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Por Fernando Paz

O casal, já por volta dos 60 anos, morava numa casa simples de madeira e chão de terra batida, num pequeno sítio no interior da cidade de Morretes, no Paraná. Foram as únicas pessoas que conheci que conseguiram um pedaço de terra, depois de longos anos de espera, por dentro de uma política pública de reforma agrária lançada num dos governos de Fernando Henrique Cardoso – exatamente, se o programa foi lançado no primeiro ou no segundo governo, eu não me recordo. O homem me contou que um dia, na região de Curitiba, ele e a mulher assistiam à televisão e viram uma propaganda que dizia mais ou menos o seguinte: “Pra que pular a cerca se a porteira está aberta.” Então o casal passou a falar sobre aquilo, sobre a vontade de voltarem para um sítio, já que eles haviam vivido por muito tempo no campo, e que logo buscaram se inscrever no programa. Depois de alguns bons anos, quando já tinham perdido a esperança, conseguiram aquele pedaço de terra onde eu os conheci, onde nós três, há uns 10 anos ou mais, tomamos um café. Eles me contaram que já estavam lá havia alguns anos, que os filhos chegaram a viver com eles no sítio, mas como a vida também era muito difícil lá, assim como havia sido quando toda a família estava na cidade, esses filhos, que já eram jovens adultos, acharam melhor voltarem a viver na região de Curitiba. Pouco a pouco, um por um, encontrando alguma estabilidade ajudava um irmão a deixar o sítio e também tentar ganhar a vida na cidade. Contaram também que os filhos não pensavam em retornar para o sítio, já que consideravam melhor a vida na cidade do que na pequena propriedade dos pais. Nós tomamos aquele café numa manhã quente e ensolarada – Morretes é um lugar que faz um calor dos infernos! -, durante uma atividade chamada Aula de Campo, de uma turma de agroecologia da Universidade Federal do Paraná. Eu não era aluno daquele curso, mas fui convidado a participar. O sítio desse casal foi o primeiro a ser visitado pela turma. Chegamos lá já eram quase 10 horas da manhã. Aquele senhor trabalhava num grande canteiro que devia ter uns 30 metros de comprimento por um metro e meio de largura, cortando o mato e preparando a terra para plantar. Ele parou o que estava fazendo, levou a conversa com todos para o pé do poço d’água, onde tinha uma sombra, e lá praticamente todos nós bebemos água, e ele foi falando, respondendo às perguntas dos estudantes, contando sobre as coisas que o casal andava fazendo no sítio, sobre as coisas que não tinham dado certo, sobre o que pretendiam fazer dali para a frente. A turma toda se mostrava bastante interessada na conversa até que alguém, reparando naquela pequena, porém imponente, plantação de maracujá – à época, no interior de Morretes, havia uma considerável produção de maracujás – perguntou se o maracujá também era sem veneno. Então o homem levantou um dos braços, apontou numa direção, e fez um movimento ao passo que dizia mais ou menos o seguinte: “Daqui pra lá é agroecologia, daqui pra cá é convencional. Eu tenho que ter os dois. Eu tenho que ter o maracujá, e pra ganhar dinheiro com o maracujá é no convencional, não tem jeito. Se eu ficar só no orgânico eu vou morrer mais pobre do que cheguei aqui, eu e a mulher.” Os estudantes foram abandonando a conversa lentamente, alguns nos deixaram praticamente no mesmo minuto, viraram as costas e voltaram para a direção do ônibus que estava estacionado na estrada, nem ao menos se despediram, não agradeceram a água que beberam e que nem o trabalho de tirar ela do poço eles tiveram. A maioria foi partindo lentamente, talvez achando que disfarçava bem. Em poucos minutos restavam só nós três e eu fui convidado para o café dentro da casinha. Foi só o café mesmo, e aquela boa conversa que estou recordando aqui. Foi naquela hora que ele falou do cadastro na reforma agrária do Fernando Henrique Cardoso, da dificuldade de viver ali com todos os filhos já adultos, dos filhos em Curitiba, suas idades e seus trabalhos, dos netos, do sucesso da produção de maracujás, das dificuldades da produção sem usar veneno, e de uns e outros da região com os quais ele se reunia para fazer mutirões nas terras da vizinhança, inclusive na deles também, todas elas pequenas propriedades. Mas tem uma outra coisa que eu também não a esqueço. Eu não sou muito fã de carne de tatu. Na verdade ela é muito saborosa, principalmente se frita na manteiga, acontece que eu tenho medo de alguma intoxicação ou envenenamento. É como comer carne de lagarto, me dá medo, eu prefiro uma outra carne de caça qualquer, ou um vitelo, um leitãozinho à pururuca, rã, codorna, e tantas outras carnes que não me metem medo. Bom, aquele casal tinha a carne de um tatu inteiro defumando no alto do fogão à lenha. Visivelmente aquilo já estava mais do que bom. Já contava com aquela crosta preta e dourada, que brilha um pouco conforme a gordura e a água vão pingando da carne lentamente ao longo das semanas. Aquele tatuzinho ali me deu água na boca e coragem de sobra para come-lo. Porém nem um pedacinho me ofereceram. Tudo bem! A água refrescou e matou a minha sede. O café estava ótimo. A conversa foi das melhores. Estou me lembrando dela agora e me lembrando também da fisionomia deles, da simpatia do casal, da preocupação em servir uma água fria para todos que estavam debaixo daquela sombra, do tatu no alto do fogão e, como uma espécie de efeito colateral na memória, me lembrando que até hoje eu nunca comi carne de tatu defumada e, pelo jeito, muito dificilmente a comerei. Passei bem perto. Ficaram essas lembranças. Valeu a pena demais.

A pintura que ilustra esse artigo é de Almeida Júnior.

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