Por Arthur Moura
O crescimento notório entre os anos 2000 e 2020 projetou o rap, tornando-o popular, ao ponto de ser incorporado pelas classes médias e até mesmo pela burguesia. Esse longo período de duas décadas precisa ser analisado com mais cuidado para que se entenda melhor esse processo. Em meu livro O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro, busquei, de alguma forma, analisar esse processo histórico. Essa expansão não significou somente a popularização dessa expressão musical. Para além de se tornar um intenso negócio lucrativo, transformando alguns rappers em milionários, seu projeto inicial fora subtraído à categoria de mera mercadoria. O que antes propagava ideias de enfrentamento e rompimento brusco com as principais estruturas opressivas, como a polícia, a justiça burguesa, as grandes empresas e o Estado, agora reforça toda a lógica desse poder, criando mais uma voz útil na legitimação dessas mesmas estruturas. Aos poucos, os rappers passaram a bajular o poder…
Se analisarmos o rap do Rio de Janeiro e São Paulo (hoje não mais os únicos polos do rap), o que teremos é basicamente a propaganda mais explícita do capital, propagada com orgulho e veemência. Essa propaganda forma a identidade do rap, que não mais se liga às lutas, mas a uma busca desesperada pela ascensão social. Essa é a pauta principal na boca dos rappers. Não à toa, rap e funk ostentação estão se fundindo como grandes conglomerados capitalistas para aumentar suas lucratividades. Filipe Ret, MC Ryan SP, Caio Luccas e Chefin recentemente lançaram o clipe “Melhor Vibe”, que é mais do mesmo, o clichê do clichê. A propaganda principal desses artistas gira em torno de demonstrar um estilo de vida opulento, conferindo distinção com a quase totalidade da população, sobretudo seus próprios fãs, a maioria jovens negros e pobres que sonham em algum dia sair da condição de precariedade. Como o contexto social brasileiro é de intensa miséria, a propaganda em torno dessas conquistas busca imprimir a mensagem de que todos são capazes de chegar ao topo, ainda que esse processo leve muito tempo (ou a vida toda – ou que nunca chegue).
Sendo referenciais para jovens em busca de alternativa, MC´s e grupos, empresários e comunicadores, tentam dar concreticidade ao clássico valor liberal da dedicação ao trabalho, já que eles mesmos ficaram ricos, supostamente comprovando suas teses. Aqui é importante ressaltar que a música está em segundo plano, tanto é que as produções musicais são absolutamente rebaixadas. O que está em primeiro plano é a propaganda, os negócios, o estilo de vida e o espetáculo. Como afirma Debord (1997), “o espetáculo não exalta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões.”
Adorno faz referência aos movimentos artísticos revolucionários de 1910, afirmando que eles não proporcionaram “a felicidade prometida pela aventura”. O mesmo poderíamos dizer do Maio 1968 na França? “Pelo contrário, o processo então desencadeado começou a minar as categorias em nome das quais se tinha iniciado.” E conclui: “Com efeito, a liberdade absoluta na arte, que é sempre a liberdade num domínio particular, entra em contradição com o estado perene de não-liberdade no todo.” Nesse sentido Adorno pontua que o contexto geral foi mais determinante que as pretensões artísticas. Do mesmo jeito (mal comparando…), o rap se afundou numa busca infantil pelo poder. E notem que o termo infantil aqui não é utilizado gratuitamente. Os personagens construídos em torno desses sujeitos são direcionados a crianças (ou mentalidades infantilizadas de um modo geral), pré-adolescentes e adolescentes. Basta ver o público-alvo de artistas como MC Ryan SP, MC Poze do Rodo, MC Ig, Oruam, Chefin, MC PH, Filipe Ret, Cone Crew Diretoria e diversos outros MC’s e grupos do RJ e SP. As letras são simplórias e carregadas de todo tipo de clichês, sendo de imediata assimilação, sem contar que os personagens, ao passo que buscam demonstrar segurança e solidez, são rasos e superficiais, abordando assuntos banais. MC Ryan, por exemplo, quando toma enquadro da polícia, elogia os agentes da repressão, além de filmar tudo dizendo aos fãs que a polícia está certa. Já que se tornou um milionário, seus valores buscam equiparar-se aos da classe dominante.
É demasiado simples chegar à conclusão da falência das expressões artísticas frente aos seus históricos desafios. São tantos absurdos que quase cabe a nós apenas descrever para chegarmos a conclusões razoáveis sobre o problema colocado. Há, no entanto, algum tipo de resolução para essa questão? Seria possível repolitizar a cultura negra de resistência? Teoricamente sim, mas a coisa não é tão simples, já que boa parte dos referenciais dessa cultura está comprometida com formas de poder verticais. Bastaria atestar o estágio atual do capitalismo e sua forte influência sobre as produções artísticas e o inevitável asfixiamento dessas expressões e debater publicamente os fetichismos inócuos em torno do funk e do rap, atestando que este modelo é nocivo aos que buscam algum tipo de dignidade nessa sociedade. Isso demandaria um esforço político que não existiu nesses últimos vinte anos de ascensão do funk e do rap. O que houve nesse tempo foi a conversão dessas expressões em arte burguesa.
Essa conclusão já fora tirada por diversas tendências, conservadoras ou revolucionárias marxistas, anarquistas ou bolcheviques, liberais, democráticas ou pós-modernas. É fácil, portanto, atestar a incapacidade do meio artístico em transcender ou participar de um processo de superação de questões sociais fundamentais que de alguma forma objetificam ou neutralizam as forças criativas a expandir suas consciências e confrontar limites impeditivos. Mas quais são as complicações maiores em torno desse problema? Em conversa com a psicanalista Daniele Queiroz, ela assim pontuou a questão:
Tem um efeito pequeno, ínfimo, mas curioso nessa ostentação (do funk, por exemplo), que é a banalização dos próprios bens de consumo. As bolsas caríssimas de grife hoje estão nas mãos (poucas, sabemos) das “mulheres vulgares” e “faveladas”. Artigos de luxo ainda, mas decaídos pela perda da exclusividade do acesso a estes “bens” que a elite se orgulhava. Óbvio que esse resultado de nada vale para a luta e a emancipação, mas não podemos negar que há um gozo nessa “popularização”, pobretização do ouro, da prata, dos carros de centenas de milhares de reais.
E conclui:
A questão é que esses MC´s não sabem que o capitalismo não brinca em serviço. Ele promove novas marcas e objetos exclusivos novamente com valores maiores e inatingíveis. E assim os artistas dançam conforme a música, literalmente. Mas nesse gozo momentâneo de pertencer e “sujar” a exclusividade, nada mais fazem do que participar do jogo, da engrenagem infinita e sem limites do capital. Não seria utópico ou mesmo um tanto cruel esperar tanto de quem teve acesso a tão pouco para conseguir refletir?
De fato algumas questões devem ser ponderadas, já que a reflexão que buscamos fazer não está no campo moral, mas político e histórico, o que implica pensar a totalidade das relações sociais como o fator econômico e cultural. Numa sociedade capitalista dependente como o Brasil, há uma enorme disparidade entre os diferentes setores que compõem essa sociedade. As classes sociais no Brasil carregam, desde a sua gênese colonial, todo um ranço desse período até os dias atuais. E nós sabemos bem qual vem sendo o papel dos negros e pobres desse país. A escravidão, ainda que tenha sido formalmente abolida em 1888 de forma tardia, não fora o suficiente para garantir a dignidade dessa população, que passou a viver em estado de miséria devido à exclusão permanente ao trabalho, saúde, lazer, moradia, entre outros fatores básicos da vida. Coube a muitos a marginalização, a delinquência e a exclusão social. Dentro disso, reforçou-se todo tipo de estigma e preconceito contra o negro, sendo associados ao mal, desordem e incivilidade.
Para a burguesia e suas classes auxiliares, o funk e o rap, como mencionou Barbara Gancia em 2007, não passam de uma cultura de bacilos, ou seja, de vermes. Como ela mesma afirma: “Se usarmos verbas públicas para ensinar hip hop, rap e funk, por que não incluir na lista axé ou dança da garrafa?” Eles (a burguesia) se viram obrigados a se apropriar dessas expressões, haja vista a sua incapacidade criativa. É preciso lembrar que a arte burguesa em geral é decadente, superficial, pouco comovente. Por isso, não é incomum que se curvem diante daquilo que dizem desprezar. No entanto, essa relação de apropriação não é gratuita. Ela tem um preço que não se resume somente ao fator financeiro. O que temos nesse cenário é a velha conciliação de classes, que objetifica os dominados em troca de migalhas. Se o funk e o rap estão lucrando, a burguesia está surfando nas verdinhas. Por tudo isso, o negro criou todo um sistema cultural capaz de fazer frente às opressões vindas por parte dos escravizadores e dominantes do nosso tempo. Quando se entrega essa arma, perde-se uma das poucas possibilidades de enfrentamento contra opressões históricas.
No meu próprio caso particular, reiterei essa perspectiva quase automática das manifestações musicais de resistência, como é o caso do rap. Rap tornou-se nada mais que uma cultura para o capital, fraca, alienada e retrógrada, ainda que existam poucas resistências capazes de pensar e agir criticamente. O disco Para Além do Capital, de Sarkasmo e Choco, é um exemplo interessante de um contraponto crítico dentro de um estado de coisas banal. Estas, no entanto, são invisíveis, desarticuladas e combatidas pela hegemonia burguesa, que estabelece uma correlação de forças desleal, que empareda processos de enfrentamento contra o que está colocado como norma.
Esse mesmíssimo raciocínio poderia ser transpassado para o funk ostentação, que é nada mais que a expressão da barbárie e da radicalização desse processo de putrefação social, da aceitação do completo aburguesamento de setores pauperizados que conseguiram algum tipo de status social e passam a vociferar obviedades e valores retrógrados como os clássicos valores do capital, transformando homens em meras mercadorias. Carregados de cordões de ouro no pescoço, mansões surreais em condomínios de luxo, frotas de carros importados, seguranças, mulheres decorativas (que são nada mais que objetos para uso e descarte) e todo tipo de banalização da vida e da realidade social em torno do glamour egocêntrico e vazio, enquanto a desgraça social aflora diante dos narizes de cada um que, por não deixarem de perceber tal situação, atuam como benevolentes doando migalhas, gravando vídeos, promovendo suas imagens em torno de supostas ações humanitárias contra indivíduos vulneráveis em sinais de trânsito, que choram promovendo uma sensibilização em torno do espetáculo de suas ações. Essa é a propaganda perfeita. Ela justifica o poder, e a desigualdade permanece como condição social, sem qualquer alteração para além de um conforto de personalidades cínicas, sádicas e perversas.
Que dizer de funkeiros como MC Ryan SP, MC Poze, IG, PH, Davi, Luki, Don Juan, Kadu, GH do 7, MC Paiva e tantos outros que são apenas variações da mesmice, do clichê, da pobreza musical e estética, portanto da norma no meio musical? O primeiro argumento é que seria legítimo a ascensão social de setores subalternizados que historicamente não tiveram qualquer espaço para se colocar no mundo e, portanto, se reconhecer enquanto sujeitos sociais capazes e relevantes. O capital, então, seria esse trampolim sem o qual a vida sequer faz sentido. A riqueza, o acúmulo de capital e poder, nesse caso, não destoa de nenhuma prática burguesa comum da elite branca historicamente detentora dos meios de produção. A mesma elite que escravizou e mutilou negros. O caminho do capital é o mesmo. Os efeitos também.
Esses artistas não lutam por nenhum tipo de rompimento contra a ordem do capital. Pelo contrário. São absolutamente fieis ao seu modo de produção, valores, ética e todo ethos que guia suas práticas sociais. É só ouvir o que MC Daniel, por exemplo, tem a nos dizer: absolutamente nada a não ser o desejo pela riqueza e poder, juntamente com sua propaganda frenética e desenfreada de mercadorias conquistadas, o que antes seria impossível, haja vista sua condição primária de miséria. A miséria, no entanto, não fora superada com o acúmulo de riquezas. Ela apenas se agravou, travestindo o chorume, perfumando a merda.
Alguns poderiam dizer que essa conclusão pode até não ser tão óbvia assim, já que há uma imensa massa de consumidores desse tipo de arte objetificada, segundo as premissas básicas do ethos capitalista concorrencial, fetichista e obtuso (ainda que demonstre variedade ou preocupações com a diversidade, baseado em estruturas corporativistas empresariais). Mas, notem que me refiro aqui a processos investigativos de caráter científico — sobre como podemos ou devemos de fato compreender este problema dentro da complexa trama social e histórica da produção musical, teatral, literária ou cinematográfica, ou seja, das artes… Se a população ainda (ou sobretudo?) consome lixo cultural, que mal faria insistir no óbvio, até que as coisas mudem? Mas sabemos que não é assim que as coisas necessariamente funcionam, até porque o comportamento em torno do consumo é altamente veloz, dinâmico, dado o desgaste das expressões fáceis e repetitivas. E denunciar a barbárie em nenhuma medida promove a transformação social. Para isso, é necessário organização popular capaz de compreender corretamente o problema, ainda que se patine em busca de seus objetivos históricos, e enfrentar o capital em suas múltiplas expressões, tanto do ponto de vista material como psíquico.
Isso tudo nos coloca a pensar se tais expressões já estão encerradas ou se, dada a própria dialética dos processos sociais, haveria sutilezas capazes de complexificar esse mecânico raciocínio da miséria do meio artístico. Para isso, seria necessário pensar a historicidade de expressões artísticas produzidas por setores subalternizados, que diante de sua condição social passam a expressar, por meio das artes, suas questões subjetivas e conectadas às suas respectivas gregariedades. Não é nosso objetivo aqui traçar uma ontologia dessas expressões artísticas, até porque elas já estão aí disponíveis, para que possamos acessar e tirar nossas próprias conclusões. Esse ciclo dos rebeldes se repetiu no samba, rock, punk, soul, rap, reggae e funk, cada qual segundo seus contextos históricos e territoriais. O que une todos esses processos é a indústria cultural, que funciona de forma bastante previsível, ainda que aprimore suas formas de cooptação e neutralização.
Essas expressões deixaram de existir? Claro que não. Elas foram ressignificadas, enxertadas, reformuladas segundo as negociações pelas quais cada uma passou, sempre com o consentimento dos dominados. Mas se houve o esvaziamento, por que há tamanha perenidade e expansão dessas produções? Ora, já são anos que consumimos rap e funk; essas expressões não permaneceram as mesmas, tanto do ponto de vista estético como político, o que nos parece fundamental. Essa não seria uma deixa para uma tomada de posição? Na verdade, a mudança substancial foi a sua plasticidade frente aos anseios gerais do capital. Ora, se o capital é ele próprio gerador da miséria, dominação, guerras, etc., nada mais útil que uma expressão popular para conformar os mesmos anseios históricos da classe dominante em novas roupagens.
Se existe uma espécie de profanação da mercadoria e dos bens de consumo por parte dessas culturas, há por outro lado uma prática obscena em exibir riquezas exorbitantes, do luxo e do gozo ininterrupto, da demonstração do poder e da sua banalização e de todo tipo de objetificação, isso tudo dentro de um contexto caótico onde a quase totalidade dos jovens assassinados pelo Estado são negros, sem contar a brutal disparidade social entre os que têm e os que nada têm; uma massa de analfabetos (quase 20% da população!) ou analfabetos funcionais (muito mais que 20% da população!), desempregados (quase 10% da população) e famélicos. Do ponto de vista ético ou sociológico, a prática da ostentação é uma contradição notadamente presente entre os setores dominantes. O debate sobre se é justo ou não a ascensão social de determinados indivíduos ou grupos sociais pouco importa. Do ponto de vista social, não há alteração das relações de dominação. Por isso, chega a ser patético assistir Filipe Ret apresentando sua nova mansão. É algo absolutamente degradante.
Arthur Moura é doutorando em História Social pelo PPHGS (FFP-UERJ)
Cabe chamar isso de “arte burguesa”? Me parece que se trata de “arte à serviço da sociedade burguesa”, se tanto.
Há toda uma sociologia sobre cultura popular/cultura de massa, massificação, que ajuda a entender esse tipo de fenômeno de recuperação de cultura popular (que nesse caso desde o início teve influência da indústria cultura, uma vez que mesmo o rap brasileiro anticapitalista não surge separado da indústria cultural.
Mas o que eu gostaria de destacar mesmo sobre o tema é que, infelizmente, hoje em dia quando se analisa o consumo, se esquece do autor que, para mim, de longe melhor tratou o assunto sociologicamente. Vou mencionar um artigo clássico desse autor, de 1969, e que está publicado em português no livro Para Uma Crítica da Economia Política do Signo (pode ser baixado aqui: http://library.lol/main/CE9E4F5936C8AB72CAA1513AC89D89B1). É o artigo Função-Signo e Lógica de Classe, de Jean Baudrillard. É estranho que esse artigo costume ser lido em cursos de design mas não nos de sociologia.
Como diz o título da última seção desse artigo, funk e rap ostentação é pregação da nova moral para escravos. As duas primeiras frases da última seção do referido artigo são:
“Toda uma nova concepção de estratégia de classe se organiza à volta da posse de bens materiais e culturais. Simula-se que se universalizam os valores e os critérios de consumo apenas para melhor destinar as classes “irresponsáveis” (sem poder de decisão) ao consumo, e desse modo preservar para as classes dirigentes o exclusivo dos seus poderes.”
O penúltimo parágrafo do artigo:
“Neste sentido, é absurdo falar da “sociedade de consumo” como se o consumo fosse um sistema de valores universal, próprio de todos os homens, uma vez que fundado na satisfação das necessidades individuais. Na verdade, trata-se de uma instituição e de uma moral e, a este título, em qualquer sociedade passada ou futura, de um elemento de estratégia de poder.”
E o último parágrafo:
“Ora, o que importa ler, o que importa saber ler na superioridade da uper class em equipamento eletrodoméstico ou em alimentação de luxo, não é justamente o seu avanço na escala dos benefícios materiais, mas o seu privilégio absoluto, que advém do fato de a sua proeminência não se fundar justamente nos signos do prestígio e da abundância, mas alhures, nas esferas reais de decisão, de gestão, de poder político e econômico, na manipulação dos signos e dos homens – remetendo os “Outros”, as lower e as middle classes, para os fantasmas da terra prometida.”