O casal mudara recentemente para o prédio, começaram a conversar regularmente com uma senhora de outro andar. Gostava muito de falar sobre livros, tinha lido Anna Karenina e vaticinou: “Uma vagabunda!”. Comentaram com a amiga, feminista e especialista em literatura russa, que disse “É, para algumas pessoas uma vagabunda é uma vagabunda, e não há Tolstoi que salve.” Passa Palavra
Peço desculpas antecipadas aos especialistas em vagabundagens russas pela livre interpretação que virá a seguir e aos filósofos especialistas em diferenciar ética e moral:
O interessante da Anna não é tanto a questão moral que lhe premiou com o título de vagabunda. É a questão da escolha, uma questão ética. Anna escolheu. E sofreu sua escolha. Sofreu a ponto de não querer mais escolher. No fim ela se vê incapaz de escolher por um, por outro ou por um terceiro (o filho). Anna abriu para si um caminho que lhe trouxe a possibilidade de escolha. Mas neste caminho, neste curso para ela sem volta, ela acaba escolhendo a não escolha, ou seja, a morte. Uma morte similar daquela vivida no começo de sua trajetória de rompimentos (e não me refiro ao episódio da mulher e do trem, isso talvez seja apenas uma alegoria da vida-morte de Anna no começo do livro).
Um outro personagem similar é a Hélène, de Guerra e Paz. Hélène, diferente de Anna, sempre se permitiu a possibilidade de escolha. Nem o casamento lhe tirou isso (talvez a pobreza lhe tivesse tirado, mas não foi esse o caso). E, apesar disso, Hélène tem o mesmo destino de Anna. A diferença entre elas é que a causa da morte da segunda é a negação externa da possibilidade de escolha. Quando as possibilidades de escolha de fecham para Hélène contra sua vontade, Hélène se vê morta. Ao se deparar com uma situação de impotência, depois de dar todos os passos e se ver impedida de continuar, Hélène morre. Anna sofre pois não quer mais escolher, por não quer dar o próximo passo, e morre por isso.
De novo, reflexões a respeito da possibilidade de escolha nos bate à porta.
Um coração amargo como o dessa senhora nem mesmo um Pierre amolece.
Muito interessante a comparação de Anna e Helene. Helene tbm foi chamada de puta pela sociedade russa da época, ao ser qualificada como “fria e calculista” por ter cometido o duplo crime de conseguir casar com o dono do botim e de continuar livre após casar. Quando li Guerra e Paz interpretei que talvez ela tivesse morrido de alguma DST, mas essa interpretação poética faz todo o sentido para a personagem.
Tolstoi tem um quê de fofoqueiro, né? O boato que corria pela corte era de que Hélène sofria de angina, que é um sintoma de doença arterial. Imagino que portadores de determinadas DSTs podem vir a desenvolver esse sintoma. Hélène não necessariamente contraiu algo do tipo. Mas quem sabe? Não seria difícil imaginar que este seria o caso dela. De qualquer forma, ela morreu de overdose.
Hélène se viu impotente diante de três homens que até então se rendiam a ela (assim como toda a sociedade se rendia). O poder sobre eles (e sobre todos) lhe permitia exercer poder em relação a própria vida: lhe permitia a possibilidade de escolhas. Esse desgosto emocional pode ter causado angina. Se bem que me parece que angina era só uma desculpa para que o salão de Hélène ficasse por um tempo fechado e ela reclusa em sua impotência. De qualquer forma a condição de angina, de desgosto ou de impotência, que neste caso são sinônimos, a fez ingerir uma elevada dose do medicamento prescrito pelo médico íntimo da rainha da Espanha.
No meu entender, aconteceu que quando seu horizonte de escolhas desmoronou, ou seja, quando se viu diante de um impedimento externo de suas possibilidades de escolha, Hélène escolheu a morte.
No caso de Anna, para viver ela precisava fazer uma escolha, uma escolha que lhe parecia moralmente impossível. Ou seja, diante de um impedimento interno, ela abraçou a morte que lhe era destinada desde o princípio de tudo.
Nesta comparação, o amargo coração de Hélène me parece mais forte pois mais consciente das próprias potencialidades do que o pegajoso e ciumento coração de Anna.
De qualquer forma, o que torna ambas notáveis é que tanto uma, quanto outra, uma mais limitada do que outra, deram um ou mais passos no sentido de romper com a condições sociais pré-existentes. Ambas tiveram a capacidade de imaginar um destino diferente aquilo que já estava dado. E fizeram a escolha disruptiva (e trágica) de perseguir esse destino. Tem a ver com um vínculo de coerência entre o campo das ideias e o campo das ações.