Por Isadora de Andrade Guerreiro

Numa favela já bastante antiga e consolidada de São Paulo, mas não muito grande, em plena pandemia, durante a madrugada, a quadra esportiva é tomada por construtores que começam rapidamente a quebrar o chão para fazer fundações. Não são famílias desesperadas após mais um despejo por falta de pagamento de aluguel, em meio à crise instalada. A quadra não estava abandonada, muito pelo contrário: uma forte associação esportiva dos moradores, liderada por uma jovem mulher, a mantinha em funcionamento com cursos e espaço aberto principalmente para crianças, adolescentes e idosos, que usavam equipamentos de academia ao ar livre que ali se encontravam, em bom estado. Imediatamente a liderança da associação tenta reverter o quadro, e não consegue.

Hoje, a quadra está totalmente rodeada por edifícios de 4 a 5 andares, com camarotes, comércio e algumas unidades de aluguel residencial viradas para fora da quadra. O espaço foi tomado pelo baile funk, numa articulação de empresários locais com os de outra favela da região. A reserva dos camarotes é caríssima e disputada. Durante a noite, nos contam que os grupos pedem vários baldes com garrafas de whisky, cada um a mais de R$ 400. São disponibilizadas “mulheres troféu” na conta, pagas para circularem ao lado dos pagantes – e nada mais, o que importa é a ostentação. Muito dinheiro circula ali, e muitas pessoas de toda a região.

Não é mais uma comunidade fechada nos seus expedientes de sobrevivência e lazer comunitários, conquistados com lutas coletivas e suados financiamentos de mandatos legislativos e do terceiro setor. As calçadas, durante e após a pandemia, estão sendo tomadas por pequenos edifícios de dois ou três andares super estreitos, que acomodam lojas para alugar. A maioria dos novos comerciantes não é morador da favela – não se trata mais da mercearia na própria garagem.

Nem dá mais para as crianças pensarem em colocar algo na rua para fazer de gol. Já há alguns anos, as estreitas ruas são disputadas por carros que não tem onde estacionar, já que, quando as casas foram construídas, nem se pensava na possibilidade de ter um carro. Muitos espaços de estacionamento na rua são pagos e fechados com correntes. Foram instaladas pelos moradores nas fachadas das suas casas barras de ferro apontadas para a rua, na tentativa de impedir que os carros estacionem – algumas delas, retiráveis com cadeado, reservam vagas. Outras soluções são enormes vasos de plantas em tambores de máquinas de lavar roupa, colocados ao longo do meio-fio. São mais bonitos.

Mais à frente, um enorme barranco com risco de desabamento. Não era uma área de risco antes da pandemia. No seu topo, havia uma praça muito movimentada, utilizada também para os saraus de rap que forjaram a identidade da geração anterior. Durante a pandemia, também do dia para a noite, começaram a retirar terra do barranco, tentando abrir espaço para o que seria um grande prédio feito em consórcio entre pessoas da comunidade e também de fora. Dizem que foram pagos cerca de R$ 120 mil para a Polícia Ambiental se omitir. Depois de muitos caminhões de terra, o dinheiro e a sociedade acabaram, não seria possível construir o muro de arrimo necessário para sustentar aquilo. Abandonaram, e a comunidade perdeu a praça e ganhou uma nova área de risco.

A grande área coberta onde as crianças e adolescentes da geração anterior se formaram com cursos variados, da prefeitura e gerenciada por uma ONG, foi depredada durante a pandemia. Uns diziam que era para tomar posse com mais construções, pois é uma área bem localizada. Outros diziam que era para pegar material para a nova ocupação que se fazia no terreno ao lado, durante a pandemia – por pessoas que não conseguiam mais pagar o aluguel, mas também por muitas outras que passaram a negociar os terrenos. Um misto necessário para ter apoio de estudantes, partidos e coletivos e, afinal, uma articulação que conseguiu impedir sua reintegração de posse. Hoje, a área tem um mercado imobiliário aquecido, mas muita precariedade – numa tarde, a UBS local recolheu uma quantidade de escorpiões suficiente para encher uma garrafa PET. Pessoas que ocuparam para fugir do aluguel se misturam a uma quantidade cada vez maior de inquilinos de cômodos minúsculos – são um novo grupo social nas favelas, que tem cada vez mais moradores temporários, sem nenhum vínculo com o território.

Visito um prédio em construção, no miolo da parte consolidada da favela. Boa construção, rápida. O investidor é o dono da pizzaria no final da rua, que cresceu muito na pandemia com delivery pelo IFood – diz ele que os consumidores não sabiam que seu estabelecimento é na favela, o que os afastaria. Agora já está abrindo uma filial na outra grande favela da região, essa já urbanizada, mais valorizada. E constrói prédios para alugar, mas não entende nada disso. Contratou para tanto um empreiteiro, que não mora nem nunca morou ali, que foi para o ramo como diversificação do seu negócio original. Começou com TV a Cabo nesta favela e depois foi para a provisão de Internet. Primeiramente com monopólio local, mas depois “dos debates” que transformaram o ramo em “mercado aberto”, achou que dava muito trabalho ter que disputar os consumidores. Partiu para a construção de prédios para locação residencial. São bons os prédios dele. Força de trabalho toda contratada “de fora” – “os daqui não querem trabalhar”.

Fomos visitar seu primeiro prédio construído naquela favela. Uma viela bem estreita, sem saída. No final dela, o prédio, seis andares. Uma unidade por andar, com varanda. No topo, um grande salão, janelões enormes, vista sensacional. Só ele tem a chave, e diz que ali ele não aluga. Ele empresta para os amigos. Tem uma banheira de hidromassagem, diz que é seu SPA particular. E mostra no celular um clip de um rapper famoso na região, usando a tal banheira rodeado de mulheres – tipo ostentação. Sensacional. Descemos, viela escura, favela.

Enquanto ele corta o cabelo, conversamos sobre o mercado imobiliário local. Pergunto se ele não vai investir na frente de expansão imobiliária da quadra de esportes – agora, “do funk”. Diz que não, que ali é muito inseguro o investimento, por ser área de fronteira, nova, tomada. Pergunto então por que estão investindo tanto ali, são prédios enormes. O cabeleireiro é jovem, morador dali, e corta o cabelo e a entrevista: “Porque eles não têm apenas dinheiro. Eles podem”.

Pois então, lembro da conversa com a liderança da associação de esportes que perdeu a quadra. Ela disse que foi recorrer com os “irmãos” do PCC de hierarquia superior (a “Torre”), que não fizeram nada a respeito. Disse que “a Torre não sabe nada do que está se passando aqui. Diz que não interfere nos negócios dos irmãos”. “Irmãos” esses que promoveram a tal “abertura de mercado”, através de “debates”, eles mesmos diversificando seus negócios com a produção imobiliária.

Mas a promoção imobiliária não é apenas um negócio a mais. É conquista de espaço, é alteração de comportamentos, do cotidiano, da forma da comunidade se relacionar entre si e com o território. Todos os espaços comuns da comunidade estão sendo perdidos; crianças, mulheres e idosos(as) são quem perde mais, e vão ficando cada vez mais em casa, com medo. Os relatos se repetem: “não posso mais ir na praça, é perigoso”, “eu ia na quadrinha, não posso mais”, “os brinquedos foram quebrados, ninguém pode consertar”, “as crianças brincavam na rua, mas não deixo mais meus filhos brincarem, precisam ficar em casa, agora tenho que cuidar”, “tinha forró, todo mundo ia, mas agora é só o funk” – não deixo de pensar que o forró vem do “for-all”, e agora só os adolescentes tem lugar de lazer, mesmo assim (bem) pago: dizem que precisam de no mínimo R$ 200 para ir no baile. O campo grande de futebol continua intacto – esse, ninguém mexe. Parece haver um masculinização dos espaços comuns, e a disputa por eles faz parte desse processo de afirmação social, plasmada em grandes edifícios.

Ficamos sabendo que a tomada de novas áreas para a promoção imobiliária é disputada entre as biqueiras locais. Quem tem mais, quem constrói mais, ganha mais poder. Lembrei-me de San Gimignano, uma cidade medieval italiana, que tem algumas torres muito altas que se sobressaem na paisagem de casas baixas. Foram fruto da disputa entre as famílias nobres locais: quem construía mais alto, demonstrava mais poder. A relação entre riqueza e poder passa pela produção do espaço, inevitavelmente. Não seria diferente por aqui. Na comunidade revirada, a associação de moradores perde força e legitimidade, não tem voz para barrar mais nada. Onde está a comunidade? Cada vez mais inquilina, não tem mais relação com as lutas pelo território. Não acham que nada mais precisa mudar, e a conquista de coisas virá pelo consumo, e não pela luta política.

No entanto, o córrego enche em dias de chuva. O lixo se amontoa em montanhas (literalmente) ao lado da frente de expansão imobiliária: o caminhão vai, mas não consegue passar toda semana, por conta dos carros estacionados na esquina que impedem sua passagem. Encontramos ali moradores, toda terça-feira, quando o caminhão chega, brigando com quem estacionou os carros, buscando seus donos, gerenciando o trânsito, um caos. Converso com uma liderança, camisa do mandato da vereadora do PT local. “Você faz isso toda semana?” “Sim, ninguém respeita, não tem jeito”. Marcamos mutirão para pintar faixas de proibido estacionar na esquina. No dia do mutirão, aparecem lideranças com seus celulares: enquanto pintamos o chão, elas fazem vídeos mostrando a ação nas suas redes. Há algo de produtivo no caminhão não passar. A tinta no chão não durou muito.

Mas o lixo é implacável. Ele se acumula rapidamente, vai tomando a rua, chega uma hora que não dá mais para passar. Atrapalha as vans escolares, que não conseguem mais pegar as crianças do outro lado da favela. Ao lado, o prédio novo é pintado. Muitas moscas, vez ou outra, ratos. Lembro-me de Chico Buarque… em “Ode aos Ratos”, os ratos parecem simbolizar a verdade oculta por detrás da riqueza da cidade:

Saqueador da metrópole

Tenaz roedor

De toda esperança

Estuporador da ilusão

Mais um final de semana, mais um baile. A liderança da associação de esportes acabou investindo também, para não perder espaço de disputa. Quando enfrentou os caras tomando a quadra, teve que ouvir que eles só falariam com o marido dela. Ela é separada. Agora está à frente do negócio, com a mãe e as filhas, que cuida sozinha. Sua vida está mudando, está fazendo cursos para se atualizar, quer sair dali. Disse que não se mete mais com a associação de moradores: durante a pandemia, viu muita coisa que não gostou na entrega de cestas básicas. Arranjou inimizades, que parecem estar generalizadas por toda parte.

Enquanto os bailes acontecem, as reuniões do Fórum de Entidades não conseguem ser nem marcadas. Ninguém responde. Quando há reunião, poucos aparecem. Parece que essa situação começou a acontecer depois da pandemia… quando muitos olhos se fecharam.

5 COMENTÁRIOS

  1. apropriação predatória do espaço comum & privatização truculenta de temporalidades coletivas embasam o império da desfaçatez no qual o fascismo se torna um chorume redbrown multimídia

  2. Tem algo que me incomoda nos excelentes relatos das mudanças na produção do espaço urbano apresentados por Isadora: às vezes, como neste artigo, ela os redige passando a impressão a impressão de que é tudo novo, absolutamente novo. Um “depois” que inova radicalmente, praticamente ex nihilo, frente a um “antes”. Como se nada disso houvesse acontecido antes, ou como se não houvesse paralelos, continuidades, ziguezagues, desenvolvimentos, vaivéns, metamorfoses a partir do que se via antes. Pode ser por questão de espaço, mas a impressão permanece.

    Na minha leitura, tudo isso que Isadora apresenta aqui na coluna — neste texto e em outros bons artigos anteriores — são desenvolvimentos de tendências anteriores. Nas situações específicas deste artigo, o eixo da questão apresentada só depende da pandemia em detalhes circunstanciais.

    Me explico.

    Veja-se o caso do desenraizamento territorial, de que a inquilinização dos bairros populares é sua forma mais recente. O desenraizamento territorial, assim como a própria inquilinização, é muito anterior à pandemia. Pouco importa o que diz a recente moda de glorificação identitária da “favela” e da “periferia”; nesta moda, tal como na “África” de certos setores do movimento negro, é de uma “favela” e de uma “periferia” edênicas, idealizadas, mesmo utópicas que se está a falar.

    Mais de vinte anos atrás, precisei lidar com um campo muito interessante dos estudos urbanos estabelecido nos anos 1970 e 1980, que lidava com um problema bem parecidos, mas em outro contexto. Estou pensando, por exemplo, em escritos de observação empírica escritos por Ralf Engelhardt, Maria de Azevedo Brandão, Peter Ward, Hans Peter Pfeiffer e outros que, em crítica pesada às observações de John Turner sobre autoconstrução na América Latina, demonstravam que o desenvolvimento do bairro popular não implicava melhoria da qualidade de vida de seus moradores, que migravam incessantemente entre favelas em busca de imóveis compatíveis com seus salários e rendas enquanto o bairro se desenvolvia.

    Estes estudiosos examinavam, num resumo extremamente simplificado, o seguinte “ciclo”:

    (1) Um terreno de grandes proporções numa periferia urbana é ocupado por numerosas famílias, pelas mais diversas razões próprias àquele período do desenvolvimento urbano (falta de acesso à terra, terrenos muito caros, aluguel muito caro, etc.);

    (2) A “primeira geração” meio que “desbravava” o lugar, construindo as primeiras casas com o que tinha à mão (madeira, palha, pedra, taipa, às vezes alvenaria, etc.);

    (3) Esta “primeira geração” lutava pela implementação de serviços públicos (pavimentação, energia elétrica, saneamento básico, iluminação, transporte, posto de saúde, escola, creche, etc.);

    (4) À medida que os serviços públicos iam sendo conquistados, isto valorizava a terra em volta, e também os alugueis;

    (5)A valorização da terra pela chegada dos serviços públicos deslanchava uma “migração” de parte desta “primeira geração”, que saía dos imóveis alugados em busca de outros mais baratos, ou vendia suas casas ou terrenos e partia, mesmo contra sua própria vontade, para “desbravar” outros terrenos, porque com a venda se conseguia um dinheiro a mais do que o que se gastara inicialmente com o barraco, mas era dificílimo conseguir terreno ou casas prontas em melhores condições que as do barraco;

    (6) A “segunda geração” se beneficiava do que a “primeira geração” lhes havia legado em termos de infraestruturas urbanísticas, e concentrava-se em melhorar a própria casa (piso, pintura interna, pintura externa, etc.) enquanto outros da “primeira geração” seguiam lutando pelas infraestruturas eventualmente faltantes;

    (7) Esta “segunda geração” já era composta por pessoas/famílias com renda per capita ligeiramente mais alta que os da “primeira geração”, e quando vendia suas casas, vendia-as por valor bem maior que o da compra, dados os investimentos públicos no entorno e os seus próprios investimentos no imóvel;

    (8) A “terceira geração” seguia o ciclo, às vezes ampliando a casa (para filhos, parentes recém-chegados do campo, etc.), às vezes melhorando-a ainda mais, no que era seguida por outros da “segunda” e da “primeira” gerações que haviam permanecido no novo bairro;

    (9) E assim seguia a sucessão de “gerações”, até que se chegava a um bairro popular bastante consolidado, com infraestruturas urbanas, postos de saúde, escolas, transporte, etc., ainda que de qualidade questionável, com ambiente pouco salubre, com áreas de risco, etc.;

    (10) Esta sucessão de “gerações” consolidava um mercado de terras que funcionava complementarmente ao mercado de terras dito “formal” (na falta de palavra melhor), que até hoje capitalistas atuantes no mercado de terras dito “formal” tentam capturar para os circuitos ditos “formais” da produção do espaço urbano por meio das políticas de regularização fundiária;

    (11)Nada disso significava, por si só, melhoria nos salários ou nas rendas dos moradores dos bairros populares assim construídos, que mudavam-se de bairro em bairro sempre em busca de lugares com terra mais barata, ou aluguel compatível com seus salários ou rendas.

    (Capítulo de política urbana na Constituição, Estatuto da Cidade, sistema nacional de habitação de interesse social, MCMV, tudo isso eu leio, no longo prazo medido em décadas, na ótica da tentativa de captura desse mercado de terras complementar ao dito “formal”. Mistura de mobilização social com correção de distorções de mercado e com disputa intracapitalista. Mas isso é assunto para outro dia, quem sabe.)

    O relato etnográfico de Isadora neste artigo, na minha leitura, atualiza a literatura que indiquei, evidenciando não uma “ruptura” entre a produção do espaço nas favelas antes e depois da pandemia, mas uma continuidade, um desenvolvimento dessas dinâmicas anteriores. O inquilino de cubículos é a continuidade e desenvolvimento dos antigos inquilinos de quartos. O inquilino de lajes e fundos com menor valor locativo é a permanência, sob outra forma, dos que no passado migravam de favela em favela, construindo um barraco hoje para depois vendê-lo quando o orçamento apertava.

    Vou esticar mais o assunto citando dois relatos de 1989, enriquecidos por links para mapas dos bairros citados, para ilustrar o que digo:

    “A história de mobilidade dos moradores é impressionante. […] O exemplo de uma jovem família do Coqueirinho é representativo para uma grande parte da população [do Coqueirinho]. Após o seu casamento em 1980, o casal morou em diversos bairros: Cidade Nova, Fazenda Coutos, IAPI, Beiru, Dias D’Ávila, Beiru (de novo), Coqueirinho. A família viveu a maior parte do tempo em favelas e um curto período em Dias D’Ávila.” (ENGELHARDT, Ralf. Consolidação ou expulsão: um estudo de caso na periferia de Salvador. Cadernos do CEAS, nº 119, jan./fev. 1989, p. 28)

    “A família de João é um exemplo de migrantes. O casal e os três filhos pequenos moraram a partir de 1983 na favela do Coqueirinho, numa casa de taipa que desde o início de 1985 também tinha água e luz. O terreno, de 55m2, não se situava na rua, mas sim atrás de uma casa. Quando se deu a invasão das Malvinas, a família vendeu o seu terreno no Coqueirinho por US$ 300 ao vizinho e com o dinheiro construiu lá nas Malvinas um barraco. O vozinho tomou um empréstimo para juntar a soma, derrubou o barraco e agora utiliza o terreno para cultivar hortaliças e criar galinhas. O novo barraco de João não tem água nem luz, o caminho até a parada de ônibus é mais longo e João não sabe se vai poder ficar nessa favela. A situação da família piorou, portanto.” (Idem, pp. 30-31)

    A inquilinização, muito bem analisada no artigo indicado por Isadora, assim como a migração e o desenraizamento territorial, não são novidades nesses ciclos mais antigos. Aliás, é tema central na menor parte desta literatura que mencionei, e tema marginal na maior parte dela. Se vender o barraco é necessário para sobreviver, conseguindo um pouco mais do que se gastou com a construção do barraco, vende-se; assim se consegue comprar outro barraco em outro canto da cidade, e quem sabe também ter um dinheiro sobrando. Se mudar de bairro para outro com aluguel mais barato é necessário para sobreviver, muda-se, mesmo que seja em condições piores; assim se consegue, novamente, ter salário sobrando. Tudo isso são “estratégias de sobrevivência” adequadas ao tempo e ao lugar; hoje, quando as precárias condições de vida andam lado a lado com a generalização do endividamento pessoal em trocentas prestações a perder de vista, qualquer centavo ajuda. Porque o buraco, como sempre, é mais embaixo.

    Na produção capitalista dos bairros populares, tomemos agora a figura do do dono da pizzaria do relato de Isadora, entendida enquanto um capitalista local. Estes capitalistas locais, pequenos comerciantes em sua maioria, não são tão estranhos assim à formação dos bairros populares, tampouco à inquilinização desses bairros. No passado, a criação dos novos bairros por ocupação era vista como “oportunidade” por esses pequenos capitalistas, ou mesmo por trabalhadores com alguma poupança (digamos, um FGTS ou uma verba rescisória no caso brasileiro) que pretendiam “tentar a sorte” (hoje alguém diria “empreender”); iam todos eles “tentar a sorte” com mercadinhos, padarias, lanchonetes, etc., e depois, tendo acumulado algum capital em poucos anos, começavam a investir em casas para alugar, construíam pequenos prédios até o limite permitido sem elevadores, etc. Tal como o dono da pizzaria, não entendiam lhufas de construção nem se metiam na obra: chamavam um mestre de obras amigo para tocar a construção, e só queriam saber do resultado. A estes pequenos capitalistas se somavam uns poucos aventureiros, a quem a mídia e mesmo lideranças de movimentos sociais daqueles tempos chamavam de “invasores profissionais”, que tentavam conseguir vários lotes em várias favelas recém-iniciadas, inventando uma forma um tanto atravessada de “acumulação primitiva” de capital fundiário. Não somente foi isso o que vi acontecer à minha volta nos anos 1980 e 1990 enquanto crescia, como também é o que a mesma literatura que indiquei (e outra mais específica) apresenta, e o que voltei a ver, anos depois, atuando junto a movimentos sociais de luta por moradia nos anos 2000 e 2010.

    A chegada dos novos capitalistas “de fora”, aliás, é coisa que já se via no boom econômico de 2007-2014. Na época, empresas de pesquisa de mercado começaram a olhar para o que então se chamava de “nova classe média” como público consumidor, com os resultados que já se sabe. Data daí também, ou mesmo de alguns anos antes, a proliferação de carros novos e seminovos nos bairros populares, ocupando as calçadas e meios-fios pela falta de garagens nas casas construídas por gente que nem pensava vir algum dia a tê-los; enquanto escrevo essas linhas, olho para um terreno baldio onde brinquei na infância, transformado em estacionamento há uns oito ou dez anos, sempre lotado de mensalistas, e me pergunto se o que se vê em São Paulo é assim tão novo quanto parece.

    A tipologia que Kristine Stiphany apresentou para Heliópolis e São Francisco, em São Paulo, além de ter aplicabilidade mais ampla, remete a fenômenos bem mais antigos do que parece. Isso o que venho rememorando, aliás, é história tão velha quanto, além da literatura já citada, os “dois circuitos da economia” (Milton Santos), a distinção entre circuitos da mais-valia absoluta e da mais-valia relativa (João Bernardo), etc.

    O diferencial deste momento que vivemos, e nisto concordo com Isadora, é o dinheiro do crime organizado ser usado como capital para a produção do espaço urbano. É os “debates” decidirem os rumos do mercado de terras, e do mercado em geral. Mas olhe lá, devagar com o andor, porque não é em todo lugar que se consegue ver direcionamento de dinheiro do crime organizado para investimentos imobiliários em bairros populares. Isto parece ser o modelo de negócios de algumas organizações em alguns lugares, mas não o de todas. Modelo made in Sâo Paulo e Rio de Janeiro for export, mas é isso aí, e só isso. Só se compara o grau de organização e o volume de capital acumulado pelo PCC ou pelo CV, por exemplo, com grupos como o Comando da Paz (CP), o Bonde do Maluco (BDM) e a Katiara, se o que se quer é mostrar como e por quê CP, BDM e Katiara são “sócios menores”, “irmãos mais novos” em comparação com o PCC e o CV. Sequer as formas de atuação se comunicam automaticamente por serem, todos, parte do crime organizado. Mesmo o modelo de extorsão do comércio local praticado pelo CV, por exemplo, só se torna central aos negócios quando o próprio CV começa a chegar em certos territórios. Há “modelos” e “modelos”, cada qual com implicações diferentes na produção do espaço.

    Ficarei só no caso do desenraizamento/inquilinização. Haveria mais a dizer, mas a exploração nossa de cada dia não me permite mais roubar-lhe tempo. Acho de fato importante e necessário seguir analisando o que se passa na produção do espaço nos bairros populares. Isadora está correta em sua insistência neste ponto. É só essa impressão de que certos desenvolvimentos são “novos”, quase que sem história, que continua me incomodando. Mas ora bem, se o incômodo impulsiona o diálogo, que seja, então. Por mais incômodos!

    Uma última coisa, antes que me esqueça: Isadora que me desculpe, mas forró vir de “for-all” é falsa etimologia, aliás já bem discutida na literatura sobre o assunto (para artigos de divulgação dessa literatura, ver aqui, aqui e aqui). Tem referências a “forró” já no final do século XIX e início do século XX em jornais, contos e romances. A etimologia mais apropriada vem de “forrobodó”, que por sua vez vem de “forbodó”, um ritmo e dança que se diz ser originário do norte de Portugal e da Galiza, ritmo e dança que aliás se diz ter alguma relação com o faux-bourdon/”falso bordão”, uma técnica de harmonização.

  3. Quando comecei a rolar para a seção de comentários, tropecei na poça do Ulisses para cair de cabeça na profunda represa do Manolo.
    Que aula. Muito obrigado.

  4. Caro Manolo,

    Mais uma vez tenho a honra de te incomodar. Agradeço pelas trocas, sempre bem vindas – aprendi muito sobre a origem do forró. Quem sabe um dia dançamos juntos, espero que em Salvador, e não nessas terras cinzas paulistanas!

    Mas vamos à questão central da sua crítica: o que haveria de novidade nisso tudo?

    Concordo que muitos elementos do relato são desenvolvimentos de dinâmicas anteriormente existentes, algumas estruturais dos bairros populares. A existência de aluguel e de comércio, por exemplo. A questão dos carros vinda do boom econômico lulista eu inclusive disse no texto que era uma dinâmica de “já há alguns anos”. Não indiquei exatamente o período porque quis dar ao texto uma forma mais livre, mas era disso mesmo que eu estava falando. Estamos de acordo nisso, e agradeço você ter complementado o texto com os dados bibliográficos – tom que eu, deliberadamente, não queria dar desta vez.

    A questão, Manolo, é que os elementos de pré-existência que você dá – nos quais estou de acordo – estão ligados às tais “estratégias de sobrevivência”. Essa abordagem olha, portanto, para o bairro popular como o espaço, principalmente, de reprodução social. Ainda que tais expedientes mobilizem dinâmicas comerciais e rentistas, tem um circuito de circulação limitado ao consumo vinculado à sobrevivência imediata. Minha questão é que temos que olhar estes espaços de outro ponto de vista: colocá-los dentro dos circuitos de produção do urbano e, portanto, de reprodução de capital. Não indiretamente como rebaixamento do custo da força de trabalho, mas diretamente – uma subsunção, ao menos, formal. Estou falando que há transformação se olharmos a partir da produção do urbano, que terá rebatimentos na dimensão da reprodução social. É outro ponto de vista.

    Uma coisa é o cômodo de aluguel como prática de subsistência, outra é a produção de unidades de locação por incorporação em tipologia padronizada em processo produtivo racionalizado, força de trabalho contratada por meio de empresas, monopolização de propriedades, controle de preços e lógica expansionista do negócio. Isso altera também o modo de consumo do espaço: os inquilinos e comerciantes não são mais os conhecidos do bairro, mas acessam esse circuito através da internet – redes sociais e plataformas digitais, cuja futura generalização, se houver, pode nos dar amostras do significado de uma subsunção real da produção desses espaços ao capital – com a ajudinha da regularização fundiária privada e a digitalização dos cartórios, principalmente. Mas isso é outro assunto, não vou desenvolver.

    Estou falando de um lugar em que circula muita riqueza (como tentei apontar no texto), e se mantém na precariedade. Trata-se de um espaço de extração violenta – e não de territórios “da sobrevivência”. E aí chegamos ao ponto, que você concordou ser novidade: a subsunção da produção do espaço ao capital – ainda que formalmente – envolve a formação de governo. Charles Tilly fala da formação do Estado a partir do crime organizado… tem coisa a ser vista por aí. O envolvimento do crime organizado na produção do espaço não é um elemento fortuito a mais. Ele altera as dinâmicas sociais e políticas dos territórios. Também não vou desenvolver aqui. Em breve vai sair um artigo meu sobre São Paulo dentro de um dossiê que fala das relações entre produção do espaço e crime organizado. Lá eu desenvolvo melhor essas questões, mando aqui quando sair. A rede de pesquisa fez um debate aberto ao público recentemente, e traz alguns elementos que sairão no dossiê, ficou gravado aqui: https://youtu.be/JM8pbk1Lghc?si=fN8mrDj5cOrpgh_O

    O dossiê terá artigos de várias cidades brasileiras, mostrando que sim, há muita diferença entre elas, como você cita, Manolo. Eu falo a partir de São Paulo, sabendo que é uma situação muito própria – justamente, os tais “desenvolvimentos”, “continuidades” nas dinâmicas dos bairros populares não podem ser generalizados, principalmente em se tratando da presença de forças sociais tão díspares como PCC e milícias cariocas, por exemplo. Então não dá pra dizer que tem só “desenvolvimentos” de “estratégias de sobrevivência”, Manolo. Tem também, mas não só. Aliás, gostaria demais de saber das particularidades de Salvador, nesses termos. Você poderia colaborar nisso, não?

    Sobre a pandemia: de fato, não foi ela que fez essas transformações acontecerem. É que, no caso específico dessa favela que descrevi, foi o período de quarentena que desencadeou processos latentes de tomada dos espaços comuns, antes mais controladas pela própria comunidade e seus agentes históricos de organização. A crise econômica, junto com a articulação nacional contra os despejos e remoções, gerou a possibilidade de novas ocupações terem mais apoio social, misturando necessidade de moradia com expansão de fronteiras para negócios ilegais com a terra antes muito difíceis de ultrapassar. Os olhos da fiscalização diminuíram muito, e as redes de apoio estavam preocupadas com outras coisas. As disputas em torno dessas redes de apoio e solidariedade, aliás, desarticularam muito as associações de bairro, que passaram a gerir muitos recursos, de diversas ordens – gerando brigas internas. Não é nada disso que gera as transformações descritas, que já vem de antes, mas talvez as tenha acelerado ou desencadeado em alguns casos, como neste específico.

    Achei que era interessante trazer o elemento a mais da pandemia para pensar, mas talvez isso tenha causado a impressão do “antes” e “depois” que você se incomodou. Não era o intuito. Meu “antes” e “depois” tem mais a ver com as transformações a partir do final dos anos 1990, mas principalmente dos anos 2000: lulismo, investimento público e privado pesado na produção do espaço popular, ascensão dos mercados de cocaína, crise do trabalho, onguização e empresariamento dos movimentos sociais etc.

    Por fim, Manolo, acho importante olhar para a produção dos bairros populares sem ingenuidade por uma questão política (e nisso acho que você vai concordar comigo). Continuar achando que eles são espaços apenas de reprodução social das classes populares leva a um paternalismo cínico, que só joga mais água no moinho da subsunção da produção desses espaços à lógica do capital, evidentemente, de forma subordinada. Daí é aquela coisa de trabalhar pelo “progresso” da comunidade, o que significa na prática amoldá-la às mais eficientes formas de extrativismo – seja de maneira rentista, seja como âncora de políticas sociais públicas ou privadas. Que tipo de organização política pode sair disso? Por enquanto, nada de bom.

    Aqui em São Paulo estamos vivendo uma situação muito difícil de perda dos espaços de organização comunitária. Nas conversas com lideranças bem mais velhas, o que escuto é que nunca tinham passado por situações como as que estão vivendo agora, de serem coagidas e ameaçadas nos tribunais do PCC (os “debates”) simplesmente por estarem organizando as comunidades em torno dos direitos básicos – que agora devem vir pelo mercado. Expulsões de movimentos sociais e de assessores técnicos tem sido a norma, em nome da lógica rentista do espaço. Se isso acontecia de maneira pulverizada e fragmentada de acordo com contextos locais – conseguindo ser enfrentado em articulações maiores por uma esquerda organizada em vários níveis –, hoje perdemos feio.

    Desculpe-me, mas há diferenças sim. Elas são fruto de muitas mudanças que vem de décadas, são diferentes em contextos diferentes, não aconteceram de uma hora para a outra na pandemia, sem sombra de dúvida. Mas dizer que o que vemos hoje nos bairros populares é apenas estratégia de sobrevivência, não dá mais. A questão, me parece, é entender como tais estratégias são capturadas por circuitos extrativos e participam de uma nova hegemonia no poder – cuja escala certamente não se limita ao meu pequeno relato.

  5. Isadora e Manolo: difícil é saber quem merece o troféu da melhor argumentação e ‘a fortiori’ da atitude mais elegante – concordando ou divergindo – no debate.
    Talvez isso nem seja o mais importante, mas o que vejo como um surplus de informação relevante e sobretudo uma comunicação pertinente de saberes teóricos empiricamente respaldados em idôneas observações participantes.
    Compreensão e explicação reciprocamente pressupostas, além de vigorosamente compartilhadas. Eis uma práxis solidária de qualidade ímpar, apontando o caminho para sair (EXPLODINDO!) do labirinto.
    Saúde&Alegria

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