Um professor universitário

O título deste texto ecoa outros dois: de Paulo Eduardo Arantes, “Esquerda e direita no espelho das ONGs”, e, o outro, de Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luiza Meneses, “Esquerda e direita nos espelhos de Brasília”. É com esses textos em mente que penso em construir uma análise sobre os discursos, posições e ações que ocorrem no contexto da greve de docentes do ensino superior que completa seu primeiro mês.

Como já discuti em outros textos para este site (ver aqui e aqui), nessa greve – diferentemente de outras da categoria – um fosso se abriu no campo da “esquerda”. Um grupo aderiu à greve prontamente, reconhecendo como um momento chave para construir um movimento reivindicando melhores condições de trabalho, de salário e uma recomposição orçamentária para o ensino. Outro, no entanto, também se dizendo de esquerda, se colocou contrário à greve. Assim, se entrincheirou na defesa do governo federal. Argumentam que uma ação paredista irá desestabilizar o governo e – tal qual foi 2013 – resultaria num novo governo de extrema-direita.

Fura-greves sempre existiram em greves docentes. Geralmente docentes posicionados à direita do espectro político, ou mesmo aqueles que se dizem “apartidários”, se sentiam confortáveis para continuarem suas aulas como se nada estivesse acontecendo. Entretanto, um contexto como o atual parece ser uma novidade: um movimento “de esquerda” fura-greve. Na verdade, novidade em parte, já que a esquerda docente das Instituições de Ensino Superior parece mimetizar muito bem a esquerda da ordem – ou melhor, não se diferencia dela.

A conjuntura parece entrar numa casa de espelhos, onde o que é real e o que é reflexo invertido começam a se confundir. Parece que a contemporânea situação política brasileira produziu uma troca de sinais radicais. A esquerda, defensora da ordem; a direita, disruptiva. A direita que destrói os símbolos do poder; a esquerda que vigia e pune meliantes-terroristas. A esquerda, contra a greve, considera a greve, um dispositivo da direita.

O que impede a adesão à greve é, como já discuti anteriormente, a concepção que a greve resultará num enfraquecimento do governo Lula 3.0 e abrirá espaço para a extrema-direita. Chegam a circular até mesmo mensagens em tons conspiracionistas sobre infiltrados que teriam como objetivo a desestabilização da ordem democrática recém-reconstruída depois do governo Bolsonaro. Teorias da conspiração foram, com bem se sabe, narrativas mobilizadas pelos “bolsonaristas” para manterem suas bases excitadas. A mamadeira de piroca, por exemplo, foi uma das teorias usadas. Atribuir o movimento grevista às forças infiltradas tem a mesma estrutura lógica do olavismo-bolsonarista, isto é, um péssimo mapeamento cognitivo (na formulação de Fredric Jameson sobre as teorias da conspiração).

Outro argumento aparece recorrentemente entre os docentes. “Greve é um direito individual”, que parece ecoar um hiperindividualismo que vimos entre os bolsonaristas. Em várias ocasiões, os bolsonaristas gritavam “eu autorizo, presidente” – como se um golpe militar pudesse ser autorizado por uma conjugação em primeira pessoa do singular. Do mesmo modo, o que parece estar em jogo no contexto da greve, em forma de um reflexo, é o discurso que se “autoriza ou não uma greve”. A mediação política construída em espaço assemblear não tem validade para essa racionalidade. A política conjugada em primeira pessoa do singular, agora, aparece na boca de docentes anti-greve “de esquerda”.

Ora, para além da teoria conspiratória e para além da incorporação da gramática individual do eu, o que essa posição revela é um horizonte político de pacificação. Deixemos claro: mais uma posição de direita que, na casa de espelhos que nos encontramos, aparece agora à esquerda. Uma pretensa esquerda “ordeira”, “anti-greves”, que quer completar a pacificação da sociedade – o que, para bom leitor, significa abdicar da energia da indignação e da revolta em nome das instituições.

Esse é o efeito do ofuscamento produzido pelos anos de bolsonarismo (que não começaram em 2018 e não terminaram em 2023): qualquer sinal de uma certa concertação política já oferece uma tranquilidade. E esse ofuscamento faz com que se ignore as sucessivas decisões políticas de um governo de “centro-direita” (como descreveu José Dirceu) e se abandone as pautas que, até anteontem, eram de “esquerda”. O governo Lula 3 já produz uma acomodação vergonhosa entre os parlamentares do centrão, mantendo parcela significativa do orçamento público destinado para as emendas parlamentares; entre os militares acenando uma fatia do orçamento cada vez maior; Lula, que apareceu como uma voz sensata se opondo ao genocídio na Palestina, já considera a compra de blindados de Israel no valor de 1 bilhão de reais. Haddad, atual ministro da fazenda, reza a mesma cartilha liberal das contas públicas que a direita e vocifera contra os professores: “o orçamento está fechado” – aparentemente, só está fechado para as demandas do ensino, pois para o centrão, para o exército e para as polícias federais (que receberam aumentos consideráveis), se comportam ajustes consideráveis.

Seja como for, se por conspiração, individualismo, pacificação ou capitulação, o que parece estar em curso é um movimento de adesão ao conservadorismo à esquerda. Que seja a classe de professores universitários onde isso aparece dessa maneira não é surpresa. Contudo, esse processo não é exclusividade dessa categoria e começa muito antes da atual greve – e pode remeter a postura da esquerda, por exemplo, sobre os breques dos apps, as greves selvagens e, até mesmo, chegar nas insurreições de junho de 2013. De toda forma, essa parece ser a derradeira vitória da extrema-direita: a esquerda que pensa e age com os marcos da direita. Essa é nossa miséria política que, para sair dela, não será nada fácil.

Ilustram o artigo obras de Anish Kapoor (1954-).

2 COMENTÁRIOS

  1. Este movimento de conservadorismo à esquerda existe há muito tempo. Só que com a ascensão do bolsonarismo ele se intensificou e está mesmo se tornando sinal de “maturidade política”.

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