Por Liv
Meu nome é Carmelita e eu não sei o que digo. Faço e tampouco sei por que faço. Por isso que culpa tenho? Só o que tenho é fé naquilo que nem eu mesma acredito. Me diga doutor, o que é que eu tenho para além de um vazio aperreado pelo medo? Para além da morte, nada? Nada.
Quem sempre nada teve, hoje segue em pleno nada e amanhã nada seguirá. Não há falsas promessas nisso.
O vazio é uma regra de pouca soma, de desamparado cálculo sentencial: dor, desespero e violência: medo.
Sem pão, sem passagem e com medo: desagregados, seguimos rumo ao vazio de uma multidão mutilada em sua humanidade. Aqui, inóspito. Ali também.
Quando há, morremos de tanto trabalhar. Quando não há, morremos primeiro de medo e só depois de fome.
Tenho medo de morrer de medo. Mas as vezes penso ter medo de algo pior do que o próprio medo: tenho medo de criar esperanças. Em mim, quando creio. Nos meus filhos, quando os faço crer que amanhã a janta vem.
Ouvi falar que o medo tem nome: Voraz. Sonhei que o medo Voraz é um monstro que devora ossos e suga o sangue dos explorados mal pagos para alimentar. Não servem o alimento: servem de alimento. Ao despertar imaginei descobrir que estamos todos nós, os iguais, condenados a vagar e a morrer lentamente, como se a vida fosse morrer. Descobri, morri de medo, preferi fingir esquecer, por isso digo: imaginei descobrir. Cobri novamente e cobro todos os dias.
Cobro o salário que não chega, cobro a esperança que não vinga. Cobro o voto que dei imaginando que um dia…
Ontem sonhei de novo, mas o monstro era outro: era um gerente, um gestor, um líder comunitário, um fulano que me fez distribuir o santinho do partido e nem me ofereceu água em troca. Me pagou com nome na lista de presença. Presença para eles é quase dinheiro. Não chega a ser, mas certamente é moeda de troca. Bateram no meu lombo insubmisso e então eu acordei.
Pulei da cama. Pulei o córrego, rasguei a camisa no chapisco do vizinho passando por uma viela de casas coroadas por suas caixas d’agua. Já repararam nas caixas d’agua? Elas se proliferam junto com as paredes sem reboco. Sorte de quem tem chapisco, pensei.
Dia desses teve um teatro na ocupação. Fiquei nervosa, aporrinhada com o movimento estranho daquelas pessoas. Tão estranho que nem pareciam gente. Eu devia estar atrapalhando o andamento da coisa: os atores ali queriam dar o desfecho prescrito da história que inventaram. Mas eu me levantava tensa e gesticulava: não entendia. Não entendiam. Foi então que essa atriz, essa imagem, simulou algo só para mim, na verdade mais para os outros verem: se vestiu de branco e virou doutora para remediar o inconveniente, encostou no meu rosto e se fez solidária. O teatro acabou mal-acabado, incomodado pelo inconveniente do público. Barraco simulado. De repente, quando já não tinha mais ninguém ali, nenhum pio além do som da minha barriga roncando de fome e da minha língua estalando de sede notei mal querendo notar que antes ali simulou-se no simulado de um terreno ocupado por espaços vazios. Foi isso. Solidariedade não há, em espaço algum. Ali certamente não há. Nem mesmo em mim comigo mesma: angústia: Medo: Voraz: Patrão.
Amanhã acordo cedo. Não sei para quê, mas acordo. Devo, disseram.
Título: Não sei para quê, mas acordo.
Autoria: Liv
Ano: 2024
Ano do texto: 2024
Material: lona têxtil, linhas de costura, papel, cola, tenta óleo e galho de árvore.
Descrição do ato: A obra foi feita sobre lona têxtil sem preparo técnico para pintura. O lambe fotográfico foi colado sobre a lona, em seguida fios de costura foram anexados emoldurando a imagem e transgredindo os limites até quase cobri-la por completo. Em seguida foi anexado um elemento natural (galho de arvore). Por fim os elementos ganham unidade através das intervenções feitas com tinta óleo. Todo esse processo de anexação de diferentes elementos em um acúmulo de informações é um processo de apagamento: o que resta sempre é mera aparência, jamais realidade.