro de conhecimentos variados, mas, principalmente, uma obra imensurável e inesquecível!
Dizer que ele é apaixonante é pouco, pois sua narrativa muitas vezes chega a ser poética, na falta de outra palavra para descrever, pois é de um arroubo em que faz a alma da gente pular de sobressalto frente ao espetáculo artístico é criativo para compor uma cena , chegando a emocionar essa leitora apaixonada que tem poucas obras para terminar toda a sua bibliografia.
Acredito que deva ter leitores que são arrebatatadis logo na primeira leitura, mas para mim, é talvez para geral, se fanecessário duas ou mais lidas para que os tesouros kunderianos saltem à vista.
E, após isso, sejam bem vindos ao despertar de uma grande paixão literária, daquelas de sentir saudades e de não se cansar de comentar.
Ananta Martins…boa lembrança a de Beethooven em “A insustentável leveza do ser”. Há essa dimensão musical na composição da estrutura do romance de Kundera, como o contraponto, por exemplo (se bem que acho que não é como Beethoven aparece na obra). É um tema bem explorado em “A arte do romance” em entrevista com o amigo e escritor Christian Salmon. Outro ponto é o conteúdo poético da prosa do tcheco. Uma coisa é a postura irônico-crítica do romance em relação à embriaguez lírica e acrítica do espírito poético – cujo cúmulo talvez seja o poeta vítima dos processos políticos no contexto da Primavera de Praga, preso e acusado de crimes que não cometeu, mas que, como os outros, tendo assimilado toda acusação contra si, o fez de modo antecipado, por uma embriaguez de fusão sem ressalvas que o levou a assumir a culpa que nunca teve; para mim isso também revela uma outra dimensão do divórcio entre o homem e seus atos -, outra coisa é o espírito poético antiadesista. Que, para o tcheco, tem no romance sua forma ideal.
A poética de Kundera envolve de tal maneira o leitor que a narrativa o toma de assalto. Um bom exemplo disso é o capítulo O poeta nasce na obra A vida está em outro lugar.
A narrativa segue num crescente lento, revelando a primeira paixão de Jaromil , seguida de frustração e de um, consequente constrangimento. A angústia causada encontra abrigo no desabafo textual que, misturado aos sentimentos contrários as palavras assumem vida própria desabrocham em poema , enquanto nós de meros espectadores nos tornamos coadjuvantes. Kundera é contra a lírica adesista,mas a poesia,sabiamente se aderiu à ele.