Por Vanessa Monteiro

Este texto toma como ponto de partida a morte da esquerda [1]. A ideia, anunciada nos últimos quatro anos por Vladimir Safatle, gerou, mais do que polêmicas, reações defensivas por parte da esquerda que se sentiu afrontada por tal afirmação. A despeito de ativistas que sinceramente passaram a se questionar se seus esforços heróicos de intervenção na luta de classes estavam sendo desconsiderados, algumas das críticas chamaram atenção por reafirmar o diagnóstico, como a ideia de que a esquerda está viva “porque ganhou quatro eleições presidenciais seguidas desde 2002, e confirmou que preservava autoridade levando a candidatura Lula ao segundo turno em 2022” [2].

Não entenderam, ou não quiseram entender, que a ideia de morte da esquerda não vem do fato de a esquerda disputar ou não eleições, intervir ou não na realidade, mas pelo seu reducionismo de horizontes. Como diz Safatle, a esquerda morreu como esquerda ao ter se demonstrado incapaz de cumprir o seu papel histórico e apresentar uma saída radical frente à emergência climática e ao colapso político-social, deixando ao fascismo o espaço antissistêmico, a disputa programática e a capacidade de ação sobre o povo.

A morte da esquerda se dá não como uma abstração conceitual, mas como um processo real e historicamente localizado. Por isso, optei por escrever este texto, elaborando sobre os motivos que me levaram a um novo rumo na militância revolucionária, enquadrando a crise da Resistência [corrente do PSOL] como um caso exemplar da encruzilhada na qual a esquerda radical se encontra hoje.

Passados cinco anos desde a fundação da Resistência, é nítida a profunda transformação pela qual passou o agrupamento rumo à institucionalização. O projeto que deu origem à Resistência já não existe mais e seu fim não pode ser compreendido como um fenômeno isolado. Assim, entendo que esse debate se justifica pelo fato de que as diferenças político-programáticas sobre os rumos dessa corrente não são patrimônio singular, mas partem de debates vivos que atravessam os movimentos sociais, organizações revolucionárias e a intelectualidade de esquerda, dada a complexidade da situação em que vivemos. Em segundo lugar, porque tratar as diferenças políticas de maneira franca e aberta é pedagógico em meio a tantas rupturas e fragmentações mal-explicadas ou, ainda pior, silenciosas. Nada mais anti-leninista do que sucumbir à idéia de que a polêmica pública é nociva [3].

Sobre as origens e posições fundacionais

A Resistência é uma corrente de origem trotskista, fruto principalmente da fusão entre as antigas correntes MAIS (Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista) e NOS (Nova Organização Socialista). O MAIS surge em julho de 2016 a partir da ruptura de 739 militantes com o PSTU, que convocaram através do manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro” [4] a conformação de uma nova organização socialista e revolucionária no Brasil. O acontecimento foi um fato político que gerou enorme repercussão na esquerda àquela época. A NOS, apesar de menor em tamanho, reunia uma importante camada de intelectuais e militantes marxistas, com peso em particular no estado do Rio de Janeiro, em um momento em que a esquerda carioca era bastante dinâmica [5]. A fusão destas duas correntes deu origem à Resistência, em 2018, que no mesmo ano formalizou sua entrada no PSOL. A nova corrente surge com um expressivo trabalho sindical, de juventude e uma porção de quadros pertencentes à velha guarda do trotskismo brasileiro, fundadores da Convergência Socialista e do Partido dos Trabalhadores.

Para aqueles que, assim como eu, vieram do ex-MAIS havia grande expectativa na construção de uma nova corrente revolucionária não dogmática, capaz de incidir positivamente na luta contra a fragmentação dos revolucionários a partir da necessidade de enfrentar a ascensão da extrema direita sem abrir mão da construção de uma alternativa anticapitalista. A publicação do manifesto de lançamento do ex-MAIS no antigo Blog Convergência, se deu nos seguintes termos: “A iniciativa busca uma unidade superior da esquerda que se movimenta no sentido da luta pela superação do capitalismo, e, no Brasil, pela conformação de um terceiro campo, alternativo às velhas e novas direitas e à coalizão que deu suporte aos governos do PT” [6].

No manifesto é possível encontrar as principais ideias que nortearam a ruptura com a antiga organização, bem como os pilares fundacionais que marcaram o perfil programático daquele agrupamento. Corretamente, o ex-MAIS interpretava que a restauração capitalista na URSS, leste europeu, sudeste asiático e Cuba teve signo reacionário, o que explica a ausência de revoluções triunfantes no século XXI, fruto do retrocesso político e organizativo que abateu a classe trabalhadora:

A ofensiva política, econômica, social, militar e ideológica do imperialismo, os discursos sobre “o fim da história” e a adaptação da esquerda reformista à ordem burguesa não passaram sem consequências. O movimento de massas retrocedeu em sua consciência e organização. E os revolucionários sofreram os efeitos desses anos de confusão e crise [7].

Sem catastrofismos, apontamos que a história não acabou e “a crise econômica mundial de 2007-2008 abriu uma nova situação internacional marcada pela instabilidade e pela polarização política, social e militar” (grifos meus) [8]. Neste contexto altamente contraditório, marcado tanto pela ascensão da extrema direita quanto de partidos neo-reformistas, alavancados por fenômenos progressivos de mobilização social, compreendemos a tarefa de atuar diante de uma “nova situação mundial [que] abre importantes perspectivas aos socialistas” [9] mas sem autoproclamação, único caminho possível para romper com a marginalidade.

Como foi público, a posição categoricamente contrária ao golpe de 2016 esteve no centro da identidade política daquele agrupamento, por entender que — fazendo certa analogia com o signo na restauração capitalista — a queda do governo do PT não se deu pela ação das massas, uma superação pela esquerda, mas sim pela oposição de direita. Este elemento subjetivo foi determinante para compreender o signo de reação e a necessidade de “construir a mais ampla unidade de ação com todos os setores que estivessem na oposição de esquerda ao governo e, se possível, dar a esta unidade uma forma organizativa: uma frente de luta ou terceiro campo alternativo ao governo [do PT] e à oposição de direita” [10].

O manifesto que deu origem ao ex-MAIS é muito feliz em expressar o sentimento que deu origem àquele agrupamento, que reunia uma parcela expressiva de quadros jovens referenciados no trotskismo latino-americano, inquietos pela necessidade de responder às crises do período histórico em que vivemos, incluindo-nos a nós mesmos como parte do cenário de fragmentação e marginalidade dos marxistas revolucionários. A aposta na unidade das organizações da esquerda combativa orientava o manifesto, seja no terreno da intervenção sobre o movimento de massas ou nas eleições de 2016, com o chamado a uma Frente de Esquerda Socialista [11]. O espírito daquele texto, tal qual o lançamento da corrente no Clube Homs, em São Paulo, mirava o futuro e negava qualquer tentativa de reedição do passado:

Rejeitamos qualquer tentativa de reeditar, trinta anos depois, a experiência reformista do PT, como faz hoje a direção majoritária do PSOL. A redução da luta de classes à luta parlamentar, as alianças com os setores supostamente progressivos da burguesia nacional, a transformação dos deputados, senadores e prefeitos em figuras todo-poderosas, que só devem satisfações a si mesmos – tudo isso já foi feito. E fracassou. Não trilharemos este caminho. (Manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro”, grifos meus).

Ascensão do neofascismo no mundo e a política dos revolucionários

De julho de 2016 a abril de 2018 se aprofundaram os elementos mais reacionários da realidade, tendo importante impacto na situação política mundial a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos em 2017 e sua influência para a ascensão da nova extrema direita no mundo. No Brasil, a força política de Bolsonaro apontava para o que viria ser, ao final daquele ano, sua vitória eleitoral e o início de uma experiência catastrófica, sobretudo aos mais pobres. O manifesto aprovado no Congresso de fusão NOS-MAIS [12] estava imerso em um espírito defensivo (“vivemos tempos de muros e medos”). A diferença com o manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro” que deu origem ao ex-Movimento Por Uma Alternativa Independente e Socialista se dava não apenas em termos de nome – dado que a análise de correlação de forças entre as classes se tornou parte da identidade política do agrupamento, assumindo um caráter reativo desde o seu nome: Resistência – mas também em termos de tarefas e perfil. “Resistir no presente” ganha mais peso, ainda que conste a necessidade de “um programa radicalmente anticapitalista”; a ideia de terceiro campo ou unidade da esquerda radical desaparece, dando lugar a formulação mais ampla de “construir frentes de lutas unitárias”. Ao mesmo tempo, se mantém a necessidade de superação da estratégia de conciliação de classes:

No entanto, essa disposição de unidade para lutar em torno de objetivos de resistência, centrais nessa conjuntura de retrocessos, não nos levará a aceitar o abraço dos afogados dos que insistem na conciliação de classes. A classe trabalhadora brasileira necessita de uma outra esquerda, que não tenha medo de expor suas convicções socialistas e seu programa radical de ruptura com a ordem burguesa. (Manifesto É tempo de resistência! É preciso transformar a vida para cantá-la em seguida)

Antes de avançar para uma demonstração de como evoluíram as posições da Resistência nos últimos anos, é importante uma rápida localização de como interpretamos a ascensão da extrema direita, um fenômeno decisivo do nosso tempo e que se desenvolveu qualitativamente desde 2018 até os dias de hoje. A Resistência e parte da esquerda erram ao tratar a doença apenas pelo sintoma, ignorando as condições que propiciam seu desenvolvimento. Ao invés de olhar para o crescimento da extrema direita e, a partir deste fenômeno, explicar todas as mazelas da crise multidimensional em que vivemos, deveríamos ir à raiz do problema e enfrentar as causas.

Assim, compartilhamos das teses – nada novas nem tampouco originais – que consideram que a crise de 2007-2008, em sua dimensão econômica, possui desdobramentos determinantes até os dias de hoje. Derivam daí o conflito comercial entre Estados Unidos e China, a ofensiva imperialista em marcha na América Latina e a estratégia de recolonização dos países da periferia do capitalismo, o crescimento da dívida global, entre tantos outros efeitos produzidos por essa “Grande Recessão”.

Por outro lado, a crise do capitalismo global tem a dimensão política que se expressa não somente no que chamamos de “fim do consenso globalizador neoliberal” ocasionando divisões entre as frações da burguesia e os conflitos geopolíticos. Assim, há também uma crise da democracia burguesa, expressa em crise de “representação” e desconfiança de massas em relação às instituições. A ideia de crise de hegemonia de Gramsci e o “interregno”, onde coisas terríveis podem surgir, mais uma vez se demonstrou extremamente útil para interpretar a realidade.

Há ainda uma ofensiva ideológica da burguesia em nível mundial para conter a crise combinada com a redução em maior grau do Estado como mantenedor do público, isto é, do Estado como salvaguarda do setor privado, combinado com a financeirização da economia, retirada de direitos trabalhistas, previdenciários. Essa ofensiva é combinada com o surgimento de uma nova subjetividade, aquela pautada pela competitividade, na qual o sujeito entende-se como “empresário ou governo de si mesmo”. Tudo isso é agravado pela emergência climática, que enfrenta negacionismos tanto da extrema direita quanto dos neoliberalismos progressivos, que em muito não se diferenciam da política (neo)extrativista sobre países de economia primária, dependentes e exportadores de commodities, como o nosso.

Sem começar pela constatação óbvia de que a classe trabalhadora vive uma situação de empobrecimento, tendo atravessado anos terríveis no contexto pandêmico de retorno da extrema pobreza, com expectativas frustradas com os governos tanto de direita quanto “progressistas”, não é possível explicar a corrosão do centro e as alternativas de extrema direita no mundo, quiçá como combatê-las.

Recentemente o companheiro Henrique Canary escreveu sobre o tema [13], negando que a extrema direita tenha ocupado um espaço antissistema. São dois os argumentos principais, à parte a política (que tratarei mais adiante). O primeiro, é que a extrema direita cresceu justamente sobre os setores mais reacionários e conservadores, portanto setores “não radicais”. O segundo, é que não há espaço para que a esquerda seja antissistêmica, pois o que está colocado são lutas defensivas e mínimas, a exemplo da luta contra o PL do estuprador [Projeto de Lei 1.904/2024, que buscava equiparar o aborto ao crime de homicídio]. Argumento semelhante foi utilizado por Valério Arcary no texto “Três táticas: frente ampla, unidade da esquerda ou ofensiva antissistema?” [14]. Arcary não argumenta, como Canary, que neste momento há espaço apenas para reivindicações mínimas, mas seguindo o mesmo raciocínio, faz uma caricatura de seus oponentes no campo da esquerda revolucionária argumentando que a “a esquerda mais radical (…) defende a necessidade de uma tática ofensiva, ou seja, programa máximo” [15]. Daí em diante segue argumentos semelhantes aos de Canary, de que a correlação de forças entre as classes é defensiva – coisa que nenhuma organização séria questiona – e que Bolsonaro ameaça as conquistas democráticas conquistadas nos últimos anos, e não o sistema capitalista.

Que a extrema direita não é antissistêmica, de fato, mas a última arma da burguesia em seus momentos de crise, é parte da interpretação histórica na tradição trotskista [16]. O que os dirigentes da Resistência parecem esquecer, no entanto, é que diante do arruinamento da pequena burguesia, este setor economicamente dependente e politicamente atomizado, busca por uma direção e, na ausência de um programa de ação claro por parte das direções proletárias, pode ser iludido pela falácia fascista [17]. Ou seja, o único antídoto contra o fascismo – e o mesmo vale para a extrema direita do nosso tempo – é que a esquerda confie em suas próprias forças, não tenha medo de dizer o seu nome e apresente o seu programa de transformação radical. Apenas assim a esquerda pode evitar – o que para Canary parece inevitável – a hegemonia do fascismo.

Canary, portanto, se equivoca ao igualar o espaço para radicalidade com o programa da esquerda (como se dissesse “estes setores defendem ideias conservadoras, portanto jamais seriam ganhos para a radicalidade da esquerda”), ignorando o fato de que esta radicalidade pode muito bem ser canalizada à extrema direita. Para quem tem dúvidas sobre a radicalidade no discurso da extrema direita, vejam Georgia Meloni criticando o colonialismo francês na África [18], para citar apenas um exemplo. Canary parece se esquecer, neste texto, do Programa de Transição, ao defender apenas as reivindicações mínimas sob a justificativa da correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora.

Já Arcary, corretamente, defende que a esquerda socialista deve apresentar um programa de transição, nem mínimo, nem máximo, e se inspirar no exemplo francês liderado pela França Insubmissa e pela formação da Nova Frente Popular, que derrotou a extrema direita e se tornou a principal força política nas últimas eleições na França. A contradição de Valério é que, na hora de traçar um paralelo entre a disputa destas supostas três táticas com a situação brasileira, Valério diz localizar-se entre os que estão aplicando política semelhante à da França Insubmissa no Brasil, nem quietista e nem ultra esquerdista. Ledo engano! Valério, Canary, a Resistência e todas as correntes que atualmente se localizam no campo majoritário do PSOL, na verdade, estão aderindo à política frente amplista do PT e, certamente contra suas próprias intenções, pavimentando o caminho para um destino à la Estados Unidos e não à la França nos próximos anos. Esse giro oportunista em nome da Frente Única será demonstrado a seguir.

Uma análise unilateral da situação política mundial

A evolução das posições da Resistência, desde a sua fundação até os dias de hoje, foram extremamente contraditórias. Aqui não se trata da contradição dialética fundamental para a noção de totalidade em uma perspectiva materialista histórica, mas marcadas pela incompatibilidade entre ideias divergentes sob um mesmo guarda chuva, de modo que a revisão de suas posições fundacionais se deram não pela negação aberta das posições passadas ou pelo balanço franco, mas pela falta de coesão ideológica perceptível a qualquer leitor assíduo do Esquerda Online.

Alguns foram os elementos de análise que a Resistência cristalizou ao longo dos últimos anos, sendo mobilizados para justificar sua atual política. O primeiro, é uma análise unilateral e catastrofista sobre a situação política mundial, onde são consideradas apenas as características regressivas e a ascensão da extrema direita mundial. Nesta análise, não só as causas que levam à ascensão da extrema direita são frequentemente omitidas como qualquer contradição – tais como lutas populares, derrotas eleitorais da extrema direita – tornam-se difíceis de serem explicadas dentro deste esquema. Em decorrência da ascensão da extrema direita mundial, surge outro elemento, para a Resistência, fundamental para compreender o período histórico em que vivemos: a recomposição da força das direções tradicionais da classe trabalhadora. Argumentam que, apesar de esta não ser sua vontade, é um fato que a reorganização da esquerda sofreu com a recomposição das antigas direções, diminuindo o espaço para a esquerda radical. Todos estes elementos, claro, estão inseridos dentro de um cenário maior de retrocesso político e subjetivo na consciência da classe após a restauração capitalista.

Todas essas premissas são parte da realidade: ascensão da extrema direita, a recomposição das antigas direções e os retrocessos que derivaram na grande derrota que significou o fim dos antigos estados operários. São unilaterais, porém, porque dão conta apenas de parte da realidade. Se é verdade que características do período de triunfo do neoliberalismo e da crise estratégica das organizações revolucionárias no mundo permanecem, é verdade também que o período pós 2007/2008 tornou a realidade muito mais contraditória.

De um lado, surge o neofascismo, não como fenômeno passageiro, mas como uma força política resiliente e inconteste na Itália, França, Estados Unidos, Brasil, Polônia, Hungria, Finlândia, Suécia, Chile, Peru… e ainda em dinâmica de crescimento. De outro, diferentes ciclos de lutas quebram a estabilidade precendente, tais como a Primavera Árabe, Ocuppy Wall Street, Indignados, Geração à Rasca, Junho de 2013, Black Lives Matter de 2010 a 2013 e posteriormente as mobilizações na América Latina como o estallido chileno, mobilizações no Equador, Peru, Bolívia e os protestos antirracistas que se espalharam dos Estados Unidos para Europa, Austrália, Coréia do Sul e Japão entre 2019 a 2020, apenas para citar alguns exemplos.

Do mesmo modo, ao mesmo tempo em que há a recomposição de antigas direções (vide vitória do PSOE na Espanha em 2019, recomposição do PS em Portugal, vitória do peronismo na Argentina em 2019, retorno do PSD ao governo da Alemanha em 2021 e volta do MAS ao governo boliviano em 2020), também há fenômenos que apontam para a possibilidade de um processo de reorganização que gere alternativas à esquerda das velhas direções, ainda que tenham também seus limites tais como Boric no Chile (2021), Pedro Castillo no Peru (2021), Petro e Francia Marquez na Colômbia (2022), AMLO e Sheinbaum no México (2018/224). Além destes, houve também fenômenos ao redor de Sanders e Alexandria Ocasio Cortez nas eleições de 2016 e 2020 nos EUA e também Corbyn no Reino Unido, de 2015 a 2020, e outras experiências anteriores como o Podemos e o Syriza, que ascenderam como expressão distorcida de fenômenos progressivos e foram posteriormente derrotados. Menos do que caracterizar cada uma destas alternativas, seus limites e diferenças entre si, importa aqui apenas constatar que todos estes fenômenos foram expressão, ainda que distorcida, de processos reais de mobilização que impulsionaram a reorganização à esquerda.

Por fim, a história não é linear, e traçar um fio de continuidade mecânico entre os anos 1990 com os dias atuais faz com que características centrais sejam secundarizadas, apenas para que caibam em um certo esquema. Se é verdade que seguimos numa quadra de crise estratégica profunda, é verdade que também não vivemos mais o triunfo do neoliberalismo, senão o seu período de crise, cujos sintomas são a divisão da burguesia, os conflitos interimperialistas e a crise de hegemonia. Este novo momento, longe de nos levar inevitavelmente a saídas progressivas, impõe a disputa programática e estratégica como uma necessidade, abrindo, portanto, possibilidades.

Da Frente Única à Frente Ampla

Deriva desta análise internacional unilateral e catastrofista, que na verdade busca explicar o mundo a partir da trágica situação brasileira, a política de impulsionar a construção da Frente Única, elevada para a Resistência de tática à estratégia, na prática. São inúmeros os problemas na aplicação desta política, elenco alguns.

Em primeiro lugar, a tática de Frente Única é válida e está entre o arsenal de táticas da tradição marxista-leninista-trotskista. Porém, a Resistência faz um verdadeiro revisionismo sobre a Frente Única, que em nada tem a ver com os escritos de Trotsky dos anos 1930 no enfrentamento ao nazi-fascismo. Sob a justificativa de que “a realidade hoje é totalmente diferente”, a Resistência, na verdade, descaracteriza a FU para justificar o seu oposto: a Frente Ampla.

Na concepção de Frente Única da Resistência, não há enfrentamento com as direções traidoras, não há disputa programática, não há sequer uma ação comum e, em hipótese alguma, jamais considera-se a possibilidade de uma ação independente no marco da construção da Frente Única. Sendo assim, a Frente Única da Resistência é uma unidade vazia. A unidade pela unidade, independente do programa, da ação e das tarefas colocadas para a luta de classes a cada momento. Sendo o PSOL minoria nesta frente, resta ao PSOL apenas aderir, nestas condições [19]. Trata-se, portanto, de uma unidade incondicional, levando à renúncia de bandeiras históricas em nome da tática da Frente Única. Assim se deu, por exemplo, quando o Afronte, movimento de juventude animado pela Resistência, apresentou no Congresso da UNE de 2022 a resolução de conjuntura com o campo majoritário da UNE, o qual não incluía reivindicações como a demarcação de terras indígenas, a luta contra o arcabouço fiscal e até mesmo a defesa de prisão para Bolsonaro.

Nos últimos dois anos, a Resistência também protagonizou uma relocalização no movimento sindical e estudantil, passando a compor chapas para disputa pela direção das entidades com os setores governistas, em nome da Frente Única. Esta localização não se deu durante o governo Bolsonaro, o que poderia ser mais justificável, pois, em tese, toda a oposição de esquerda ao governo encontrava-se nas mesmas trincheiras na luta pelo Fora Bolsonaro [20]. Agora, porém, as diferenças políticas são evidentes e de ordem prática: tratam-se de setores que defendem acriticamente o governo responsável pela privatização dos presídios, pelo Novo Ensino Médio, entre outros ataques já mencionados.

A incoerência em compor chapas com setores governistas para a disputa das entidades sindicais e estudantis, no entanto, se dá, sobretudo, por sua justificativa: para a Resistência, não se trata de uma decisão tática, imposta por circunstâncias específicas de tais categorias, mas sim um compromisso com a aplicação da tática da Frente Única. Novamente, a tática ganha um lugar de “tática privilegiada”, o que contradiz o próprio conceito. Afinal, se determinada posição não é flexível e circunstancial, não estamos falando de tática mas sim de princípios.

A pior distorção no conceito de tática de Frente Única por parte da Resistência, no entanto, é quando esta culmina, ao final, em seu exato oposto: a tática da Frente Ampla. Passadas as eleições de 2022, foi surpreendente ver muitos dirigentes defendendo que a Frente Ampla foi necessária para derrotar o neofascismo no Brasil. Assim, com a aparência de uma mera constatação eleitoral (a vitória da chapa Lula-Alckmin sobre a candidatura de Bolsonaro), o que se vê é uma revisão da tradição marxista-leninista sobre a constituição de Frentes Amplas para combater o fascismo, o que não passou à prova da história nem mesmo nas experiências recentes.

Não foi diferente o processo que levou Marta Suplicy à ocupar a vice na chapa com Boulos para a disputa pela prefeitura de São Paulo [21]. Evidentemente, nas eleições que ocorrem neste momento, todos os setores democráticos devem votar e fazer uma campanha militante pela eleição de Boulos/Marta, assim como elegemos Lula/Alckmin, não devendo ser poupados esforços para vencer Nunes e Pablo Marçal na maior capital do país. Esta luta política não deveria dar o direito, justamente por nosso compromisso com a classe trabalhadora, em normalizar o “esquecimento” de Marta como uma das maiores defensoras do golpe de 2016, transformando-a na grande referência para a população periférica, alimentando a ilusão no legado de uma Marta que já não existe mais.

Para não restar dúvida sobre a defesa política que a Resistência tem feito de frentes amplas eleitorais, Valério Arcary publicou um texto recente sobre as eleições de São Paulo, no qual afirma:

Mas seria um grave erro não compreender que somente com o voto da esquerda não é possível vencer. E não haveria tempo para “fazer a curva” em duas semanas de segundo turno. Boulos já fez um reposicionamento de imagem para diminuir a rejeição. Ela é muito grande porque há vinte anos Boulos tem a trajetória de um lutador popular. Se Boulos se apresentasse com o rosto das eleições de 2020, o animador do MTST, a eleição estaria perdida. Não é somente porque é candidato de uma coligação, embora isso seja importante. Acordos devem ser cumpridos. Sem o apoio de Lula é impossível vencer [22].

Ou seja, para Valério as inflexões políticas e programáticas da campanha Boulos – as quais, evidentemente, incluem a aliança com Marta, até ontem do MDB, o rebaixamento programático e a tentativa de dissociar a imagem de Boulos como uma liderança de movimento social – são uma necessidade para vitória. Assim, contradiz a si mesmo quando utilizou, em artigo já citado, a condição de vitória da esquerda nas eleições francesas. Claro, não será possível vencer e eleger Boulos prefeito somente com o voto da esquerda. Porém, deveríamos apostar que é possível vencer com o programa da esquerda, tal como ocorreu com a eleição da Nova Frente Popular (NFP) na França. “Vencer” à revelia do programa, não deveria ser uma opção para quem se diz revolucionário.

Na verdade, ao preocupante crescimento nas pesquisas de Pablo Marçal [23], até então considerado apenas uma figura excêntrica sem chances reais nas eleições, demonstra como um verdadeiro bandido pôde ascender sendo identificado como um candidato radical de extrema direita [24], desrespeitando todas as legislações eleitorais e se colocando como “outsider”. Diante da trágica possibilidade de ter São Paulo liderado por um tipo como Marçal, a pior estratégia possível é fugir do enfrentamento, acreditar em uma suposta desidratação ou despolitizar a campanha justamente quando aumenta a polarização eleitoral.

O que se repete, à exemplo do governo Biden-Kamala Harris nos Estados Unidos, é a evidência de que o rebaixamento programático — uma imposição pela conformação de frentes policlassistas — alimenta frustração, pela incapacidade de um programa para as grandes elites contemplarem as necessidades dos trabalhadores, jovens e, principalmente as parcelas mais oprimidas, diante da crise multidimensional em que vivemos.

A partir do momento em que o novo progressismo passa a ser, assim como os velhos reformistas em período de crises, identificados com o establishment, é alimentado o terreno fértil para o crescimento das ideias fascistas com seu discurso “antissistêmico” [25].

Capitulação ao lulo-petismo em nome de “não nos isolar das massas”

A política aplicada pela Resistência com relação ao lulo-petismo mudou de qualidade nos últimos dois anos, a partir das eleições que levaram ao governo Lula III. Até então, a corrente defendia a necessidade de construir a tática da Frente de Esquerda na luta e nas eleições, sem alianças com a direita, exigindo que a candidatura Lula assumisse uma vice dos movimentos sociais. Esta tática, independentemente dos debates táticos acerca das eleições naquele momento, era válida e mantinha-se no marco da estratégia de tirar Bolsonaro da presidência, defendendo um programa de esquerda.

A situação muda de qualidade quando se confirma a Frente Ampla, com características de unidade nacional, que levaram à composição de Lula com Alckmin, que dispensa caracterizações. Naquele momento, era nítido que o voto em Lula era necessário para derrotar eleitoralmente Bolsonaro, mas que a perspectiva seria de reedição dos governos de conciliação de classes, que levaram à ascensão da extrema direita no país. Diante das afirmações por parte do governo, de que era “preciso trocar teto por nova âncora aceita na Faria Lima” [26], estava explícito o caráter de classe do governo e o que tendia a nos esperar nos anos seguintes, sobretudo dada a situação de crise econômica em que vivemos. A adesão acrítica à campanha de 2022 por parte da Resistência e seus parlamentares é parte de uma armação revisionista que tem consequências graves na política da corrente hoje.

Os camaradas da Resistência poderiam argumentar, claro, que ali se tratava das eleições mais importantes da nossa geração. Ocorre que agora, em 2024, já não estamos sob o governo Bolsonaro. Vimos o governo implementando o Arcabouço Fiscal, uma medida comparável apenas ao Teto de Gastos do governo Temer; atravessamos uma importantíssima greve das Universidades e Institutos Federais, enfrentando a linha dura do governo; ao lado das empresas-aplicativo que superexploram a força de trabalho, o governo apresentou o PL1204 que significa um retrocesso trabalhista aos trabalhadores plataformizados e aos próprios direitos da CLT, como o salário mínimo; nesta semana, foi anunciado um corte de mais de R$5,5 bilhões na saúde e educação, reforçando o compromisso do governo com a austeridade fiscal.

Diante disso, o que tem feito a Resistência? Corretamente, se posicionaram contra o Arcabouço Fiscal [27], mas apoiaram a Reforma Tributária [28], criticando os deputados do PSOL que não votaram a favor da medida. São inúmeros os camaradas combativos que estão na Resistência e participaram da greve das federais, mas a corrente não assinou o manifesto contra o PL da Uber, após quase um mês sem se pronunciar publicamente sobre a medida que tramitava em regime de urgência. Nas redes sociais, parlamentares tiram fotos com Haddad, o ministro do arcabouço fiscal, e no 1º de maio, o dia tradicional de luta dos trabalhadores, lá estava a Resistência com seus parlamentares, tirando fotos com o presidente no palco em que era vetado manifestar solidariedade à greve das federais.

Reorganização pela direita versus reorganização pela base

O PSOL sempre teve, desde sua fundação, um setor que reivindica o Programa Democrática Popular, buscando reeditar a experiência petista. Isso é parte das características do partido que, também desde o seu início, se propunha a ser uma frente, nos moldes dos partidos amplos. A Resistência entra no PSOL em um contexto em que este setor reformista já era parte de sua direção e, como já citado, dizíamos: “não trilharemos este caminho”. Bem, não é preciso muito para constatar que quem mudou de posição foi a Resistência, e não a direção majoritária do PSOL. Tampouco a realidade mudou a ponto de impor “a reedição da experiência reformista do PT” como uma necessidade.

A análise da Resistência para justificar sua política no terreno da reorganização é a de que com o aprofundamento da correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora, ocorreu um fenômeno de recomposição do PT. Assim, alguns dirigentes chegam a conclusão de que o “espaço à esquerda” na reorganização já se fechou. Portanto, o que houver de reorganização hoje, será à direita do PSOL. Com esta análise, concluem que o desenvolvimento da reorganização se dará prioritariamente sobre as bases petistas e é aí que entra “A estratégia Boulos” [29]. Este texto de Arcary é exemplar sobre a visão da Resistência sobre o processo de reorganização da esquerda brasileira.

Nele constam as ideias de: a) hegemonia do lulo-petismo, como uma força “avassaladora”; b) a resiliência do lulismo associada à experiência interrompida pelo golpe de 2016; e, curiosamente, de que c) “o apoio a Lula tem dimensão programática, mas o voto em revolucionários para a presidência de um sindicato ou para parlamentares é pessoal.” e, por fim, que d) Boulos é uma exceção, porque superou o PT em SP, residindo aí o seu caráter estratégico.

Ou seja, para Valério Arcary e a Resistência, a política atualmente implementada por eles e sua localização no interior do PSOL justifica-se pelo fato de que o PT possui uma hegemonia sobre a classe trabalhadora que somente pode ser superada “quando forem esgotadas todas as expectativas em soluções negociadas” [30] por parte dos trabalhadores. Assim, atribui à subjetividade da classe o motivo de sua capitulação ao lulo-petismo. Como se não pudéssemos disputar esta consciência, concluem que nosso programa só poderá ser disputado quando se dissipar as ilusões reformistas.

A ideia de que o voto em Lula foi programático é totalmente falsa. Às vésperas das eleições de 2022, toda a imprensa noticiava a ausência de programa da candidatura Lula [31], a falta de definições sobre economia [32] e a ausência de um plano de governo mesmo após o 1º turno [33] . Esta foi a forma que o PT conseguiu construir uma frente amplíssima, do PSOL à Alckmin. Evidentemente, se o Arcabouço Fiscal tivesse sido apresentado durante a campanha eleitoral, por exemplo, poderia-se gerar uma crise com o eleitorado à esquerda, bem como qualquer sinalização programática em sentido oposto, como, hipoteticamente, a defesa da legalização do aborto, desagradaria o eleitorado à direita e sua superestrutura correspondende. Por este motivo, a exigência que a Resistência faz de “Lula, cumpra o programa das urnas” não faz sentido algum. Todos sabemos que o voto em Lula foi um voto para tirar Bolsonaro da presidência. Nenhuma linha de programa moveu os eleitores senão a necessidade imediata e urgente de tirar Bolsonaro do poder, como fizemos corretamente.

Agora, para concluir esta análise, impressiona as voltas que Valério Arcary dá para sua análise-justificativa. Para ele, não só o voto em Lula é programático como o voto em revolucionários do PSOL é “pessoal”. Ou seja, segundo ele, quando votam em uma deputada como Sâmia Bomfim, em nada tem a ver com as lutas travadas em defesa do aborto legal, contra os cortes de gastos nos serviços públicos, a defesa do MST contra os bolsonaristas e outros. Claro que para Valério o voto em Sâmia é “pessoal”, afinal, se não fosse, como justificar o espaço para ideias radicais em um contexto tão adverso e com tamanha hegemonia do lulo-petismo no espaço à esquerda?

Compartilho de uma visão totalmente distinta sobre o processo de reorganização. Entendo que a reorganização da esquerda brasileira, ou seja, o seu processo de transformação tendo em vista a superação (pela esquerda) das ferramentas forjadas no ascenso operário da década de 1980 — hoje já assimiladas pela estrutura do Estado — é um processo que está em curso. A reorganização da esquerda no Brasil pode ser menor ou mais lenta do que gostaríamos, mas existe, e se expressa nos processos de mobilização que passaram por fora da hegemonia petista. Junho de 2013, ocupações de escola em 2016, greve geral de 2017, tsunami da educação em 2019, ascenso antirracista e o Breque dos APPs em 2020, o anual acampamento Terra Livre que em 2021 reuniu mais de 7 mil indígenas de todo o país; marcha transmasculina neste ano, além de inúmeras greves, lutas territoriais e cotidianas que tem sido protagonizadas por jovens, precários, negros e mulheres.

Resgatar a capacidade de imaginar e criar um mundo ecossocialista

Olhando para trás, com a ajuda do tempo, é nítido hoje como a Resistência abandonou abertamente pontos centrais de sua constituição fundacional. Os mesmos que diziam que jamais estariam com a direção majoritária do PSOL, que buscava reeditar a experiência petista, não só mudaram de lado como se tornaram os maiores defensores desse “campo” político em um momento em que a independência política do PSOL nunca esteve tão ameaçada.

Este giro abrupto é justificado em nome do combate à extrema direita, mas, na prática, a dependência que esta corrente estabeleceu para com os seus aliados do PTL [PSOL de Todas as Lutas, bloco das correntes majoritárias do PSOL] a impede de ser consequente com essa tarefa, estratégica e decisiva para o futuro da classe trabalhadora, em nome de manter relações diplomáticas com setores que atualmente se movem por interesses pragmáticos na ocupação de espaços na institucionalidade.

Ainda assim, não está respondida a questão: como a esquerda brasileira morre? Em primeiro lugar, a esquerda deixa de cumprir o seu papel histórico quando se torna o establishment de um regime em crise e sem lastro social. Até aí, porém, não estamos falando de nada novo ao tratar do reformismo tradicional. O que é devastador e sintomático da crise estratégica que atravessamos, porém, é quando as organizações revolucionárias abrem mão de disputarem o seu programa sobre a realidade — o que inclui valer-se de toda a flexibilidade tática necessária — em prol da expectativa fracassada sobre uma possível volta ao passado.

Partir da ideia de morte da esquerda não significa, neste texto, de maneira alguma negar a necessidade histórica da disputa por um programa radical atrelado à uma prática revolucionária. Pelo contrário, reconhecer a crise é só o primeiro passo para sua superação. Não se trata também de negar a existência de uma militância abnegada que hoje atua no interior de movimentos sociais e organizações políticas de diferentes matizes, dos leninistas aos autonomistas, passando pelas mais variadas gerações.

Por outro lado, parte-se sim de uma constatação que se hoje nos encontramos em um cenário de enorme desconfiança com relação às organizações políticas isso se deve, entre outros fatores, ao fato de a maior parte das organizações reconhecidas publicamente como “esquerda” terem praticamente se fundido com o regime e suas instituições, se contentando em administrar a crise e sendo incapazes de vocalizar as reais demandas de uma sociedade que urge por saídas, sendo as forças dissonantes minoritárias para o estabelecimento de um projeto contra-hegemônico, tal como o momento exige.

Passa, também, por uma incapacidade de, como dizia Lênin, os revolucionários estarem tão ligados às massas ao ponto de fundir-se com elas. Hoje vivemos uma situação de enorme distanciamento de grande parte das organizações políticas de esquerda com relação às necessidades urgentes dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, de toda uma camada do ativismo que atua em suas frentes sem encontrar um correspondente destas lutas na superestrutura.

As tentativas, nesse sentido, muitas vezes se dão mais pela forma do que pelo conteúdo, vide a instrumentalização grosseira de demandas relacionadas ao reconhecimento/identidade para fins eleitorais; os lenços verdes desacompanhados de coragem para pautar na sociedade a necessidade de legalização do aborto; a falta de exigências pela ruptura das relações diplomáticas do Brasil com o estado sionista israelense e o baixo engajamento da militância nos atos contra o genocídio em Gaza, por correntes que supostamente defendem a causa palestina.

A extrema direita é uma força real em nosso país e no mundo, se alimenta do movimento fascista constituído desde 1930 e ganha força ao ocupar o espaço dos partidos tradicionais de direita. Trata-se de um programa contrarrevolucionário, sem nenhum compromisso com as instituições do regime e sem medo de agitar abertamente seu programa que combina o que há de mais reacionário em questões democráticas com o aprofundamento de uma economia neoextrativista e neoliberal. Encarar a necessidade defender um programa radical de ruptura pela esquerda é ser consequente com esse diagnóstico. Subestimam a extrema direita aqueles que acreditam que apenas dentro do jogo performático eleitoral derrotaremos a estratégia que mira para nossa própria destruição.

Nossa geração nunca esteve tão convocada, em sentido prático e urgente, a superar o modo de produção capitalista e suas forças destrutivas sobre a humanidade e a natureza. A crise de programa e prática dos partidos de esquerda deve dar lugar a projetos verdadeiramente contra-hegemônicos [34] que retomem o horizonte revolucionário, a confiança na soberania popular e persigam uma estratégia ecossocialista, buscando renovar a noção de partido inspirada nos movimentos do nosso tempo (sendo partido-movimento em seus múltiplos sentidos). Abandonar a autoproclamação é tão necessário quanto assumir a morte da esquerda, porque — como bons marxistas, somos materialistas — se um novo projeto revolucionário pode surgir e apresentar um horizonte de futuro aos de baixo, virá não apenas da força de nossas ideias, mas a partir das experiências, movimentos sociais e organizações revolucionárias existentes.

Notas

[1] https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html e https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/02/esquerda-morreu-e-extrema-direita-e-unica-forca-real-no-pais-diz-safatle.shtml

[2] A exemplo do texto publicado por Valério Arcary:https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-esquerda-brasileira-morreu/

[3] Sobre a importância da polêmica ver O papel da polemica em Lênin: https://traduagindo.com/2021/08/13/vladimir-ilich-lenin-sobre-o-papel-da-polemica/

[4] https://esquerdaonline.com.br/2016/07/10/e-preciso-arrancar-alegria-ao-futuro/

[5] Como minha experiência política se deu na trajetória que deu origem ao MAIS e não tive uma experiência de militância compartilhada com a ex-NOS antes da fusão, não irei desenvolver no texto uma caracterização mais precisa sobre este agrupamento e nem mesmo suas origens. Creio que vale registrar, ainda assim, que a NOS era um agrupamento combativo, já localizado no interior do PSOL, sendo que parte de sua coluna de quadros esteve entre aqueles que participaram do partido desde a sua fundação. Antes da fusão que deu origem a Resistência, a NOS se localizava no interior do PSOL na construção de um terceiro campo, sendo parte da oposição à direção majoritária do partido. No movimento social, a NOS animava a construção de uma Frente de Esquerda, o que teve repercussão sobre a vanguarda, sobretudo no Rio de Janeiro.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] “Defendemos a unidade deste terceiro campo também nas eleições municipais de 2016. Propomos ao PSTU, ao PSOL, ao PCB, às organizações políticas que não possuem legalidade e aos movimentos sociais a construção de uma Frente de Esquerda e Socialista, com um programa de ruptura com os planos de ajustes que são aplicados por todos os governos e prefeituras. Nos colocamos desde já a serviço dessas grandiosas tarefas.” — manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro”.

[12] https://esquerdaonline.com.br/2018/04/30/leia-o-manifesto-de-fundacao-da-resistencia/

[13] https://esquerdaonline.com.br/?s=antissistema

[14] https://operamundi.uol.com.br/opiniao/tres-taticas-frente-ampla-unidade-de-esquerda-ou-ofensiva-antissistema/

[15] Idem.

[16] TROTSKY, L. “O único caminho” (“Burguesia, pequena-burguesia e proletariado”). Op. cit., p. 290-293.

[17] “Os pequenos burgueses desesperados vêem no fascismo, antes de tudo, uma força que combate o grande capital, e acreditam que, diferentemente dos partidos operários, que trabalham somente com a língua, o fascismo utilizará os punhos para impor mais “justiça”.(…) O fascismo unifica e arma as massas dispersas; de uma “poeira humana” – segundo nossa expressão – faz destacamentos de combate. Assim, dá à pequena burguesia a ilusão de ser uma força independente. Ela começa a imaginar que, realmente, comandará o Estado. Não há nada de surpreendente em que essas ilusões e esperanças lhe subam à cabeça! Mas a pequena burguesia pode também encontrar seu chefe no proletariado. Assim o demonstrou na Rússia e, parcialmente, na Espanha. Tendeu a isso na Itália, na Alemanha e na Áustria. Infelizmente, os partidos do proletariado não estiveram à altura de sua tarefa histórica. Para atrair a pequena burguesia, o proletariado deve conquistar sua confiança. E, para isso, deve começar por ter confiança em suas próprias forças. Precisa ter um programa de ação claro e estar determinado a lutar pelo poder por todos os meios possíveis.” (TROTSKI, L. Aonde vai a França?, 1935)

[18] https://www.youtube.com/watch?v=uXo6AahhrQ8

[19] Para não tornar o texto muito extenso e maçante não entrarei em citações sobre a Frente Única, mas a leitura das Teses Sobre a Frente Única, aprovadas no IV Congresso da IC, são indispensáveis a quem queira aprofundar o assunto. Basta uma leitura para identificar que a tática da Frente Única em nada tem a ver com a “unidade” que tanto agitam no PSOL para justificar uma linha de adesão acrítica ao petismo. Disponível em:https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1922/02/frente.htm

[20] Não vou entrar aqui no mérito sobre a indisposição das direções majoritárias em travar uma luta consequente pelo Fora Bolsonaro, para fins eleitorais.

[21] Em artigo recente publicado no Esquerda Online, se repete a prática de chamar de “Frente de Esquerda” composições que na verdade são frente amplistas, o que contribui para confundir a vanguarda e desarmar a militância sobre quais tarefas esse tipo de aliança demanda dos revolucionários. Ver aqui: https://esquerdaonline.com.br/2024/08/16/eleicoes-2024-derrotar-a-extrema-direita-com-a-frente-de-esquerda/

[22] https://esquerdaonline.com.br/2024/08/21/eleicao-em-sao-paulo/

[23] https://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2024/08/marcal-cresce-de-14-para-21-e-empata-com-boulos-23-e-nunes-19-na-disputa-pela-prefeitura-de-sao-paulo.shtml

[24] https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2024/08/pablo-marcal-quatro-pontos-explicam-o-crescimento-do-candidato-do-prtb-na-pesquisa-datafolha-entenda.ghtml

[25] Sobre esse tema, ver Marcos Nobre: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-que-vem-depois-do-neoliberalismo/

[26] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/01/brasil-precisa-trocar-teto-de-gastos-por-regra-fiscal-crivel-di z-nelson-barbosa.shtml?utm_source=sharenativo&utm_medium=social&utm_campaign=sharenativo

[27] https://esquerdaonline.com.br/2023/05/29/por-que-nao-apoiamos-o-arcabouco-fiscal/

[28] https://esquerdaonline.com.br/2023/07/07/reforma-tributaria-avancos-e-limites/

[29] https://www.esquerda.net/opiniao/estrategia-boulos/88679

[30] Idem

[31] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63098307

[32] https://valor.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/30/lula-faz-aposta-em-frente-ampla-sem-definicoes-economicas.ghtml 

[33] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/09/campanha-de-lula-confirma-que-nao-tera-texto-final-do-plano-de-governo-no-1o-turno.shtml

[34 ] Sobre imaginação estratégica ver o excelente texto de Josep Maria Antentas: https://intercoll.net/Imaginacao-estrategica-e-partido-a-luta-lei-da-vida 

As ilustrações reproduzem obras de Kazimir Malevitch (1879-1935).

22 COMENTÁRIOS

  1. Confesso que não li o texto todo. Confesso também que tenho tenho preguiça de falar sobre a Resistência e mais ainda de debater as opiniões do picareta intelectual que chefia a corrente. No meu próximo intervalo irei ler o texto  de cabo a rabo, mas fico pensando se vale a pena falar tanto sobre uma estrutura que hoje nada mais é do que um cabide de empregos. Talvez o erro seja mesmo considerar que esses caras são “de esquerda”. Parecer (pelo discurso, pela fala, na superfície) ser algo não significa que ser algo concretamente, nas profundezas dos vínculos que se estabelecem (ou não) entre pensamento e prática. Concretamente, eles não são. Na prática, no campo das ações, são inimigos.

    *** *** ***

    Texto lido.  Se trata de mais um episódio das enfadonhas rivalidade entre as correntes do PSOL. Essa é inclusive a natureza desse partido; o enfado, a fadiga espiritual.

    Mas dois pontos desse texto cansativo e desnecessário me chamaram atenção:

    – O primeiro é a crítica direcionada a Resistência combinada com a defesa da candidatura do Boulos. Recentemente o UOL fez uma reportagem sobre o casal Natália e Guilherme. Nesse reportagem consta que Natália omitiu a união com o Guilherme no momento da assinatura do contrato de um apartamento do MCMV-E. Diz também que Natália assinou não apenas como proponente, mas também como representante da Entidade. Ou seja, além de não cumprir os critérios do programa (que nada tem a ver com a chantagem da lista de presença), Natália colocou a si mesma na lista de beneficiários. O que a reportagem não diz é que Natália também se beneficiou com o Bolsa Família. Ambos são objetos de investigação no MPF (caso contrário duvido que a grande mídia divulgaria o caso). O que a autora, que me parece fazer parte do partido do candidato tem a falar sobre isso? O partido, eu já sei que dirá “nada a declarar”.
    De onde esperamos nada, é onde nada sairá mesmo. Nada inclusive do ponto de vista imaginativo, já que a única opção que existe no horizonte dessas pessoas e da autora, a defesa do bem maior que beneficia a ninguém, só a quem ocupa e distribue cargos da institucionalidade burguesa, é a defesa de um arrivista inescrupuloso. Cade a dignidade desses tais revolucionários do texto? Cade o tal do brio? Deixem, deixem o bolo crescer! Ele fará terra arrasada onde já quase nada existe.

    – O segundo ponto é o grande nada, o grande vazio da conclusão do texto: “Nossa geração nunca esteve tão convocada (?), em sentido prático e urgente, a superar o modo de produção capitalista e suas forças destrutivas sobre a humanidade e a natureza.” Jura mesmo que a autora acredita nisso? “Sem catastrofismos”? Ou catastrofismos só quando interessa no discurso (parece que a autora aprendeu alguma coisa com o Arcary afinal).
    E vejam mais essa viagem… Que bolha! “virá não apenas da força de nossas ideias”. Que ideias?! Esse texto, o PSOL, os tais revolucionários, tudo o que vem dessa suposta esquerda vendida, é a expressão de um grande vazio de ideias, ou melhor, é expressão de pensamentos ruminantes que giram em torno de si, que saem do umbigo e retornam pelos fundos.
    E que baita gran filane de baixa genialidade: “mas a partir das experiências, movimentos sociais [MTST? Uma seita que oprime mulher preta e silência os dissidentes de formas inimagináveis para mentes inocentes como parece ser a da autora] e organizações revolucionárias existentes.” Que organizações revolucionárias existentes? As que existiam foram limadas grande parte inclusive pela ação dos dirigentes do MTST, mas não só. Ou a autora se refere aos setores minoritários do PSOL que ontem eram majoritários? De novo: que viagem! Que grande nada! Que enorme vazio!

    Aaaa mas o fantasma do fascismo vem por aí? Vendam suas almas! Salvem seu rei!
    *Uma observação adicional: esse papo de ecossocialismo me soa tanto a propaganda de um dos lados da disputa entre facções do capital em torno da matriz energética mundial…. Me soa tanto campanha paga…

  2. Ótimo texto. A Resistência nem parece mais ser parte da esquerda radical, fazem tudo que o Boulos manda e defendem o governo Lula mais que os próprios petistas. E tudo isso pra garantir seu lugar no trem da alegria do reformismo.

    Enquanto o arcabouço fiscal tá comendo o orçamento e o Lula já tá defendendo os futuros juros altos do BC mesmo depois do Campos Neto, essa turma emocionada tá tirando foto com Haddad e falando qualquer coisa na eleição. Depois não entendem porque o povo vota no Marçal.

    PSOL tem muita gente de luta, como o deputado Glauber
    Braga, a Samia Bonfim, mas depois que o partido entrou no governo quem manda é o Lula. E tome pau no lombo da classe trabalhadora…

  3. Oi, camarada. Apesar de você ter considerado o texto cansativo, desnecessário e enfadonho, responderei suas questões por respeito ao seu tempo de leitura e por quem mais vier a ler.

    1- O texto apresenta uma crítica direcionada à Resistência porque, como está na introdução, nele apresento os motivos pelos quais saí dessa corrente.
    2- Todas as críticas feitas ao PSOL e sua direção se aplicam a Boulos e seu agrupamento, que compõem a maioria do partido.
    3- Apesar disso, defendo a candidatura Boulos para não permitir uma vitória das candidaturas bolsonaristas em SP. Respeito sua posição, que imagino ser a abstenção do processo eleitoral, mas discordo.
    4- A emergência climática é um fato. Como não sou negacionista, realmente acredito na necessidade de superação do modo de produção capitalista como uma questão objetiva, assim como no ecossocialismo como aposta estratégica, o que não tem nada a ver com capitalismo verde etc.
    5- Por fim, sobre a possibilidade de um projeto conta hegemônico e revolucionário, apresento uma hipótese: não virá da academia e não se limita à propaganda. Acredito que apesar de a esquerda ter morrido como tal, há militantes revolucionários, correntes sérias dentro e fora do PSOL (ainda que insuficientes) e movimentos/lutas, a partir de onde pode surgir uma contraposição a lógica eleitoralista/institucional predominante no PT e também no PSOL.

    Espero ter dado mais nitidez as posições do texto. Um abraço.

  4. Camarada autora,
    Parabéns pela coragem de elaborar uma reflexão sobre sua experiência militante e pela tentativa de dar uma abrangência maior à reflexão.

    Esse tipo de reflexão é muito importante na medida em que se soma a outras sobre o que não fazer, ou sobre tentativas de inovar nas formas de organização e que acabaram indo para novos buracos. Vou colocar abaixo algumas reflexões que saíram neste site, todas muito valiosas. Para vc deve ter especial interesse o relato de dois ex-trotskistas, publicado há mais de uma década.

    Emancipação ao contrário: relatos de dois ex-trotskistas (1) e (2)
    https://passapalavra.info/2013/06/78276/
    https://passapalavra.info/2013/06/78308/

    Carta de saída das nossas organizações (MST, MTD, Consulta Popular e Via Campesina) e do projeto estratégico defendido por elas
    https://passapalavra.info/2011/11/48866/

    Os 51 e o MST: pensar sobre as organizações
    https://passapalavra.info/2011/12/49595/

    O movimento Passe Livre acabou?
    https://passapalavra.info/2015/08/105592/

    Duas ótimas Cartas de desligamento do MPL:
    https://passapalavra.info/2015/07/105177/
    https://passapalavra.info/2015/05/104551/

    Reflexões sobre a crise da esquerda, ecologia e identitarismo:
    Talvez. 1) Modelos falidos
    https://passapalavra.info/2022/10/145742/
    Sobre a esquerda e as esquerdas (1ª parte)
    https://passapalavra.info/2014/04/93811/
    Oito teses sobre o colapso da esquerda
    https://passapalavra.info/2022/03/142611/

    Há também aqui no site um texto de relato de anarquistas sobre suas militâncias, mas não localizei o título e link.

    E não deixa de ser sintomático da coerência do coletivo que publicou todos estes textos ele ter refletido sobre a crise ou anacronismo de si mesmo:

    O Passa Palavra chegou ao limite?
    https://passapalavra.info/2016/02/107594/

    Esses textos podem te interessar e te mostrar que vc não está sozinha na história das decepções com a militância, e te dar pistas para se localizar na neblina. Esperamos que o tombo não te leve a desistir de ter uma prática de luta. Isso posto, sinto te informar, mas vc estava construindo o que há de mais velho e ultrapassado no plano das lutas de esquerda. O nosso contexto é de crise terminal do que veio depois dos partidos de esquerda que almejam chegar ao poder, ou seja, os movimentos sociais de massa, os coletivos autonomistas de esquerda. Esse novo já é velho faz tempo e sua experiência se deu no velho do velhíssimo.
    Nos vemos nas próximas trincheiras.

  5. Vanessa, depois que sai do MTST passei uma temporada curando minhas feridas na Resistência. Foi uma temporada breve porque logo o mtst me tirou de lá também (verdade também que não fui passiva nesse afastamento), condenando a morte uma estrutura transversal ao parido e quase independente coordenada por mim (e por outros bem-intencionados mas com menos disponibilidade de tempo e menos “sangue nos olhos”, para ser justa). Teu texto tem a mesma estrutura cansativa, enfadonha e desnecessária dos textos que circulam internamente. E, o pior, de novo, são textos que ruminantes. A Resistência estuda a si mesma, sai de si e retorna para si, é obtusa e por isso está tão distante, tão mais próximo do velho do que do real.
    Quanto a defesa da candidatura, novamente, considero uma falta de brio, uma falta de dignidade defender uma pessoa autoritária vinda de um movimento antidemocrático, uma personalidade vaidosa, egoísta, preocupada meramente com um projeto individual de poder (e a razão do apartamento em nome de sua esposa é essa é só essa). Usando de um exemplo anacrônico: Stalin ou Hitler? Essa é a escolha que vocês nos propõe. Não é que eu defenda voto nulo, é só que eu sei que da institucionalidade burguesa sai nada, ou melhor, sai atraso. Não houveram avanços, o que houve foi a construção de um discurso para tentar fazer crer que uma derrota é uma vitória (nisso o PT, os sindicatos e o MTST são diplomados). Esse é o limite imaginativo. Um limite não só pobre, um limite perigoso. Se não se imagina uma alternativa para além disso, uma forma de atuar para além da institucionalidade burguesa, também não se constrói nada, o futuro jaz condenada ao nada.

    Parabéns por ter saído da Resistência. Espero que nem no PSOL permaneça. Torço por isso. Boa sorte, companheira.

  6. Vanessa,

    Admiro sua atitude de fazer um balanço político ao romper com sua organização. É sempre uma pena ver militantes abandonarem a vida política sem ao menos tentar formular reflexões sobre processos de ruptura.

    Se me permite, gostaria de pontuar algumas questões:

    Concordo com a tese de morte da esquerda, mas sinceramente não faço disso um lamento. Para justificar-me, preciso questionar o que é isso que você chama de esquerda? Ora, só consigo enxergar uma coisa: a social-democracia e suas linhas auxiliares, como o trotskismo. O que essas correntes têm de revolucionárias? Nada. A social-democracia é uma corrente que remonta ao lassallianismo que Marx e Engels tanto combateram. O mais irônico é ela frequente se apresentar travestida de marxismo, justamente para fazer os gostos dos militantes marxistas mais dispostos a negociar seus princípios no mercado de peles de cordeiro. Esses marxistas superestimam sua capacidade de radicalizar a social-democracia infiltrando-se nela, e subestimam a capacidade desta de adestrá-los nos quatro muros do seu quintal. Foi essa social-democracia que cumpriu o papel de coveira da revolução alemã de 1918. Convenceram os trabalhadores de que a revolução já havia cumprido sua tarefa: a transformação da monarquia em república. Dever cumprido, podem entregar suas armas e voltar para casa, agora nós, os dirigentes do povo, consolidaremos as conquistas democráticas. Os que se opuserem serão democraticamente executados por serem inimigos da revolução. Desde então, ficou muito claro para a burguesia a tarefa histórica da social-democracia: a contrarrevolução. E quando os socialistas/democratas não forem capazes de fazer seu trabalho sujo, apoiaremos o governos dos fascistas. Bem, chegamos em um momento em que, de fato, a esquerda está perdendo a mão, ou seja, não está sendo uma boa dirigente do Estado capitalista. Como você mesma admite, a classe trabalhadora está extremamente desconfiada das organizações de esquerda, e com uma boa razão, pois ela é agente do seu inimigo, a burguesia.

    O trotskismo, ao contrário da social-democracia, tem raízes revolucionárias. Contudo, com a derrota da onda revolucionária que atravessou os anos 10 e 20 do século passado, essa corrente dá uma guinada oportunista que a afasta de qualquer perspectiva revolucionária, passando à defesa de uma aproximação dos partidos socialistas, seja através do famigerado entrismo, seja através da tática da frente única. Foram essas posturas que afastaram o trotskismo da esquerda comunista italiana quando estas duas correntes buscaram costurar uma oposição de esquerda saída da III Internacional, já dominada pelo stalinismo. Quando os “bordiguistas” lançaram críticas ao oportunismo de Trotsky, este cortou qualquer canal de diálogo com os italianos. Trotsky assume a defesa do Estado soviético (que lamentavelmente você chama de “operário”) e a luta contra o fascismo. Ora, lutar contra o fascismo não é abrir espaço para a defesa da forma democrática do capitalismo? Não foi isso que o POUM fez na guerra civil espanhola? Esse processo consolida o papel histórico do trotskismo após os anos 20: direcionar as energias radicais para a defesa do capitalismo democrático, a se diluir na social-democracia contrarrevolucionária. Em outras palavras, o trotskismo é um domesticador de marxistas, sobretudo quando os convence a defender a democracia que precisa ser destruída para que a revolução seja vitoriosa. É por essas e outras que acho irresistível não concordar com Jean Barrot quando ele afirma que o antifascismo é o pior produto do fascismo.

    Vanessa, acho que você compreende bem que:

    “se hoje nos encontramos em um cenário de enorme desconfiança com relação às organizações políticas isso se deve, entre outros fatores, ao fato de a maior parte das organizações reconhecidas publicamente como ‘esquerda’ terem praticamente se fundido com o regime e suas instituições, se contentando em administrar a crise e sendo incapazes de vocalizar as reais demandas de uma sociedade que urge por saídas, sendo as forças dissonantes minoritárias para o estabelecimento de um projeto contra-hegemônico, tal como o momento exige.”

    Penso que sua formulação é perfeita, mas veja, fundir-se com as instituições democráticas burguesas não é justamente o resultado a longo prazo da tática da frente única? Como evitar a degeneração ao se inserir justamente na via de transmissão da política social-democrata? Com boa vontade e convicção? Será que o ser social é determinado por sua consciência? Nada mais marxista.

    Na minha visão, enquanto você continuar assumindo o ponto de vista e os vocabulários dessa esquerda falecida (ecossocialismo, Estado operário, antifascismo, etc), ainda que de forma crítica, você se posiciona no campo político da contrarrevolução, que melhor faz seu trabalho em nome da revolução.

  7. Por um momento achei que estivesse em mais um desses sites genéricos trotskistas. Me pergunto, sinceramente, se esse texto tem algo de anticapitalista (tal como definido nos critérios de publicação do site) quando na prática é só, mais uma vez, um retorno as velhas polêmicas e práticas do trotskismo, que apesar dos rachas e das críticas, volta sempre pro mesmo lugar sem avançar um passo sequer. O trotskismo é a esquerda do capital, e se o stalinismo é tão danoso – e certamente o PP não publicaria um texto de alguém que se dissesse stalinista – me pergunto que contribuições reais para as lutas e para as reflexões anticapitalistas um texto desses apresenta quando se mantém na defesa dos esquemas democráticos e até na defesa do candidato Boulos – figura contrarrevolucionária conhecida e que algumas experiências já relatadas aqui nesse site (como a de Liv acima) reforçam a ideia de que não se trata de um sujeito do nosso lado da trincheira.

  8. Oi Vanessa,
    É uma surpresa encontrar seu texto no Passa Palavra. Por um lado, parece sinalizar um interesse de interlocução com um campo diferente daquele de onde você formulou suas críticas, o que é massa. Por outro, faz pensar também que este é um espaço raro para críticas públicas dos problemas internos da militância.
    Quanto ao conteúdo do texto, eu compartilho de muitas das críticas que já foram feitas nos comentários, isto é, diria que o buraco é mais embaixo e que se for pra levar a sério a ideia de uma “morte da esquerda” (não tenho certeza sobre essa formulação, mas vale pra discussão), não se salvaria voto no Boulos, eleições, trotskismo etc.
    Em outro sentido, seu texto me esclareceu o que passa pela cabeça dos companheiros da Resistência, pois vendo de fora sempre me intrigou como uma militância vinda do PSTU aderiu com tanto afinco à defesa do PT dentro PSOL. Agora as análises de fundo ficam mais claras (ainda que me soem bem mecânicas as posições que você apresentou do Valério, dá pra entender como se constroem as justificativas políticas pra caminhos bizarros tipo se aliar às velhas direções do PT no sindicalismo).
    Fora isso, seu texto é atravessado por uma noção, comum em muitas conversas de militantes organizados, que espera por uma “reorganização da esquerda” por vir. Eu escuto conversas sobre isso desde que comecei a militar, em 2010, mas me pergunto o que seria esse momento esperado de reorganização, já que essa noção mais ou menos vaga vem acompanhada de uma visão cíclica da política, como se processos tais quais os que levaram à formação do PT se repetiriam etc. Será que tem “reorganização” por vir mesmo? Faria a provocação de se é um acerto pensar em “reorganização da esquerda”, e, no tom de outros comentadores, diria que faria mais sentido pensar em algo como “reorganização da classe” ou “reorganização das lutas”, mudando o enquadramento do problema — da política teatral burguesa para o terreno do conflito social concreto. É mais por aí que entendo as coisas.
    Por fim, enxergo que seu movimento de crítica não é solitário. Tenho encontrado com surpresa feliz companheiros que lá pra 2013 estava no PSOL e no PSTU, portanto com quem eu tinha divergências grandes à época, que hoje se veem frustrados com os rumos das organizações partidárias que se dedicaram a construir nesses anos e estão repensando os termos da sua atuação, num sentido mais fiel, diria, ao que vivemos juntos em 2013 independentemente da corrente a qual éramos ou não filiados. Que venham coisas novas e boas daí.
    Abração saudando sua iniciativa

  9. “A esquerda morreu”, disse a Esquerda Morta

    Espero que o PassaPalavra não vire só mais um cemitério!

  10. Votar é a justificativa ideológica para a nossa irresponsabilidade coletiva e nosso despejo de fato político.

  11. Escrevi um comentário a respeito das eleições de 2024 para os camaradas virtuais das minhas redes sociais. Talvez possa suscitar algumas ideias para nossa camarada psolista, autora desse artigo.

    MINHA CONTRIBUIÇÃO PARA AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2024:

    SOBRE O MOVIMENTO:
    Anos atrás eu pensei em me filiar ao PT. MAS, por um sentimento ainda fraco de descrença na política institucional, eu decidi buscar o MTST. Fiz isso justamente porque na época o movimento alardeava que não tinha vínculo político com nenhum partido. Entretanto logo em seguida Boulos saiu como candidato á presidência. Ou seja, num pulo cai do cavalo e me vi conduzida a entregar panfletos nos semáforos e nas saídas de metrô.

    Aos poucos compreendi que todo partido político (toda organização voltada, inteiramente ou não, diretamente ou transversalmente, para a política institucional burguesa) é representante de alguma facção do capital. Antes isso não me parecia tão óbvio, ou melhor, não me parecia tão ruim, tão promíscuo.

    Com algum atraso pude constatar que mesmo o MTST, apesar da propaganda, sempre teve vínculo partidário, isto é, que a atuação político-partidária do movimento não começou com sua estreia na corrida eleitoral de 2018.

    O MTST foi criado como um braço necessário do PT para cumprir uma função similar àquela cumprida pelo MST em um momento em que o partido estava se adequando à exigências políticas após a última derrota eleitoral de Lula contra FHC (adequação bem-sucedido pois viabilizou a vitória petista em 2002 que, por sua vez, veio acompanhada por um período previamente combinado de trégua dos movimentos sociais hegemonizados pelo partido).

    A criação do MTST se deu em um momento em que já existia um movimento frequentemente espontâneo e crescente por moradia nas cidades. A tal marcha do MST de 1997 serviu como mecanismo deliberado de sondagem e entrismo de militantes destacados para construir um instrumento urbano que espelhasse o formato do instrumento de mobilização de massas rurais. Portanto o MTST é um movimento ARTIFICIAL (e, ou em outras palavras, oportunista) criado por vontade de um partido político para atuar no âmbito urbano em um momento em que o sindicalismo lulista já dava sinais queda potencial como força de mobilização de massas ou, no mínimo, em um momento em que o PT percebeu que a mobilização sindicalista não era suficiente para produzir a quantidade de votos necessária para o cargo de presidente.

    O PT junto com braços remanescentes dos movimentos eclesiais de base já hegemonizava as ocupações de prédios (um exemplo de uma organização hegemonizado pelo PT é o Movimento de Moradia no Centro – MMC), mas faltava ainda um braço que hegemonizasse as ocupações de terras urbanas ainda não edificadas, ou seja, terrenos periféricos. A fundação do MTST atingiu não só a dimensão da mobilização de base, mas também a dimensão dos interesses econômicos. Ao contrário do que as mentes mais ingênuas se esforçam em acreditar, atingiu não como frente de ataque ao capital latifundiário, e sim como frente de colaboração entre capital fundiária e capital financeiro através do campo da construção civil. Isso porque o MTST foi concebido não apenas enquanto instrumento de mobilização de massas, mas principalmente enquanto política habitacional e a prova disso é que no fim o MTST funciona (hoje e já há algum tempo) como Banco de Terras – em um formato muito similar ao Banco de Terras das grandes construtoras ou de seus grandes terreneiros parceiros – capaz de estabelecer oportunidades interessantes para o grande capital.

    Em resumo: O MTST é um movimento artificial criado como instrumento de controle social capaz de extrair capital eleitoral através da ação de massas e como modelo de política habitacional popular na condição de gestor (Entidade Organizadora) e Banco de Terras a ser negociado com os demais atores do setor (parte integrante da rede de relações econômicas do capital imobiliário).

    [É de se pensar SE, de forma deliberada ou não, o movimento não cumpre também a função de um experimento social. O MTST é movimento legalista que não pretende “ocupar, resistir e morar aqui” e sim apenas ocupar, resistir o suficiente para produzir mobilização midiática e morar onde a institucionalidade burguesa considerar mais conveniente no limite legal entre o direito à moradia e o direito à propriedade privada. Também por essa razão suas ocupações são de tipo artificial. Uma ocupação desse tipo é e sempre será, no limite, um laboratório onde é possível colocar em teste práticas de controle social. Não é por acaso que o MTST não apenas adquiriu só a fama (impulsionada por uma tese de pós-graduação escrita pelo filho de médicos sanitaristas) de “curar” casos de depressão, mas também de acabar relações afetivas anteriores. Tenho dúvidas quanto ao potencial de cura de uma ocupação. Não tenho dúvidas do potencial que a direção muito bem ferramentada tem de promover a substituição de um relacionamento abusivo por outro.]

    * * * * *

    SOBRE O LIDER DO MOVIMENTO:

    Ontem, antes de dormir, assisti ao debate eleitoral promovido pelo UOL e pela Folha de São Paulo. E hoje acordei com o seguinte pensamento: às vezes Marçal me parece movido por um ímpeto voluntarismo. Não se sabe bem de onde veio o candidato, nem quem do grande capital o apoia. Significa que ainda não consigo ver com clareza o que esconde a aparência superficial do rapaz que esfregou uma Carteira de Trabalho na cara do líder sem teto que teve o teto bancado pelo pai-médico sanitarista. Não tenho dúvidas de que Marçal é representante de uma facção do capital. Mas sei que a diferença entre as facções são meras nuances. A facção do líder sem teto conheço melhor. Assim como Marçal, Boulos também está colado à uma aparência voluntarista. Vamos ver se consigo desenvolver essas impressões:

    Boulos saiu da UJC em 2000. Em 2001 é internado supostamente para tratar uma crise de depressão. Os pais de Boulos são médicos sanitaristas vinculados a USP, assim como eram os secretários de saúde das gestões municipais de Erundina e de Marta. Não exigiria muito esforço imaginar que Boulos “foi levado” (para usar termo de seu próprio pai) por ponte estabelecida pelos pais doutores ao partido. Em entrevista dada em 2018  para a Band [1] o pai-doutor diz que “ele nunca quis” e que “ele foi levado”. Eu acredito que em 2001, a princípio, ele não tenha querido. Eu acredito que na data da internação (olha só que coincidência, no mesmo hospital que tratou o mutante Arnaldo Antunes) ele não queria mais que nada com nada. E eu acredito também que um bom pai ou no mínimo um pai formado em medicina, nesta situação, atuaria para encaminhar um filho-problema desse tipo.

    Bom, se as coisas se deram dessa forma ou de outra, não importa tanto. Importa que há indícios de que Boulos, apesar da crença ingênua em seu ímpeto voluntarista de origem, não brotou no movimento e sim foi levado ao movimento através da atuação de petistas nas ocupações do centro de São Paulo.

    A primeira menção ao Guilherme em contexto vinculado ao MTST data do final de 2001, o mesmo ano da internação no Hospital do Servidor. O registro que me refiro é uma entrevista dada ao professor Hector Benoit, que morreu subitamente no ano eleitoral de 2022, no acampamento Anita Garibaldi em Guarulhos (território ainda existente, hoje um bairro pouco comentado pela cúpula atual do MTST por se tratar de um completo fracasso não porque não produziu moradia, mas sim porque fugiu do controle da direção do movimento por razões que não convém explicitar neste momento para não complexificar ainda mais esse embolo). Benoit começa o texto publicado na revista Crítica Marxista (v.9 n.14, 2002)[2] dizendo que “em um prédio ocupado, no centro de São Paulo, um edifício tomado pelo MMC (Movimento pela Moradia no Centro [cuja liderança é/era o petista Gegê, Luiz Gonzaga da Silvia, defendido em 2004 pelo advogado Luís Eduardo Greenhalgh [3], vice-prefeito da gestão de Luiza Erundina]), nos encontramos com Guilherme” e desse encontro eles seguem para o Acampamento Anita Garibaldi. No acampamento Guilherme confessa a tarefa que lhe foi atribuída (e que por todos esses anos seguiu sendo atribuída quase que exclusivamente a ele e aos raríssimos, limitados e vigiados militantes autorizados por ele): “Eu sou uma espécie de relações externas do movimento, estou mais fora do acampamento do que dentro do acampamento e faço o enlace com os movimentos, com os partidos, esse é meu papel.” Pois é, sempre foi. Guilherme é um cínico profissional, mas essa fala é talvez um dos únicos lapsos de sinceridade. Além dessa fala e do vínculo com o momento sem teto do centro, outro indício que Guilherme nunca foi um jovem voluntarista que simplesmente brotou em uma ocupação e perdeu seus sapatos em fuga (existe essa historinha folclórica, e é até engraçada de tão falaciosa) e sim um militante partidário cumprindo sua tarefa é o vínculo esclarecido na entrevista já mencionada com a Consulta Popular, corrente vinculada ao então petista e, posteriormente, psolista Plinio de Arruda Sampaio.

    Guilherme “foi levado” o MTST [novamente: um movimento artificial criado como instrumento de controle social capaz de extrair capital eleitoral através da ação de massas e como modelo de política habitacional popular na condição de Entidade Organizadora e Banco de Terras] para cumprir primeiramente o papel de gestor do capital político produzido nas ocupações. Posição essa que possibilitou que hoje ele caminhasse de forma tão oportunista pela via pavimentada pelos sem tetos e pelos raros coordenadores bem-intencionados que se perderam no árduo caminho de permanecer em luta como explorados tarefeiros sem remuneração (não me refiro aqueles filhos da classe média que se beneficiaram com a Bolsa-militante, digo, com o auxílio-aluguel, o bolsa família e o MCMV-E).

    [1] https://www.band.uol.com.br/eleicoes/noticias/ele-nunca-quis-diz-pai-de-boulos-sobre-carreira-politica-16308281
    [2] https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/cma/article/view/19714/14226
    [3] pesquisem.

  12. Liv, você tem conclusões corretas sobre a característica do MTST hoje. Mas se apressa ao projetar retroativamente essa caracterização. A história tem sempre bem mais nuances. Se certa tendência prevaleceu, ainda que estivesse contida ali desde o início, isso não faz dela a única. Corre-se o risco de reduzir tudo a teorias da conspiração. Como você mesma reconhece, o Anita Garibaldi é um bairro que revela um outro MTST, hoje enterrado. Voltando aos anos 1990, as coisas eram bem menos simples, e a relação do próprio MST com o PT era marcada por tensões, pois ainda que umbilicalmente ligados, o primeiro atravessava um período de acirramento dos conflitos e o segundo, um período de acomodação à ordem. A força da marcha de 1997 condensa essa ambiguidade. Mas o MTST não estava no plano, ele foi antes resultado do próprio desenvolvimento social das lutas por terra que, encostando cada vez mais em áreas urbanizadas, começa a se confundir com a demanda da moradia, especialmente no estado de São Paulo. Não era o plano da direção nacional do MST, tanto que a criação do MTST não foi bem acolhida; daí a origem de outra sigla urbana, paralelo e concorrente, mas sob controle da direção, o MTD. E daí também a separação de caminhos entre MST e MTST nos anos 2000, com o segundo reduzido a um movimento localizado a municípios do sul da Regiao metropolitana de Sp. Chega a ser estranho lembrar hoje que o MTST já foi filiado à Conlutas e próximo do PSTU. Guilherme é uma figura desse período pós separação com MST, e de certa forma sua ascensão tem a ver com a transformação do movimento no que é hoje, desde a adoção de sistemas de listas e pontuação, até chegar na estrutura que você descreve. Quem conheceu a luta por moradia em São Paulo nesse período sabe que MTST não se dava bem com os movimentos de moradia petistas tradicionais – do centro e da periferia. Você fala da família do Guilherme, mas o dado mais relevante é que esse sanitarista pertencia ao alto círculo do PSDB. Isso explica parcialmente o velho estranhamento, já que certamente abriu portas em negociações com o governo estadual. Isso explica por que existiram duas frentes para defender a Dilma, concorrentes: a Brasil Popular (MST/PT) e a Povo Sem Medo (MTST/PSOL). Mas veja, são nuances que vão se perdendo, já que hoje terminam todos – inclusive o PSDB kkkk de mãos dadas.

  13. De que ambiguidade você se refere quando fala sobre a marcha de 1997? Não entendi.

    Sobre o MTST estar ou não nos planos. Naquele mesmo ano, em Campinas, no mesmo território que o MST destacou seus primeiros militantes (que não foram, como dizem, ao socorro da ocupação Parque Oziel, e sim ao entrenismo que viu na necessidade daquelas pessoas uma oportunidade de colocar em pratica as resoluções que vinham sendo ensaiadas desde pelo menos o 3° Congresso Nacional do MST ocorrido em 1995), existia já um MTST. Que some do mapa assim que o MST deriva de si, como quem reinvindica para si o registro da marca, um MTST próprio. A não acolhida do MTST por este ou aquele setor do MST pouco importante. Até porque a decisão foi tomada em outros termos. Não sei se todos sabem como o nome de uma ocupação é escolhido: depois de adentrar sorrateiramente em um terreno (escolhidos a dedo? Não sei… Mas sei de várias coincidências… Como, por exemplo, que a securitizadora do proprietário do terreno ganho da Ocupação Copa do Povo é a empresa Gaia, a mesma que colaborou com o MST em sua entrada na Bolsa de Valores, a mesma que foi no passado defendida pelo advogado e grande doador de campanha Walfrido Warde, colega de faculdade do Guilherme e amigão do conservador de direita, como se isso significasse alguma coisa hoje em dia, Reinaldo Azevedo), passar a noite em claro e angariar nas primeiras horas do dia os primeiros adeptos, a coordenação chama uma assembleia para decidir o nome da ocupação. Os nomes surgem aparentemente de forma espontânea. Imaginem se isso é possível, espontaneamente surgem nomes como Carlos Lamarca ou Palestina entre o povo de baixíssima escolaridade recém-chegado… Então o bom orador chama para uma votação e as pessoas imaginam que escolheram ali, juntas, ativamente, o nome da ocupação. Essa tática de conduzir com ares de democracia uma reunião cujos encaminhamentos já foram definidos entre uns poucos em data anterior é velha. Algumas táticas do MST foram muito bem assimiladas pelo MTST, não acha?

    Tem também quem acredite, por exemplo, que apesar de vozes desgostosas, a decisão da primeira candidatura no MTST for tomada no diálogo direto com a base. Teve até votação! Quem sabe sabe que pouco importa a base se os bons oradores estão ali à postos.

    Sabe a quem teu comentário me fez lembrar? Ao Leôncio Basbaum e sua coleção “História Sincera da República”. Os quatro volumes da coleção são quase desconhecidos porque sempre há quem prefira ler Lilian Schwarcz. Parece ser o caso do Charles A45.

    Mas o convido à reflexão: Você acharia que a historinha oficial soaria crível se não contassem também que fulano ou ciclano desgostou da decisão, mas acabou acatando por amor ao espírito democrático burguês?

    Além das ideias que foram surgindo (plantadas) no interior no MST a respeito na integração das lutas no campo com as lutas na cidade, é interessante notar que essas ideias acompanham a seguinte série de engenharia jurídica:
    1989 – PMDB Municipal, Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB)
    1989/1993 – PT Municipal, Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal (FUNAPS)
    1993 – PMDB Nacional, Criação Fundos de Investimento Imobiliário – FIIs (intuído pela CVM)
    1995/2000 – PMDB Mário Covas, Programa Paulista de Mutirões
    1995 – PMDB Nacional, Programa Carta de Crédito FGTS – CCFGTS
    1995 – PMDB Nacional, Programa Carta de Crédito SBPE – CCSBPE
    1997 – PMDB Nacional, Criação Sistema Financeiro Imobiliário – SFI (instituições financeiras no setor + alienação fiduciária + captação de investidores institucionais, fundos de pensão, banco de investimentos e recebíveis imobiliários)
    1997 – PMDB Nacional, Criação dos Certificados de Recebíveis Imobiliários – CRIs
    1997 – PMDB Nacional, Criação das Letras de Crédito Recebíveis – LCIs
    1997 – PMDB Nacional, Programa Apoio à Produção
    1997 – PMDB Nacional, Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Habitat (PBQP-H)
    1997 – PMDB Nacional, Programa Pró-Moradia
    1997 – PMDB Nacional, Programa Habitar
    1999 – PMDB Nacional, Programa de Arrendamento Residencial (PAR)
    1999 – PMDB Nacional, Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH)
    2000 – ETC! Toda essa engenharia que prova que não existe direita e esquerda, existe penas facções do capital, vai dar em que? No subprime lulista.

    Eu disse no comentário anterior que esse período (1997 – 2002) era de uma adaptação que tornaria viável a eleição do Lula, certo? Pois é, adaptaram o projeto político e criaram novos instrumentos para fazer frente ao desgaste do antigo. Você citou a Dilma… Que presença era numericamente mais relevante no dia do fla-flu? A do MST ou a do MTST? Será que vamos precisar pedir as listas de presença para ver que ganha essa aposta? De qualquer forma, não importa. Não importa mais se estão mais pra cá ou mais pra lá de uma ou de outra facção do capita e é isso que a lista que acabei de fazer prova.

    O objetivo da caracterização retroativa foi evidenciar (fugindo das cínicas narrativas oficiais, que são pelo visto as referências de Charles A45) a seguinte definição: O MTST é um movimento artificial criado como instrumento de controle social capaz de extrair capital eleitoral através da ação de massas e como modelo de política habitacional popular na condição de gestor (Entidade Organizadora) e Banco de Terras a ser negociado com os demais atores do setor (parte integrante da rede de relações econômicas do capital imobiliário).

    * * * *
    Sobre a Conlutas, eu não acho estranho o MTST ter se filiado para em seguida esvaziar a Conlutas. Esta tática parece até ter se repetido em outros momentos. Vou contar uma historinha movida pelo ímpeto de Basbaum:

    Vamos juntar as informações de duas fontes: O vídeo recentemente publicado nas redes sociais do Guilherme em que Natália tenta, avisada previamente pela sacana redação do UOL, explicar de forma dissimulada o fato dela ter sido beneficiada por um MCMV-E e uma entrevista dada, salvo engano para a revista Mariclare (que revolucionária, em?!) [1]. Nessas ocasiões Natália conta: “Um dia, lá pelos seus 17 anos, ainda morando com os pais, abriu a janela do quarto em que dormia e avistou um imenso acampamento povoado por lonas pretas. Arrastou consigo o namorado da época e foi conhecer o lugar.”. Olha aqui de novo a imagem do ímpeto voluntarista. Qual é a razão disso? Talvez para ganhar a simpatia da base? Bom, Natalia ganhou tanto que ganhou até um MCMV-E para chamar de seu (presenteou a si mesma, na verdade). Pensando que o pai (PT – PSOL), o irmão (ALESP/PT desde pelo menos 2003) o namorado (juventude do PT-MTST), senão ela mesma, estavam envolvidos com política partidária, não me parece crível que em um belo dia de 2004 Natália decidiu brotar em uma ocupação.

    Mas o que eu pesco dessa introdução é outra coisa: o tal do namorado, um talentosíssimo orador a quem eu dedico a música “Tô” do genial Tom Zé. Patrocinado no passado pelo auxílio-aluguel e pela ong internacional Change (que também patrocina militantes do MST), hoje podemos dizer que venceu na vida pois é sócio uma empresa de interesse imobiliário cujo capital social declarado na Receita Federal é de R$1.394.818,53.
    Bom, este rapaz brotou e não brotou pela primeira vez no MTST em 2004. Também brotou e não brotou em 2005, vejam só que curioso, no movimento Passe Livre! Olhem aqui o que consta registrado na tese de doutorado de Diego Marques Pereira dos Anjos (desconheço essa pessoa, mas sou muito grata pelo quase aleatório feito pelo autor) (peço desculpas, mas ficará um pouco longo):

    “Além do aparente esforço de manutenção do Comitê, o que chama atenção é a satisfação com a saída do PSTU: este “dominava, pintava e bordava”, mas a realidade hoje é outra e o Comitê é “apartidário”. O autor da postagem, [fulano de tal], parece que não se manteve por muito tempo no Comitê, e na internet não há nenhuma informação sua. É certo que naquele momento ele era um secundarista postando convite para participar das reuniões do Comitê. E o que impressiona é que [fulano] era de outra “juventude do PT”, a corrente “Vamo Batê Lata”, que segundo comentários à postagem: “Esse Vamo Bate Lata é ligado ao PT sim, infelizmente, mas não se preocupem que apenas uma ou outra pessoa participa desse comite, por isso qualquer estudante independente e libertário tem espaço para participar desse comitê”.”
    “É importante observar que, mesmo pertencendo a um grupo que identificam como vinculado ao PT, [fulano de tal] reforça, na sua postagem, a crítica da burocracia, finalizando-a da seguinte maneira: “ME “VAMO BATE LATA” EM OPOSIÇÃO A BUROCRACIA… E EM UMA ALTERNATIVA AO SECTARISMO. ESTUDANTES AS RUAS!!!!”. A existência efêmera deste grupo (além da postagem não localizei mais nenhuma informação sobre quem eram) somada à força da tendência anarquista no Comitê, levaram o autor da postagem a ter uma consciência bem peculiar da realidade, já que ao mesmo tempo estava em uma organização com vínculo partidário, defendia o apartidarismo, e opunha-se à burocracia.”

    É… Parece que esse povo do PT, digo, do MTST sempre foi uma pedra no sapato calçado do PSTU.

    Sabem do que mais? Esse fulano, antigo namorado, apareceu de novo no Passa Livre anos depois! Pasmem, foi em 2013! Segundo ele mesmo conta, naquele ano, o mesmo ano em que sua ex-namorada assinou o contrato de aquisição do MCMV-E, diz ter se afastado do MTST. Em se tratando de uma pessoa que recebeu auxílio aluguel podendo se sustentar sem isso (basta dizer que é, ou era, jovem, branco, oriundo da classe média), duvido que tenha saído por algum escrúpulo moral. Fato é que nessa janela de oportunidade ele se infiltra no movimento Passe Livre novamente e com toda sua habilidade digna da cantoria de Tom Zé, ou apenas por mera coincidência cronológica, começa a confusão (de esvaziamento?) da representatividade, do abaixa a bandeira e do não-violência. O mais interessante disso tudo é que quando o Passe Livre jazia completamente desmobilizado, ele consegue o feito inédito de ser readmitido no quadro de militantes do MTST.

    Mas quem liga para o passado das organizações que hoje pleiteiam os cargos da institucionalidade burguesa? Charles A45 (é da música?) certamente não se importa com nada disso.

    [1] https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/11/um-dia-com-natalia-szermeta-ativista-estudante-mae-e-mulher-de-guilherme-boulos.html

  14. Liv, quando falo em ambiguidade, trata-se do fato de que, dentro de um mesmo movimento, havia várias intenções diferentes em jogo, processos sociais concorrentes, e inclusive histórias pessoais que não são tão lineares assim. Se tomamos o resultado atual e o projetamos retrospectivamente como pré estabelecido, perde-se justamente a história dos derrotados. Veja só como você pula do Parque Oziel – uma das mais de dez ocupações de Campinas de 1997, feitas em sua maioria de forma auto-organizada, que hoje são bairros, e onde o MTST surge como uma entre as forças que atua em sua interior, formada por meia dúzia de militantes -, para a Copa do Povo de 2014, orquestrada por um MTST que já gerenciava montante milionário do MCMV, já possuia uma tecnologia de acampamentos de lona preta que nao podem se consolidar e servem só como pressão midiática para listar famílias e obter bolsa aluguel, em terrenos já combinados, e num contexto de se aproveitar da dinâmica insurrecional de 2013 para se cacifar como quem consegue controlar a massa, i.e., brecá-la. Nessa comparação, estamos falando de transformações em um nível político, visível, do movimento. Imagine quando passarmos às vidas pessoais! As histórias certamente se revelarão bem mais tortuosas, como a desse secundarista cuja primeira militância foi no mandato do Beto Custódio, exigiria um pouco mais para entender por que saiu duas vezes do MTST e do MPL. De memória, cito o que João Bernardo diz que o problema da história é que ela é feita mais ou menos às cegas, já que o resultado do que é feito com uma certa intenção só ficará claro depois, e com frequência é algo oposto do que se esperava.

  15. Charles A45, em ambos os comentários enviados pelo camarada tenho a impressão de haver ares de cinismo… Ou pode ser que você seja um daqueles ex-militantes de um período muito específico do movimento, que acreditaram poder realmente atuar de forma disruptiva, tendem a não aceitar a perspectiva que costumo apresentar no movimento (a de que ele sempre teve um só dono, um só beneficiário autorizado por entes superiores). Eu entendo… Eu imagino que é algo parecido com um término de relacionamento unilateral, em que a pessoa iludida, que acreditava no futuro daquele amor, fica por anos remendo as memórias desejando encontrar ali algo verdadeiro. Ela se pergunta: Mas será que ele nunca me amou? E a resposta é que não, é que sempre foi uma cilada rs.
    Novamente: Guilherme “foi levado” ao MTST para cumprir primeiramente o papel de gestor [exclusivo] do capital político produzido nas ocupações. Posição essa que possibilitou que hoje ele caminhasse de forma tão oportunista pela via pavimentada pelos sem tetos e pelos raros coordenadores bem-intencionados que se perderam no árduo caminho de permanecer em luta como explorados tarefeiros sem remuneração (não me refiro aqueles filhos da classe média que se beneficiaram com a Bolsa-militante, digo, com o auxílio-aluguel, o bolsa família e o MCMV-E) [e por alguns corajosos, frustrados e inocentes militantes universitários].

    Sabe por qual razão esses pormenores tão importantes para o camarada não têm importância alguma para a análise? Justamente porque são pormenores esvaziados de significado, ou seja, de força política. Nunca não tiveram folego suficiente para emergir e fazer alguma diferença. A crença de que o MTST estava em disputa é falsa. Tão falsa quanto a crença de que uma criança é capaz de vencer uma disputa de braço com um adulto. O que sobra dessa disputa além da memória afetiva de uma criança que se divertiu dando vazão para suas energias reprimidas? Sobra nada, e por essa razão não tem importância. E se formos medir a importância desses militantes inocentes com o militante do PT-MTST-MPL, desculpa, eu ainda acho o do MPL muito mais interesse e robusto para a análise [mas parece que você já o perdoou não? Um bom cristão perdoaria. Mas como o que sobrou da minha fé foi um grande e poderoso nada…].

    Sabe de outra coisa? Engana-se quem imagina que uma ocupação do MTST é sinônimo de MTST. Novamente: uma ocupação de tipo artificial funciona como um laboratório de experimentos sociais. E, como todo laboratório, todas as condições ambientais são controláveis. É possível até surgir, por exemplo, ideias anarquistas dentro de uma ocupação. O que não é possível é que essas ideias extravasem os limites geográficos e imaginativos do terreno ocupado. Para além disso, uma ocupação se resume sempre a um breve momento. Uma ocupação nunca permanece em terreno mais do que o necessário para gerar comoção pública. E por essa razão a base do movimento sempre foi líquida. Nos breves momentos em que há terrenos ocupados ela infla ao represar pessoas geograficamente reunidas. No instante seguinte, no dia posterior ao momento esperado e desejado (assim como o crime de Durkheim) da reintegração de posse, a base se esvazia e com ela se esvazia também qualquer pensamento ligeiramente mais disruptivo que possa vir a ter sido ensaiado.

    Eu não pulei da ocupação Parque Oziel para a ocupação Copo do Povo como quem resume a história nesses dois extremos. Eu usei os exemplos para falar de situações diferentes:
    1) O Parque Oziel é um exemplo que nos ajuda a refletir que o MTST, ao contrário do que diz a história oficial, não foi fundado por militantes do MST destacados para colaborar com sem tetos que pediram ajuda e sim fez uso da velha tática do entrismo para começar a construir um instrumento (que leva o nome de movimento) urbano que espelhasse nas funções (a de produzir mobilização de massa capaz de ser revertida em capital político-eleitoral) o instrumento rural. Tanto um, quanto outro são instrumentos de partido e os ganhos socias são meros efeitos colaterais sempre revogáveis. Basta verificarmos, por exemplo, o ganho social do próprio MTST: um FINANCIAMENTO de alienação fiduciária, ou seja, um compromisso que pode ser reavaliado pelo banco em casos, por exemplo, de inadimplência.
    2) A ocupação Copa do Povo é um exemplo que nos ajuda a refletir a respeito da escolha dos terrenos. Na história oficial consta que o critério de escolha é unicamente a questão da função social do terreno. Teoricamente todo terreno que não cumpre sua função social é um terreno para uma possível ocupação. Pode ser que a teoria e a prática coincidam? Pode ser. Mas pode também não ser. E ao dizer isso comento que existe uma possível relação entre o antigo proprietário e o dono do movimento. Assim como existe um vínculo entre um político de Taboão da Serra, o bairro Sítio das Madres e MTST. Não convém citar todos os exemplos aqui, mas tenho um texto de aproximadamente 60 páginas onde apresento um estudo a respeito de cada um dos terrenos um dia ocupados pelo MTST. Posso enviar por e-mail, caso deseje.

    Sabe qual é o problema de traçar uma história sincera do MTST e sua relação com a facção do capital por ele defendida? É que uma de suas táticas é a oralidade em detrimento da escrita. A oralidade está sujeita a memória, que por sua vez sujeita-se aos afetos. Foi por essa razão que sai do MTST. Eu percebi que a minha memória não estava à altura das minhas expectativas de militância. Solicitei o registro escrito sistemático. A minha solicitação não só foi deliberadamente negada como a minha continuidade no MTST foi condicionada explicitamente a um compromisso de lealdade em relação ao Guilherme e não em relação a base. Compromisso esse que eu jamais firmaria. Quem ficou, firmou.

  16. Liv está convocada a escrever um artigo (ou uma série de artigos) sobre a sua experiência e caracterização do MTST!!

    Por sua vez, Charles A45 está convocado a fazer comentários para fomentar o interessantíssimo debate!!

  17. Liv, sua memória seria importante para o movimento. Divulgue para podermos refletir a respeito. Saudações fraternais!

  18. Oi Liv,

    Quando li seu primeiro texto aqui no PP, do cupinzeiro, com uma crítica afiada sobre as “ocupações artificiais” do MTST (termo que eu mesmo também já usei muitas vezes antes para se referir aos acampamentos), fiquei muito entusiasmado de encontrar uma crítica pública de alguém que claramente conheceu esse espaço por dentro e num período recente. Compartilho completamente da sua leitura sobre o movimento hoje, e não me é segredo que até os terrenos que se “ocupa” (na verdade, encena-se um acampamento que não é feito para morar, e sim para cadastrar um contingente de trabalhadores que passará a trabalhar de graça, cacifando polticamente os donos do movimento etc etc) já estão previamente combinados com todos os agentes econômicos interessados.

    Nunca militei no MTST e conheci o movimento num tempo em que era ainda muito fechado, pois os donos temiam qualquer mínima ameaça ao seu monopólio sobre a base. Portanto, não havia a figura atual do apoiador bem intencionado de classe média. Ainda assim, praticamente todos esses aspectos que mencionamos aqui já estavam operando. Pouco tempo depois, chegaria também uma baita grana do MCMV-E, o que dispensaria a grana curta dos sindicatos (e a dor de cabeça de se negociar com a Conlutas), selaria uma aproximação com o governo do PT e sustentaria a possibilidade de nacionalização do movimento, com quadros liberados etc.

    Portanto, não escrevo com nostalgia de nada, nem com nenhuma mágoa a perdoar; simplesmente ressalto que a história não é linear, e que por essa redução retroativa corre-se o risco de superdimensionar o papel dos gestores na história, quase como em teorias da conspiração, perdendo-se de vista a noção elementar de que a história é a história da luta de classes.

    O que se tem hoje é resultado das lutas, ou, pelo nosso ponto de vista, da derrota das lutas. Mas além da memória oral e de textos acadêmicos, o caminho tortuoso dessas disputas também deixou grandes bairros populares em Campinas, Guarulhos, Rio de Janeiro, além de cisões que trilharam vias diferentes do pontinho, cadastro e MCMV – cito de memória o Movimento de Resistência Popular, Rede de Comunidades do Extremo Sul, Movimento Luta Popular, Corações Valentes, mas com certeza houve outras.

    Como os últimos comentadores, também aguardo sua pesquisa. Abração!

  19. Camarada Charles A45,

    De fato, sempre se corre o risco de em uma análise distante do tempo (nas tuas palavras, retroativa) superdimensionarmos o poder de comando dos líderes. Em minha defesa:

    Primeiro, esses textos são comentários rápidos, não são artigos de folego, sendo assim nesse formato eu não teria espaço para elaborar melhor.
    E segundo, há risco ao tentar evitar o caminho que você apontou: o risco de cair no buraco do livre arbítrio. Além dos rastros deixados pelos terrenos ocupados, eu segui também os rastros dos personagens dessa história. A cúpula do MTST é muito reduzida e sempre foi muito reduzida. Dá para contar nos dedos de uma mão (se formos generosos, de duas mãos, no máximo). Essas pessoas não brotaram do nada, não foram movidos por um ímpeto voluntarista e por sentimentos altruístas. São pessoas ligados a uma rede de outras pessoas e organizações políticas. Uma rede de conexões que possui um tal programa político e que precisa compreender o campo batalha para saber como adequar esse programa. Para se movimentar é necessário que se faça a todo tempo um cálculo de capital político e que se monte e desmonte instrumentos, armas de combate e/ou resistência. Como extrair o melhor resultado em um universo de possibilidades em que onde não existe mais o muro de Berlim e tudo o que ele representava. Esse é o jogo.

    Um bom exemplo é o já citado mercado de crédito subprime: um modelo de negócios entre capital financeiro e fundiário voltado para um público de elevado risco de inadimplência. Assim que o capital começa a perceber que as possibilidades de crescimento econômico extraído através desse modelo de negócios começaram a se esgotar no centro do capitalismo, naturalmente suas forças iniciam um processo de deslocamento para outros mercados, para mercados da periferia do mundo. Mas não bastaria que o grande capital começasse a adquirir terras nativas e quase virgens de um tipo intensivo de exploração econômica. Seria necessário primeiro que o mercado de terras do território estivesse aberto para o capital internacional. Assim como que a engenharia jurídica estivesse pronta para receber esse tipo de negócio.

    Enfim, nesse sentido a minha tese nada inovadora é que os atores (que ocupam ou almejam ocupar posição de poder) e seus aparelhos se movimentam em rede e conforme o ritmo determinado pela exploração capitalista.

    Antes de finalizar, retomando o que disse anteriormente quanto a rede de conexões de atores envolvidos nesse campo e aos rastro que segui, aponto para a profissionalização da política: um filho de alfaiate será um alfaiate. Apesar de isso soar anacrônico, quase medieval, para a política isso vem se mostrando ainda muito verdadeiro.

    Outra reflexão que me veio agora quanto a crítica de uma análise retroativa e dos riscos de negligenciarmos o envolvimento de uns e outros: lembro que em uma das minhas primeiras aulas do curso de Ciências Sociais a professora apresentou um texto clássico em que Duverger tentava colocar em debate uma noção do que é Ciência Política: se seria uma ciência do poder ou uma ciência do Estado (para além de possíveis concepções intermediárias). De qualquer forma a ciência política giraria em torno da noção de poder. Nos comentários que fiz aqui eu precisei fazer uma escolha similar. Precisei escolher se olhava preferencialmente aos processos de disputa cotidiana ou se olhava para a corrente político-partidária chamada MTST. O objetivo era apresentar aos meus conhecidos, sem grandes pretensões, uma definição a respeito do que foi e do que é o MTST e uma definição do que foi e do que é o dirigente do MTST e candidato a prefeitura de São Paulo. Por esta razão, o caminho julguei mais certeiro, foi este que apresentei aqui também (com todos os riscos possível de reduzir demais a análise).

    Quanto aos pedidos de um artigo a respeito das minhas memórias e pesquisas. Sinto que sempre que fujo do texto poético minha potência ao expressar a crítica diminui. Talvez eu tenha mais talento para as artes e até para servir de comentarista do que para articulista (até porque isso me soa tão acadêmico e sou tão anti-academicista, ou melhor, tão anti essa academia que nos resta morta…). Confesso até que prometi para o PP um artigo sobre um outro tema e hoje essa é uma dívida que fará aniversário em breve. Rascunhei, quase finalizei, mas no fim nunca enviei. Mas confesso também que o MTST, ou melhor, a questão da moradia e dos bancos, é um assunto que sempre me motiva a falar. Prometo tentar organizar o que já tenho produzido em algo que faça sentido e quem sabe que tenha também alguma utilidade para alguém mais.

    [Camarada Charles, quando o artigo sair (se o PP o aprovar, claro), espero por teus comentários críticos, afinal sem crítica isso o papo nem graça tem.]

  20. Enquanto João Bernardo delineia uma historiografia ‘do Não’, Liv reforça a historiografia do ‘apenas assim’.

  21. Nossa, quanta honra ser comparada ao JB. Verdade que não entendi a comparação feita. Quase me fez lembrar dos comentários do glorioso Ulisses, que costumam existir no limite entre o mundo dos vivos e o abismo do ininteligível.
    Por este motivo, Sim, te parabenizo. Teu comentário de efeito provocou um efeito estéril. Calado talvez tivesse feito até poesia.

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