Por Granamir

A questão da alienação

As análises que reivindicamos são as que, sem desconhecer nem a problemática da exploração, enfatizada pelo marxismo tradicional, nem a politização da vida pessoal destacada por várias correntes teóricas; reconhecem a centralidade do tema da alienação como obstáculo fundamental para a emancipação humana. A alienação não desaparece com a tomada do poder do Estado ou a expropriação jurídica dos meios de produção, nem com mudanças pontuais nos hábitos cotidianos e relações interpessoais, mas só com o fim do próprio trabalho assalariado, da forma mercadoria, do valor, do dinheiro, da propriedade privada, etc. O comunismo seria um modo de vida em que os indivíduos dirigem conscientemente o seu intercâmbio com a natureza e uns com os outros, e o colocam a serviço de necessidades humanas coletivamente decididas, sendo a principal necessidade o desfrute do tempo mais livre possível, quantitativa e qualitativamente. Conforme se desfaz a alienação e se avança para a comunização, as diferenças entre seres humanos deixam de ser fundamento para desigualdades materiais e passam a ser expressão de riqueza e diversidade infinita de possibilidades e modos de vida. Esses processos precisam estar combinados ou não avançarão jamais, por isso temos insistido na ideia de totalização.

A subestimação da alienação pelos marxismos oficiais leva a práticas que reproduzem as características da sociedade de classes no interior dos movimentos que supostamente pretendem a abolição do capitalismo, tais como a separação entre teoria e prática, entre trabalho intelectual e trabalho braçal, a subordinação do segundo ao primeiro, a recriação de hierarquias (como os partidos de vanguarda). Dessa forma, o marxismo bolchevique e o social democrata, a despeito de suas declaradas intenções em contrário, funcionaram objetivamente como agentes da modernização capitalista e da universalização das categorias da sociabilidade do capital (trabalho alienado, mercadoria, valor, dinheiro, propriedade privada, etc.). Por outro lado, as tentativas parciais e unilaterais de romper com o marxismo tradicional, na forma do pós-modernismo e do identitarismo, levaram a um reforço da ideologia liberal de que é possível haver espaço para todos no interior do sistema, e a evidência de que isso é impossível torna os reacionários empiricamente mais realistas (às vezes hiper-realistas) do que tais concorrentes.

O poder do capital e de sua ideologia só pode ser rompido com a instauração de uma prática social que devolva aos sujeitos os seus poderes de decisão em todos os aspectos da vida. O cerne da desalienação não está em modificações parciais nas esferas jurídica, gerencial ou comportamental, mas na articulação de todas elas (e várias outras) rumo a uma reconstituição de todas as dimensões da existência, de modo a tornar possível o exercício da autonomia em todos os espaços. Num certo momento da história, a Psicanálise funcionou como uma prática que buscava restaurar os graus de autonomia possíveis para o indivíduo em face das condições de vida herdadas, tanto biológicas como psicológicas e sociais. E isso despertou grande interesse dos setores envolvidos na luta social emancipatória, resultando, por exemplo, naquilo que foi chamado de freudo-marxismo. Entretanto, a partir da década de 1970, a hegemonia do pós-estruturalismo e do pós-modernismo deslocou a Psicanálise enquanto teoria (e prática) preferencial de investigação da subjetividade a ser tomada em conta no debate público pelos marxistas.

Muitos marxistas preferiram simplesmente deixar de lado completamente qualquer relação com os temas da vida cotidiana, subjetividade, cultura, etc., por medo de se “contaminar” do discurso pós-moderno prevalecente no debate desses campos, para se especializar restritivamente no economicismo. Configurou-se uma espécie de acordo tácito em que os marxistas de um lado e os pós-modernistas do outro tratam cada um das “suas” próprias questões, evitando invadir o “território” uns dos outros, levando a choques faiscantes e escandalosos cancelamentos mútuos quando alguma fronteira é trespassada. O resultado, é claro, foi um empobrecimento tanto no âmbito geral da luta emancipatória como no da discussão sobre o microcosmo da vida cotidiana.

Não só a luta política (no sentido de luta contra o capital) é substituída por uma luta pela modificação de comportamentos individuais (desde as campanhas pelo “consumo consciente” àquelas pelo uso da linguagem neutra), mas também, inversamente, a abordagem dos problemas individuais (tarefa que antes cabia à Psicanálise) é substituída por uma politização superficial e um maniqueísmo grosseiro. Nessa linha, o que se busca é achar heróis e vilões, classificar as pessoas em vítimas ou agressores, identificar oprimidos e privilegiados, policiar a linguagem, maquiar a história, mercadejar falsas reparações no plano simbólico. A politização superficial da vida cotidiana, desconectada de uma luta pela transformação da totalidade social, resultou numa prática militante alimentada por ressentimento e moralismo bem intencionado, uma paranóia persecutória disfarçada de “desconstrução” do machismo, do racismo ou de qualquer moda do cancelamento em vigor no momento.

Se é verdade que teoria e prática são atividades indissociáveis, mas diferentes, dotadas de uma legalidade ontológica própria; também é verdade que a luta de classes (luta contra o capital) e a luta individual, travada contra as sequelas psicológicas que cada um acumula no curso de sua socialização como membro da sociedade capitalista, são também indissociáveis e estão articuladas numa totalidade, mas possuem também lógicas específicas, que demandam instâncias próprias de tratamento. Isso é mais evidente quando observado sob o vértice da luta social, que sem dúvida requer alguma forma de modificação individual, mas não pode ser de modo algum substituída por esta, do contrário não seria social; mas também é válido para os processos de desenvolvimento individual, que não podem ser substituídos também por um discurso sobre a luta contra o capital, trazido abstratamente e encaixado artificialmente para a trajetória individual. A luta contra o capital e todas as diversas formas de alienação que dele derivam não pode ser trazida artificialmente para um processo psicoterapêutico sem respeitar o ritmo próprio de cada experiência emocional. A psicoterapia individual e a militância social têm muito o que aprender e colaborar uma com a outra, mas não podem substituir ou se sobrepor uma à outra. Não têm como desempenhar, a não ser muito precariamente, de modo muito parcial e incipiente, as tarefas uma da outra.

A distinção entre esses dois níveis da luta emancipatória, o social e o individual, estava melhor estabelecida quando a colaboração entre marxismo e Psicanálise era mais estreita. Agora, sob a hegemonia das filosofias pós-modernistas e da política identitária, essa distinção é abolida por aquela abordagem superficial, que dilui ambas as esferas uma na outra. Reconhecer a forma específica como as diferentes esferas da realidade estão dialeticamente articuladas num todo estruturado, ao mesmo tempo em que retém sua autonomia relativa, é muito diferente de tratá-las como se estivessem arbitrariamente fundidas num amálgama disforme. O primeiro procedimento é característico das variedades mais qualificadas do marxismo; o segundo é o que predomina nas teorias sociais contemporaneamente prevalecentes.

Considerações finais

O livro de Berardi, que inicialmente apresentamos como uma defesa da reunificação entre marxismo e Psicanálise, na verdade emerge de um horizonte teórico em que esses dois campos são mobilizados de maneira tipicamente pós-moderna. Nele encontramos afirmações empolgantes, como por exemplo: “A insurreição dos jovens estadunidenses abre uma via possível para uma emancipação da reação depressiva causada pela pandemia. Vejo essa insurreição como uma explosão psicoterapêutica (…) a insurreição permanente é a única maneira de respirar, a única maneira de evitar uma depressão psicológica profunda nos próximos meses e anos” p. 157.

Ao mesmo tempo, formulações confusas como: “Nada restou daquela paisagem: agora, a expansão acabou e a recuperação econômica é uma promessa vazia. Expansão só pode significar uma devastação ainda maior do meio-ambiente físico e do ambiente mental. Tudo de que não precisamos são palavras vazias sobre a democracia, palavras vazias sobre a recuperação. Fora da mitologia da expansão, temos que adotar uma cultura frugal e igualitária. Não precisamos de mais bens inúteis para ingerir e sim de mais tempo para passar com nossos amigos, com nossos amantes: isso é frugalidade” p. 158.

Quando afirmamos que os melhores ramos do marxismo são os que buscam o ponto de vista da totalidade, essa totalidade não é a justaposição aleatória de tudo o que existe, mas exatamente a articulação estruturada de particularidades que retém a sua independência relativa, ao mesmo tempo em que, dialeticamente, não deixam de ser dependentes do movimento do todo. Dentro dessa articulação estruturada, os diferentes aspectos da alienação não vão ser dissolvidos por meio de uma aproximação voluntarista. A “expansão” (reprodução ampliada do capital) não vai ser detida apenas pela adoção de hábitos “frugais” (mudanças no âmbito do comportamento individual), pois vários outros tipos e níveis de ação precisam ser mobilizados.

Partindo de outra impostação metodológica, nossa interpretação da narrativa histórica que organiza o entendimento da vida social diverge significativamente da periodização proposta por Berardi em seu livro. Reconhecemos a mudança de um capitalismo taylorista/fordista e keynesiano/desenvolvimentista para um toyotista e neoliberal, a partir da década de 1970, como já mencionado. Entretanto, o percurso ideológico da sociedade burguesa desde então e até a pandemia de covid-19 não é homogêneo como o “Terceiro Inconsciente” faz parecer, pois houve vários terremotos sucessivos e transformações significativas, numa evolução que comparamos a um declive em degraus.

A década de 1980 trouxe a afirmação aberta do neoliberalismo como política ostensiva dos centros imperialistas em busca de superar os impasses legados pela década precedente (quebra do padrão dólar-ouro, crises do petróleo, crise da “estagflação”), do ponto de vista da sua necessidade de gerir a economia. A década de 1990 trouxe o fim da forma soviética de capital, a “globalização” e seu discurso triunfalista de que o capitalismo venceu e portanto a democracia de mercado é a forma definitiva de organização social. Os atentados de 11/09/2001 nos Estados Unidos e a subsequente “guerra ao terror” mostraram a face autoritária dessa democracia, e produziram diversas reações de oposição, mas estas não levaram a um questionamento dos fundamentos capitalistas do imperialismo estadunidense, estacionando no nível do chamado progressismo. A crise econômica de 2008/2009 funcionou como uma espécie de “queda do muro de Berlim” do neoliberalismo, mostrando que o mercado deixado a si mesmo segue irremediavelmente produzindo crises destrutivas. Essa crise levou a uma importante onda de mobilizações de massa na virada da década seguinte. Mas se o socialismo já foi derrotado e não há no horizonte uma alternativa ao capitalismo, o que sobra é o fim do mundo, esta conclusão já estava fixada no imaginário coletivo.

Ou seja, torna-se admissível pensar o fim do mundo, mas não se consegue pensar o fim do capitalismo (conforme nota 8). A distopia se tornou um gênero popular de ficção, mas não como uma advertência preventiva para nos levar à ação e tentar evitar a decomposição social, e sim como uma espécie de estética do humor macabro, que torna tolerável e navegável o cenário dessa decomposição mesma. Os protestos de massa da década de 2010 foram revertidos em mobilização reacionária, e os sinais confusos seguem no ciclo de lutas [11] da década atual. A pandemia aprofundou a tolerância coletiva ao desastre, funcionando como um imenso exercício de adestramento e dessensibilização.

O que temos, portanto, desde a década de 1970, é um processo de degradação societal em degraus, com sucessivas alterações na economia, na geopolítica e na ideologia, que não se realiza de maneira linear, embora todas conduzam a um reforço das exigências inalteráveis da reprodução do capital. Discordamos em vários aspectos da visão panorâmica apresentada pelo autor e identificamos uma série de acidentes de percurso que moldaram de forma decisiva e não linear as últimas décadas e seu inconsciente social característico. E se esse movimento de aprofundamento da decomposição social resultará num novo tipo de inconsciente social é algo que está em aberto para ser constatado. O certo é que, como dissemos mais acima, reconhecemos de fato uma mudança nos graus de sofrimento social e psíquico experimentados a partir da década atual, marcada pela aparição da pandemia, em direção a um aprofundamento das características mais asfixiantes e claustrofóbicas do realismo capitalista, sobre as quais falaremos agora, à guisa de conclusão.

Estamos no momento em que o Titanic atingiu o iceberg, o mundo segue para um naufrágio em câmera lenta, mas temos que fazer de conta de que não sabemos disso. Tudo o que importa é seguir trabalhando mais, com mais intensidade, a despeito dos conflitos externos e internos. Pandemia, invasão da Ucrânia, catástrofe climática no RS, massacres em Israel e Gaza, tanto faz, o que importa é que precisamos seguir trabalhando e pagando os boletos, como hamsters na roda da reprodução ampliada do capital. Toda a atividade humana se torna trabalho, ou preparação para o trabalho, descanso ou estudo para voltar ao trabalho, ou ainda, é medida com os critérios de performance do trabalho, ou seja, como potencial valor monetário, e isso vale para o lazer, o turismo, a terapia, a espiritualidade, o esporte, a arte, etc.

Por falar em performance, o resultado mais importante do trabalho é a ostentação do próprio trabalho, do ato de trabalhar. É preciso produzir as evidências do trabalho, os relatórios, as métricas, as fotos para redes sociais, a devida certificação de que seguimos correndo como hamsters obedientes. A compulsão pela produção de evidências é por si mesma uma evidência da irrelevância da produção. Essa atividade frenética que nos consome 24 horas por dia, 7 dias por semana, não tem mais qualquer conexão com as necessidades humanas, e o absurdo dessa desconexão se torna mais evidente a cada novo salto tecnológico. Ao invés de eliminar o tempo de trabalho social total, a tecnologia elimina empregos e obriga os remanescentes, empregados ou não, a trabalhar mais e seguir se esforçando para ganhar dinheiro, em atividades que fazem menos sentido. É o caso da chamada inteligência artificial generativa, que produz textos e imagens em escala industrial, multiplicando a sensação de simulação e artificialidade de uma sociedade que é supérflua e absurda em seus fundamentos.

A forma de alienação do trabalho mudou, não se trata mais apenas de que o trabalhador não se reconhece na sua atividade de trabalho, nos produtos do seu trabalho, na natureza em transformação pelo trabalho, nos outros seres humanos com os quais compartilha o trabalho. Conforme a tendência geral aponta para a diminuição do emprego formal e o correspondente aumento da figura do empreendedor, empresário de si mesmo, o trabalhador precisa incorporar certas características de uma personificação do capital, sem ser ele próprio dono de nenhum capital. Mesmo quem permanece em emprego formal está sendo cada vez mais solicitado a internalizar imperativos psicológicos que são próprios das personificações do capital, e isso aparece no uso compulsório de jargões como qualidade total, melhoria da produtividade, vestir a camisa, engajamento com a atividade, mentalidade de dono, proatividade, bater as metas, etc, entre outras asneiras fabricadas pelos coaches, gurus da administração e outros sacerdotes do bizarro culto ao fetichismo do capital.

O modo como a alienação é vivenciada pelo capitalista é diferente daquele do trabalhador, pois o capitalista é a figura que precisa transformar valor em mais valor, capital em mais capital, e isso não depende da maior ou menor ganância deste ou daquele capitalista individual, mas de uma determinação existencial desta forma social. O capital é isto, uma relação social que só existe sob a condição permanente e inescapável de se transformar em mais capital, passando por cima de restrições de qualquer tipo, sejam ambientais, sanitárias, humanitárias, etc. Atualmente, o trabalhador passa a ter também o ônus de pensar como capitalista, como uma figura que precisa multiplicar o capital, sem ter o bônus de ser capitalista, sem ser de fato proprietário de nenhum capital. Ao se trabalhar menos para uma empresa e mais diretamente para o mercado, mediante vínculos menos formais e mais informais, e com maior responsabilização individual, qualquer que seja a natureza do vínculo empregatício; a pressão vem de todos os lados, de clientes, fornecedores, concorrentes, reguladores, etc., e o alívio não está em lugar nenhum.

A saúde mental está na moda, mas o seu papel não é se contrapor aos ditames anti-humanos do capital, pois é impossível ser mentalmente saudável numa sociedade gravemente doente, e sim devolver os indivíduos devidamente reajustados ao trabalho, para que sigam como engrenagens funcionais para a maquinaria do capital. Ou seja, a demanda por saúde mental também já foi recuperada e transformada em instrumento de gestão. Se fala tanto em positividade que ela inclusive já se tornou tóxica. É preciso trabalhar, mas também ter vida social, estudar, mas também praticar esportes, descansar, mas também ter vida sexual, estar por dentro da moda, mas também mostrar individualidade, estar nas redes sociais, mas também ter tempo para a família, ser competitivo, mas também mostrar compaixão, ser prático e resolutivo, mas também se conectar com a espiritualidade, economizar para o futuro, mas também gastar nos lugares certos, ter opinião e votar nas pessoas certas, mas também ser tolerante, etc., etc., etc.

Sobretudo, evite ser cancelado, mesmo que nunca tenha sido aceito. É preciso cumprir todas essas exigências contrárias entre si e ao mesmo tempo, mas fazer tudo isso com um sorriso no rosto, e não esqueça de se hidratar, porque ninguém é de ferro. Você não consegue? Por que será? Fale um pouco mais sobre isso…

Granamir, 29/07/2024

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Nota

[11] Ver o texto sobre “A maior onda de Revoltas Populares da História” (parte 1 e parte 2)

As fotografias que ilustram este artigo são de Alice Brill.

A publicação deste artigo foi dividida em 3 partes, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2

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