Teses a favor das putas
Organization of American States Benjamin Canas 001

Por F.D.P.

 

Puta não espera telefonema carinhoso na manhã seguinte.

Puta não acusa você de irresponsabilidade sentimental.

Puta não sente frio.

Puta não tem dor de cabeça.

Puta recebe adiantado.

Puta não dá desconto.

Puta não faz fiado.

Puta não aceita cheque.

Puta chama você de amor a qualquer hora do dia e da noite.

Puta não pergunta sua cor.

Puta não pergunta o seu peso.

Puta não pergunta a origem dos seus ancestrais.

Puta não pergunta os seus pronomes.

Puta não pergunta se você é cisgênero.

Puta não pergunta se você é uma pessoa binária.

Puta não pergunta se você é intersexual ou endosexual.

Puta não pergunta se você é queer.

Puta sempre consegue um táxi.

Puta conhece traficantes.

Puta adora presentes.

Puta não quer saber se você é casado.

Puta escuta suas histórias, melhor que a psicanalista, no final da sessão ainda faz você gozar gastando muito menos.

Puta não liga se a luz está acesa.

Puta não fala que o seu pau é torto.

Puta passa o número do telefone dela.

Puta conhece os melhores hotéis, motéis e restaurantes da região.

Puta sempre arruma um tempo para você.

Puta goza e finge que goza como uma puta.

Puta não cumprimenta você no culto da igreja.

Puta apresenta suas amigas para você.

Puta trata bem o seu filho.

Puta não fica enjoada ao andar de barco.

Puta vai para a pescaria e não reclama dos mosquitos.

Puta sempre transa depois de acompanhar você ao cinema.

Puta não inventa histórias para ficar mais dois ou três dias na sua casa.

Puta não tem namorado ou marido ciumento e assassino.

Puta vai embora e não exige pensão, não fica com a casa, não toma seu carro nem sua moto.

Teses a favor das putas

Nota:

(*) Uma puta homenagem a Franz Kafka. O mais novo cancelado — ele e suas obras — da internet. Um artista que supostamente fere a moral e os bons costumes dessa gente desconstruída.

 

A arte em destaque é da autoria de Benjamin Canas (1933-1987). Já a arte no corpo do texto é da autoria de Kim Prisu (1962-).

 

20 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns a TodEs! A quem escreveu e ao Passa Palavra que publicou. Compartilho três comentários e uma previsão:

    1) No tempo presente, ser cancelado é uma espécie de selo de qualidade. Que bom terem cancelado o genial Franz Kafka. Estranho seria se o identitarismo puritano e cristão tolerasse o gênio tcheco.
    2) Se há um lugar em que “não é não e sim é sim!” é nas zonas de tolerância. Nesse ponto, sem tolerância: “não é não e sim é sim!” Ou, como dizem que se diz em tais espaços: “dinheiro na mão, calcinha no chão!”
    3) Efeito não planejado e pouco discutido do avanço do identitarismo carola é o fortalecimento das zonas de tolerância, porque nesses espaços milenares vigorou, vigora e vigorará o “não é não e sim é sim!”
    4) Em tempos de identitarismo carola, as zonas de tolerância crescerão e se espalharão cada vez mais!

  2. se as putas são tudo isso, imagine as moças do OnlyFans, que sequer exalam odores.
    Fora isso, existe um equívoco no pé de página da homenagem. A perseguição moral à prostituição e à pornografia tem origem no feminismo radical. Para elas não há nada a ser desconstruído. Mulher é sinônimo de vagina e a coisa termina por aí, e quem pensa que não é um inimigo da classe das mulheres.

  3. Puta adora Keep Cooler. Faltou esta tese. Sim, elas adoravam. Houve uma época que você, na boite, não conseguia nem saber direito o nome da prima sem antes pagar uma Keep. “Amor, paga uma Keep!” Assim era praticamente como elas davam as boas-vindas. E como “em terra de sapos, de cócoras com eles”, lá se ia um dinheiro.
    Eu escrevi boite. Este nome era muito comum no interior do Brasil, talvez ainda seja, assim como casa de shows, mas nas capitais nem tanto, pelo menos não nas áreas mais centrais, já nos cantos mais afastados a boite estava lá, acordando tarde e dormindo cedo. E outra, nome de zona no Brasil é coisa engraçada. A mais engraçada que vi foi Creche dos Maridos; cheguei a tirar uma foto, que infelizmente a perdi. Nesta, uma vez, vi uma faixa em preto e branco na fachada com informações sobre a Black Friday que aconteceria em breve. Depois fiquei sabendo que a casa tinha uma dona. Não a conheci, mas gostaria; tenho certeza que ela tem senso de humor. E como gosto de conhecer essa gente cada vez mais rara de ser encontrada…

    J, acho que a sua previsão faz sentido. Acho até que isso já seja possível de ser constatado. Só não sei se de fato cresceu o número de estabelecimentos. Talvez o crescimento maior tenha se dados em outros segmentos, como sites de anúncios para a prostituição, mídias sociais, serviços virtuais…

    Lucas, esse texto nasceu de uma gozação, brincadeira, para ser zueira mesmo, e não para ser uma peça sem defeitos ou equívocos, muito menos para ser publicado. Eu acho até que seja possível encontrar uns tantos outros equívocos; as putas saberão, os raparigueiros saberão, os menos desavisados saberão, quem sabe até um ou outro estudioso do campo saberá… Ele nasceu e ficou na gaveta. Eu só busquei publicá-lo depois que vi na internet uma merda sobre o cancelamento do Kafka. Eu acho engraçado como a zueira tem a capacidade de fazer aparecer um monte de verdades…
    Bacana que você apontou aquele equívoco. Aproveito para dizer que já vi organizações leninista-trotskystas condenando a prostituição, se posicionando contra a legalização da atividade, afirmando que prostituição não é trabalho; no fundo, primeiro a condenando moralmente, e somente a partir de então fazendo essas outras defesas. Bom, mas eu não saberia lhe dizer, agora, se tais ideias nasceram com o feminismo radical ou se algumas organizações leninista-trotskystas defendem ideias que nasceram em outros berços. Talvez até estejamos diante do cruzamento de ideias que nasceram num campo e hoje são defendidas também por outros campos, ideias que ecoam em campos diferentes do de seu nascimento. Sinceramente eu não sei.

  4. A esquerda e o feminismo do Twitter (atual X) são portadores de um moralismo e um puritanismo típicos daqueles clérigos do passado. Não vivem mais as noites e as ruas, desconhecendo assim a vida de tantas pessoas.

    Esses bolcheviques e essas feministas radicais já haviam cancelado Bukowski (chamando-o de autor “preferido dos esquerdo-machos”) e Vinicius de Moraes. Agora, Kafka? Parecem ter um tipo de assombro por qualquer tipo de boemia. Essa gente se esquece, no entanto, onde nasceu boa parte das vanguardas artísticas do século passado: nos cabarés. Ignoram a vida boêmia de inúmeros artistas. Aliás, esquecem-se até que um de seus profetas, Marx, foi em sua juventude um boêmio. Para quem se interessar, sugiro que leia o livro “Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna” de Michael Heinrich.

    Me parece também que nem adianta tentar lhes mostrar certas canções, já que não lêem romances. Mostrar-lhes canções – como “La bohème” de Jacques Plante e Charles Aznavour, “Bom dia tristeza” de Adoniran Barbosa, “A volta do boêmio” de Nelson Gonçalves e “Ronda” de Paulo Vanzolini na interpretação icônica de Inezita Barroso – para que tentem compreender o que era a boemia do passado. Parece isso uma perda de tempo. Imagino também o cancelamento de Noel Rosa por sua vida desregradamente boêmia. Essa esquerda e esse feminismo hegemônicos ouvem se for um funk, pop ou hip hop “emancipadores”. Não é à toa que admiram acriticamente e de forma tão alienada as bilionárias Beyoncé, Rihanna e Taylor Swift pelas supostas virtudes emancipadoras. Já não vêem, não ouvem…

    De maneira paradoxal, essa esquerda e esse feminismo destroem-se a si mesmos a cada dia que passa, enquanto crescem e fortalecem sua hegemonia.

  5. Que um texto cujo conteúdo é integralmente uma expressão/reprodução do pensamento/ideologia machista e misógina autodenominada redpill, tenha sido publicado em um site de esquerda, serve como mais um alerta dos cruzamentos entre esquerda e direita que tem sido frequentes nos tempos em que vivemos. E aqui vemos por onde os críticos ao identitarismo na extrema-esquerda acabam convergindo com um movimento de direita.

    Com o mote de criticar o suposto cancelamento de Kafka (por meia dúzia de pessoas no twitter) se expõe um texto misógino e de direita que não apresenta nenhuma crítica aos motivos do suposto cancelamento.

    O título vende uma coisa, mas o conteúdo é outro. Não se trata de teses a favor das putas: mas teses de ressentimento a generalidade das mulheres (todas as não-putas ao menos, mas como veremos em última análise também às putas reais e humanas). Por isso é misógino como todo texto redpill costuma ser. O título também não é a favor das putas em um outro sentido. “Puta não sente frio” para pegar a frase mais flagrante. Trata-se de uma trabalhadora do sexo ou de uma boneca inflável? Trata-se um ser humano que é descrito no texto? Evidentemente o texto expõe um ideal de objetificação, no qual já não existe voz humana e vontade própria. Uma idealização do trabalhador que não reclama das condições de trabalho, aceita qualquer coisa e não impõe suas próprias condições para trabalhar. Esses teses não são a favor das putas, são contra essas trabalhadoras também. Na concepção, trata-se de um texto de direita por fazer ode ao trabalhador sem fala, que aceita tudo e não reclama, além de s3r um exemplo acabado do pensamento redpill.

    https://youtu.be/3DM_Zr_5DMw?si=TYdQiLtDWVnQMNfn

  6. Leo V, você deve ter lido no meu comentário anterior que o texto em questão nasceu para ser uma gozação, zoeira, ou seja, ele não nasceu para ser um retrato fiel, realista, das putas e das não putas, por isso vale lembrar que é próprio da zoeira, da brincadeira, da gozação o uso do sentido figurado das palavras, bem como misturar o literal e o figurado numa mesma frase. Essas são coisas que a gente leva para um texto de gozação, mas também são coisas que já aparecem dessa forma na língua falada comumente. Na verdade é justamente porquê já aparecem assim na língua falada, na gozação falada, que eu pude levar para um texto de gozação.
    Vale lembrar, também, que “voz humana e vontade própria” de putas não faltam no texto. Inclusive várias gozações feitas por putas, várias frases ditas por putas, vários pensamentos ditos por putas são literalmente passados para o texto. São vários os exemplos. Eu coleciono esses exemplos na minha memória há uns bons anos, muitos anos, e por isso é que consegui escrever o texto.
    Minha família coleciona histórias de putas, de clientes de putas, de putas na zona, histórias antigas da região da Luz, em São Paulo, na década de 1940, quando um tio da minha avó paterna, raparigueiro conhecedor daquele subterrâneo, se casou com uma prostituta da região da Luz. Ele havia sido cliente dela, se apaixonaram, ela largou a prostituição, se casaram, tiveram filhos e ficaram juntos até a morte dele no início dos anos 1980; eu não conheci o casal.
    Depois, uma irmã do meu avô paterno se separou do marido, no interior do Paraná, deixou os três filhos com a mãe dela e se mudou sozinha para a cidade de Santos, foi trabalhar como prostituta, ficou umas quatro décadas trabalhando, inclusive, se eu não me engano, ela trabalhou por longos anos numa famosa casa em Santos chamada Pink Panther. Quando eu a conheci, no final dos anos 1980, ela ainda trabalhava como prostituta e ainda residia num cortiço, o único que conheci na minha vida, com o seu marido, os dois ocupando um quarto, e todos do cortiço usando uma mesma cozinha e um mesmo banheiro. Lá se vão mais uns 10 anos e ela deixa a prostituição, seu marido se aposenta, ele era estivador no porto de Santos, e eles então se mudam do cortiço para Cubatão, nos fundos da casa de um dos três filhos dela, e é lá que ela e ele acabam morrendo.
    O terceiro e último exemplo na família vem de uma sobrinha desse meu avô, que não é filha dessa irmã do meu avô que foi prostituta em Santos, mas que também foi prostituta em Santos, São Vicente e região, por longas décadas.
    Ao longo dos anos eu transformei histórias que escutei ou que vivi nessas frases curtas que no texto eu chamei de teses. Tem também uma ou outra coisa que pesquei em filmes, músicas, entrevistas, livros, artigos acadêmicos, crônicas, contos.
    Você falou do “Puta não sente frio”, e essa é uma frase que surgiu numa madrugada fria, no início dos anos 2000, quando eu e um colega, num carro Palio meio destruído, cruzávamos um dos estados do sul do Brasil. Lá pelas duas da madrugada paramos no único lugar que estava aberto naquele mar de soja, a gente queria beber conhaque para espantar o frio. Entramos na zona sentindo muito frio, pedimos conhaque, e elas, com roupas muito curtas, pediram cerveja gelada, riam da nossa condição, elas sem entender como é que a gente estava com tanto frio, e a gente sem entender como é que elas não estavam com frio. A gozação, a tiração de sarro e o “puta não sente frio” tem essa origem: numa madrugada fria, numa zona de beira de estrada, um simpático leão-de-chácara próximo a porta com sua camisa por fora da calça como sempre, a casa quase sem movimento algum, dois clientes com dinheiro para quatro conhaques e duas cervejas, na cidade de Palotina, Paraná.
    Lá no texto, por exemplo, tem uma conhecida verdade que é o “Puta não aceita cheque.” Mas não é que uma vez duas amigas minhas – uma que trocou o caixa de supermercado pela prostituição e a outra que depois de uns anos trocou a prostituição pelo casamento com o pai da amiguinha de escola da minha irmã – me contaram, em meio a essa gozação que diz que puta não aceita cheque, que elas aceitavam, sim, de clientes conhecidos, e que nas poucas vezes que tiveram problemas com cheques sem fundos, repassaram os mesmos para dois clientes bondosos – cliente bondoso é aquele que dá mais dinheiro que o valor do programa, ou dá presentes, ou pede jantar dentro do motel; são muitos os exemplos- ambos da polícia civil, e os mesmos se encarregaram de receber os devidos valores para elas, sem falhas – o subsolo do subterrâneo é sempre um mundo à parte e bem mais difícil de ser conhecido, por vezes nem percebido e identificado ele é.
    Bom, boa parte do que coloquei no texto saiu da boca delas, ou saiu da vida delas, das histórias que elas me contaram, das gozações que elas mesmas fazem ao falar da profissão, do trabalho, dos clientes, dos filhos dos clientes na primeira vez ou daqueles que viciam rápido e todo mês marca encontro assim que cai a mesada. Umas foram minhas amigas, uma é minha amiga até hoje, outras eram amigas das minhas amigas, algumas frases eu tirei das histórias contadas pelos meus parentes, outras eu escutei na zona mesmo, outras foram velhos raparigueiros que me contaram.
    Tem coisas, por exemplo, que são regras do meio social, regras da atividade, como não cumprimentar o cliente quando encontra ele com a esposa ou a família, seja na igreja, restaurante, shopping, ou qualquer canto, outras coisas fazem parte de um código de etiqueta que os clientes devem seguir e que os mais atentos sempre seguem.
    Tem muitas vozes ali, tem muitos olhares ali, vozes que se misturam com olhares e outros olhares que se misturam com outras vozes, mas tudo girando em torno da putaria e da raparigagem. Tem verdades e tem gozações que não são tão verdades assim. Tem exageros e tem provocações, ambos também são próprios das gozações. Tem a rua e a zona, o subterrâneo e o subsolo do subterrâneo. O homem é espaçoso, o diabo sabe bem.

  7. Quando entra a putaria na conversa, vem com ela a tresleitura. Sempre. É inevitável.
    Essa agora dos comentários mais recentes me lembrou uma situação vivida pelo pobre Pierre Louÿs há alguns anos.
    Este poeta e romancista belga, colega de escola de André Gide, lançou em 1926 um clássico da putaria, Manuel de civilité pour les petites filles à l’usage des maisons d’éducation, paródia irônica e satírica dos manuais de educação para moças daqueles — felizmente! — idos tempos d’antanho.
    Lembro-me de ter lido uma edição brasileira de 1998 desta obra, publicada pela Imaginário como parte de uma pequena série de publicações libertinas, naquele português pré-machadiano característico das traduções da editora. Tem coisa ali de fazer puta corar. Tá, vá lá, exemplos:
    “Se lhe perguntarem o que você bebe nas refeições, não diga que só bebe porra.”
    “Colocar mel entre as pernas para que um cãozinho venha lambê-la é permitido a rigor, mas é inútil retribuir-lhe o serviço.”
    “Se você transar à tarde em uma igreja do interior, não lave sua bunda na água benta. Longe de purificar o pecado, você estaria agravando sua falta.”
    “Se você sentar na coxa esquerda do seu pai, não esfregue a bunda na pica dele para deixá-lo de pau duro, a menos que vocês estejam a sós.”
    “Masturbe seu irmão na cama dele, nunca na sua. Isso a comprometeria.”
    Como a tiragem foi pequena, não se conheceu muito a obra por aqui.
    Alguns anos depois da edição da Imaginário de 1998, eis que cervejaria de nome pretensamente libertino resolve relançar o opúsculo em coedição com uma editora aliás bem reputada, como parte de campanha de marketing. Outra tradução (a da Imaginário é melhor), outra capa, outras intenções…
    Para quê! Já em 2006 certas figuras e organizações do movimento feminista não somente criticaram a publicação e a própria obra em termos muito duros, como fizeram o possível para retirar a obra de circulação. O cerne da crítica: ao patrocinar a publicação, a cervejaria supostamente endossaria integralmente o conteúdo — que, é óbvio, não é nem um pouco irônico, nada satírico, aliás tudo muito literal, sem nenhuma camada subjacente de significado. Sejamos sinceros, ao menos uma vez na vida.
    Ainda em 2014, oito anos depois desta nova edição, uma ONG que também presta consultoria a empresas em equidade de gẽnero pegou o manualzinho de Pierre Louÿs para Cristo. Num tuíte hoje apagado, a ONG recortou uma das “regras” do livro para acusar a empresa e o autor de promoverem nada menos que apologia ao estupro. Polêmica para lá, polêmica para cá, foi todo mundo denunciado ao Ministério Público (imaginem se o pobre autor comparece, coitado…), o Ministério Público arquivou essa denúncia-comédia, a ONG conseguiu o engajamento que queria, ainda há quem fale do assunto com certo recato e muitos poréns, mas a coisa esfriou.
    Mas parece que a puta é a Amélia da vez, a petit fille da vez. E é claro, tinha de aparecer ela, a incontornável comparação com a extrema-direita. Levemos a coisa a sério, de uma vez, sejamos radicais: assim como tem red pill lá e cá, por lá também tem quem queira o fim do capitalismo, e, se brincar, por meio da força. E agora?
    Meu pitaco: puta até liga para essas coisas, mas não liga. Puta dá um jeito. Aliás, puta dá um jeito melhor que qualquer um.

  8. A ironia, ser irónico e entender a ironia, é sempre uma manifestação de inteligência. Por que é que o esquerdista detesta a ironia? A ironia é a terra que treme, o tapete que se puxa debaixo dos pés, a dúvida que se instala. A ironia obriga o esquerdista a olhar para si próprio, que é para onde ele menos quer olhar.

  9. Não poderia concordar mais com o comentário de Leo V.
    É espantoso um texto que tenta “homenagear” Kafka por seu suposto cancelamento na internet – que, se desligar o modem da internet e deixar de usar o X, simplesmente não existe – ser tão carregado de misoginia e impropérios. Você pode ser crítico ao identitarismo e não requentar ideias machistas camufladas de “ironia”, “gozação”, “brincadeiras”. Existem muitos jeitos possíveis de se criticar o moralismo que existe entre os ditos descontruídos e que não reforçam ideias iguais as dos red pill (como bem colocado por Leo V no vídeo encontrado). Para um site que defende o humanismo (ou pelo menos era essa a minha impressão) deixar um texto desses passar por “ironia” para “criticar” é de uma imensa desumanização de mulheres trabalhadoras, sejam elas putas ou não. E, para lembrança, já que parece algo esquecido, às vezes um texto pode ser criticado por ser ruim mesmo, não sendo preciso dizer que falta inteligência, senso de humor ou ironia à quem criticou.

  10. CONTRADITÓRIOS SEMÂNTICOS & EXISTENCIAIS
    Existe ironia e alazonia (arrogância), como atos de fala (e não só).
    No beAMONGtween de ambas, cabem: desfaçatez, sarcasmo, sutileza, ambiguidade e um desmesurado etc.
    FDP -posto que autointitulado- poderia ser acusado de tudo, menos de irônico.

  11. Dizem que há coisas com que não se brinca. Pois eu sempre achei, e desde muitíssimo novo, que são precisamente essas as coisas com que se deve brincar.

  12. o verdadeiramente irônico é que a cancelação versava sobre o frequentador, não sobre as putas. Não teremos nada o que pensar sobre a condição das masculinidades que compram seus serviços?

  13. Falam sobre consumo. Alguma vez perscrutaram a insigne Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política do Marx? Se já a leram, insto-os a percorrê-la novamente, para que observem que inúmeros desacertos emergem da crença de que o consumo seja o momento preponderante, quando, de facto, é a produção. E, se ainda não a leram, leiam-na para que evitem despejar disparates.

  14. Lucas, eu imagino que você mesmo já pensou bastante “sobre a condição das masculinidades” dos clientes das putas, não?
    Eu imagino também, deixando de lado o caso das mulheres que são clientes de putas e putos, que um homem tem que ter muitos anos de zona para ter realmente o que falar sobre o cliente de puta, falar com propriedade, com conhecimento de causa, e não ficar apenas levantando sentenças moralistas, especulando isso e aquilo, apresesentando novas-velhas verdades e ideais puritanos. Não me parece ser uma tarefa nada fácil, muito pelo contrário. Bom, eu posso estar enganado. Por outro lado, sobre isso, as putas, sim, tenho certeza absoluta, sabem muito bem do que falam.

  15. As ideias que afirmam haver uma certa convergência entre os críticos do identitarismo na extrema-esquerda e os movimentos de direita são típicas da esquerda do capital (ou dos social-democratas, petistas inclusos). Vi conhecidos desse espectro político acharem estranho o texto em que João Bernardo fala sobre pessoas trans (https://passapalavra.info/2022/10/145742/). Acreditaram que ali se reproduzia um argumento das feministas radicais. Quanta bobagem e quanta miséria de reflexão!

    Porque, embora encham a boca para falar de binarismo, esquecem-se de que seu pensamento trabalha de forma binária e, por isso, de forma bastante restrita. O velho maniqueísmo das redes sociais. Portanto, há apenas o lado dessa esquerda do capital ou o dos “redpills”. Ao fazer essas acusações a quem criticou o identitarismo e a cultura do cancelamento, estão trabalhando dessa forma. Essa esquerda do capital também insiste em falar de uma tal “teoria da ferradura”. Grosso modo, alega que a esquerda vai tão à esquerda que acaba indo para o espectro da direita. Não estamos falando aqui do PCO, do bolsonarismo de esquerda, não. Estamos falando de militantes da extrema-esquerda que são chamados de conservadores e acusados de “direitismo”, principalmente pela sua crítica ao identitarismo e ao feminismo atuais, que são aclassistas. E quem faz essas acusações?

    É elucidativo que se incomodem com um poema desses e tentem interpretá-lo de maneira demasiado rigorosa – algo que o poema em si não é.

    Outra coisa: o mais importante – a crítica a essa esquerda puritana e moralista que se voltou contra um gênio da literatura – parece ter sido colocado em segundo plano por esses comentaristas rigorosos. Falam de um “suposto” cancelamento. Bom, se vocês acham que se trata de um “suposto” cancelamento de Kafka, então vocês estão mal-informados. E, não, não se trata de meia-dúzia de pessoas a cancelarem-no. Acima também citei os exemplos de Bukowski e de Vinicius de Moraes, e hoje se torna muito difícil contabilizar o quanto já foram cancelados nas redes sociais e quantos mais ainda serão.

    E, apenas para acrescentar, o verso “puta não sente frio” foi por mim interpretado de outra maneira. Não de uma forma “desumanizada” como se colocou. (E ainda teve comentarista falando em humanismo! Recomendo a leitura de “Sobre a Questão Judaica”, para ver se serve de antídoto para essas concepções humanistas burguesas).

    Vejam bem: há famosas ruas nas cidades – todos o sabem. Bom, sugiro, para aprimorar a ideia de certos comentaristas sobre o assunto que, em dias mais frios, passem nessas ruas de madrugada. Mesmo no frio, possivelmente verão as prostitutas com algum casaco mas com as pernas à mostra. Pois é, foi assim que vi esse verso. “Puta não sente frio”, como outros apontaram, é uma ironia antes de qualquer outra coisa. Pois a obviedade de que puta sente frio não devia nem ser posta em discussão.

    Aproveito para pedir algo a João Bernardo. Você poderia falar um pouco mais de como certos setores do nazi-fascismo não aceitavam e não sabiam interpretar a ironia? Li, há um tempo, um Flagrante Delito sobre Charlie Hebdo em que você comentava sobre esse assunto. Uma pena que nunca mais o achei. Mas, bom, se puder tratar disso, Bernardo, ficaria agradecido.

  16. Francisco Gonzaga,

    Quem disse que os SS eram incapazes de ironia foi Joseph Billig em L’Hitlérisme et le Système Concentrationnaire, Paris: Presses Universitaires de France, 2000, pág. 232. Eu cito-o no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022) vol. I, pág. 361. Billig foi um historiador muito interessante, deliberadamente esquecido porque procede a várias observações e destaca certos factos que não se encaixam nos lugares-comuns da historiografia usual do fascismo. Nomeadamente, embora ele fosse judeu, o que escreveu acerca dos campos de concentração e de extermínio no Terceiro Reich raramente é citado e usado. Léon Degrelle, chefe do fascismo belga, ou melhor, valão, e que chegou aos mais altos postos nas Waffen-SS, pode parecer uma excepção, mas é um enorme humor que se encontra nos seus livros, e a ironia é algo muito diferente. O humor provoca o riso e a ironia provoca o sorriso, um é exterior e a outra é interior. Escrevi ontem num comentário às Teses a favor das putas: «Por que é que o esquerdista detesta a ironia? A ironia é a terra que treme, o tapete que se puxa debaixo dos pés, a dúvida que se instala». Se você substituir esquerdista por fascista tem a resposta à sua pergunta. É impossível considerar-se detentor da solução obrigatória dos problemas da humanidade, qualquer que seja essa solução, e ao mesmo tempo manusear a dúvida. Fanatismo e ironia são inconciliáveis.

    Aliás, o que se pode dizer dos identitários, creio que sem excepção, é que são desprovidos não só de ironia, mas mesmo de qualquer humor. E isto apesar de provocarem uma enorme vontade de rir a quem os vê de fora. Moralistas e puritanos, eles são os Tartufos da nossa época e, tal como os padres de outros séculos, usam e abusam da excomunhão, a que chamam cancelamento.

    O que sinceramente me espanta é que tanta gente se preocupe em não ser cancelada. Antes de mais, os identitários ocupam uma percentagem ínfima da sociedade e a sua presença só é hegemónica em alguns pequenos meios, como nos estudos sociais e no jornalismo. Mas veja. Eu nasci e iniciei a minha actividade política num país fascista, em que os cancelamentos não eram essas coisas ridículas nas redes sociais. O cancelamento era a censura obrigatória que impedia toda e qualquer expressão pública de insatisfação social e política. Quando nos queríamos exprimir, recorríamos a copiógrafos ou, mais raramente, imprensas manuais, o que exigia a difícil montagem de uma infra-estrutura clandestina. E a distribuição dos panfletos assim impressos era igualmente clandestina. Tudo isto implicava enormes riscos, podíamos ser presos — e, mais tarde ou mais cedo, eram raros os que não acabavam por ser presos, porque os espiões e informadores da polícia política estavam presentes por todos o lado. Ora, as prisões eram um cancelamento ainda mais drástico e implicavam vários incómodos suplementares. Se se tratasse de estudantes, podiam ser expulsos, e muitos de nós sofreram expulsões, por vezes afastados vários anos de todas as universidades. Tantas vidas canceladas! Perante isto, o que são os cancelamentos proclamados nas redes sociais por meninos e meninas cuja coragem não ultrapassa a internet?

    Por isso eu recomendo às pessoas normais — e é deliberadamente que uso esta palavra ostracizada — recomendo às pessoas normais que se cancelem a elas mesmas. Terminei o último ensaio que publiquei no Passa Palavra, O deserto e os monstros, dizendo que «viver de costas voltadas para os meios ecológicos e identitários, ou à margem desses meios, sem nunca colaborar com eles, não é apenas uma condição de sanidade intelectual. É ainda uma exigência de acuidade política».

  17. João Bernardo, atualmente, para mim, está muito difícil ter esperança. Na verdade nos últimos 20 anos a coisa piorou demais. Eu tinha muito mais esperança durante os anos 90 vendo as greves na educação, nos bancos, e sobretudo as ações do MST.
    Você brilhantemente sabe que o Orwell, no 1984, escreveu que a razão para a esperança dentro daquela sociedade concentracionária residia no silêncio do proletariado daquela mesma sociedade. No entanto, nestes tempos, onde praticamente ninguém arrisca dizer do quê é feito o silêncio do proletariado – nem se ele fica em silêncio; ao dormir, quem sabe, e então talvez nos valesse de alguma coisa saber da natureza dos sonhos – está bastante difícil, me parece, saber se ainda há alguma razão para ter esperança. Porém, hoje em dia, toda vez que num site, ou aplicativo, de encontros eu vejo uma mulher se descrevendo como pessoa normal eu volto a ter alguma esperança, mesmo que breve e pequena, ali eu encontro, com grande alegria, alguma razão para ter esperança.

  18. O socialismo é o capitalismo sem os seus defeitos, disse Engels. Mas o materialismo dialético dessa perspectiva parece ter morrido em grande parte da esquerda, que preferiu a relação com a metafísica dos efeitos à historicidade das causas. Às definições últimas da metafísica de dois mundos do platonismo Nietzsche respondeu escrevendo que “só é definível aquilo que não tem história”. Mas o inequívoco, unívoco e uníssono inferno identitário parece ser das coisas mais bem definidas, puras e distintas de tudo, da extrema-direita à extrema-esquerda. O desprezo pelo caráter social das formas identitárias conduz o reconhecimento das coisas sob uma literalidade possível apenas expurgada de sua condição transitória e ambígua. Triste.

    A ironia é uma figura de linguagem simultaneamente dependente de duas coisas: da literalidade e do contexto; sem este último sobra o nível literal do enunciado. Portanto é relativa, não pertence às coisas, mas ao discurso. Joga com o sentido dado para ridicularizá-lo, “estranhá-lo”. Se o contexto entre emissor e receptor é de esquerda, o efeito irônico sobre uma literalidade propositalmente machista e misógina é hegemônico; se é de direita, a interpretação literal se impõe. Portanto, tivesse a intenção sido literal, o tiro teria saído pela culatra na medida em que submeteu-se a uma publicação de esquerda. Querer encontrar no texto valores objetivos e expressos do ideário redpill é tentativa estéril e arriscada de adivinhação das intenções do autor.

  19. A puta, a vagabunda, a piriguete, cada uma delas, uma mulher. Talvez tudo se resuma à máxima dita por outra mulher: “nem quem ganhou vai ganhar, nem quem perdeu vai perder. Vai todo mundo perder”. O que me leva a pensar que a mulher, mesmo ganhando, perdeu. Basta lembrar as ofensas dirigidas aos oponentes: “Filho da puta!” “Filho da mãe!” “Puta que o pariu!”

    Ambas expressões têm o mesmo valor, pois são contra a mulher.

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