Por Granamir

 

Leia aqui a primeira parte do artigo.

 

Aspectos econômicos

12. Nas últimas décadas, o processo de mundialização do capital atingiu em cheio as commodities e bens que entram na reprodução da força de trabalho. Petróleo, energia, minérios, matérias primas alimentares, são cotados em mercados mundiais e seus preços se internacionalizaram. Os mercados financeiros encontraram nas commodities uma nova fronteira de especulação e provocaram flutuações cada vez mais violentas nos seus preços. O petróleo parece ser a mais crucial dessas commodities, pois é usado como fonte de combustível no transporte individual, coletivo e no das demais mercadorias, além de fonte de energia (na maior parte do mundo a eletricidade não é de origem hidrelétrica, forma predominante no Brasil, mas termelétrica, gerada por carvão, gás e derivados de petróleo). Os bens que entram na composição da força de trabalho, como alimentos, vestuário, calçados, remédios, moradia, eletricidade, água e esgoto, combustíveis, etc., são cada vez mais mundializados e sujeitos à flutuação de preços do mercado mundial. Essas flutuações podem fazer com que um aumento súbito em algum desses preços torne inviável a reprodução da força de trabalho, provocando a explosão das revoltas. O atual ciclo mundial de revoltas pode ser lido como uma única e colossal rebelião mundial contra a elevação do custo de vida.

12.1. O caso das moradias representa uma situação à parte, pois bens imóveis não podem circular fisicamente no mercado. Mas o custo das moradias é afetado pelos processos de gentrificação, especulação imobiliária, remodelação e revitalização de centros urbanos, mega projetos e obras faraônicas, que forçam as populações a migrar para as periferias, cada vez mais distantes dos locais de trabalho, o que por sua vez torna esses trabalhadores mais sensíveis aos aumentos dos preços dos combustíveis e transportes públicos, etc. Além disso, capitais financeiros e fundos de investimento, também internacionais, estão entre as forças que impulsionam os processos de gentrificação e remodelação urbana, exigindo desses processos taxas de retorno semelhantes às que auferem em outros tipos de empreendimentos. O capital financeiro inclusive já não se contenta apenas com as áreas centrais, que são em geral mais rendosas e propiciam retorno mais rápido, mas espraia seus tentáculos também para os bairros mais afastados e periferias, desenhando empreendimentos adequados a esses nichos de mercado, sejam moradias ou equipamentos sociais e infraestruturas, em parceria com prefeituras, gestores locais, ONGs, movimentos sociais, crime organizado, etc. Uma teia de interesses políticos e fluxos de renda captura o que antes era deixado livre para a auto organização popular e comunitária, empresariando os mínimos escaninhos da sobrevivência. Dessa forma, por mais que os imóveis sejam literalmente imóveis, o custo da moradia para os trabalhadores acaba sendo também mundializado.

12.2. Certamente, ainda existe uma diferença abissal mesmo ao se considerar a renda média do conjunto do país, quando se comparam por exemplo lugares como a Europa Ocidental, Japão e certas partes dos Estados Unidos, com a África, a América Latina, a Índia e o Sudeste Asiático. Naqueles países mais ricos certamente ainda existem camadas populacionais e segmentos de trabalhadores organizados que usufruem de salários e direitos inimagináveis para a grande massa do proletariado global. O ponto que estamos querendo destacar é de que a tendência geral hoje não é de aprofundamento desse abismo entre trabalhadores, mas de nivelamento, e de nivelamento por baixo. Afinal, bolsões de miséria, desemprego e criminalidade também se multiplicam em todas as metrópoles e grandes cidades dos países ricos.

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13. A mundialização das commodities e da força de trabalho, bem como o esvaziamento das capacidades de intervenção econômica do Estado nacional no sentido de políticas redistributivas se completa com o esvaziamento da função das moedas nacionais. Se o petróleo e outras commodities são cotadas no mercado mundial e as suas flutuações se refletem de maneira tempestuosa e incontrolável no mercado nacional; isso significa que a moeda nacional é cada vez mais um substituto precário das moedas com conversibilidade mundial, predominantemente o dólar, mas também algumas poucas outras como o euro e o yuan. O orçamento público é denominado em moeda nacional local e as transações são feitas pela população em cédulas desses papéis, mas o valor delas está lastreado em moedas internacionais reais, sobre as quais os Estados menos importantes não têm nenhum poder.

14. Grande parte da população mundial já não encontra mais emprego formal. Além dos idosos, crianças e inválidos, que já não fazem parte da população economicamente ativa, uma parcela imensa da população em idade útil se encontra cronicamente desempregada, tendo se convertido em população excedente. Esses excedentes populacionais sobrevivem de trabalhos informais e temporários, bicos e biscates, pequenos crimes e contrabandos, tentando a sorte na imigração para países e regiões mais ricas, ou às custas da renda familiar proporcionada por algum parente que trabalha, ou de auxílios diretos do Estado, igrejas e ONGs, ou combinando e circulando temporariamente entre cada uma dessas alternativas. Essa população excedente, especialmente a sua parcela mais jovem, que muitas vezes chega a ter algum acesso ao sistema de educação e emprego formal, ainda que temporário, tende a ser o principal sujeito das revoltas.

 

Implicações conceituais

15. Durante praticamente todo o século XX a esquerda concebeu o terreno da luta contra o capital como sendo o da política. A ideia de que “o proletariado tem como sua única arma a organização”(Lênin) resultou na conclusão de que a saída é construir um partido como ferramenta para disputar o poder do Estado. O erro primário nesse raciocínio é que não é possível administrar, controlar, nem muito menos enfrentar o capital a partir do Estado. Mas foi precisamente esse o rumo que foi seguido, ao invés de buscar construir organizações capazes de enfrentar o poder do capital e do Estado onde ele é gerado, nos locais de trabalho, na base da vida social, por meio da reformulação autogestionária da produção e de todas as atividades sociais.

Ao transferir a luta para a esfera da política, os estrategistas do movimento operário do século XX abriram caminho para que o capital pudesse vencer a disputa através da desorganização do proletariado. Isso porque o capital tinha a condição de desenvolver a disputa não apenas no terreno da política, mas também no da técnica. E nesse terreno o capital foi bem sucedido ao reduzir a sua dependência em relação ao trabalho humano por meio da automação, da robótica, da microeletrônica, da informática, das telecomunicações, da internet, da inteligência artificial, do toyotismo, do just in time e outras inovações na gestão. Dessa forma, o capital venceu o movimento operário do século XX no terreno da política porque tinha conseguido vencer a disputa no terreno da técnica.

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16. Na verdade, o capital não tem outra escolha a não ser produzir incessantemente novas criações nos campos da técnica e das formas de gestão para reduzir a sua dependência em relação ao trabalho, devido à concorrência entre as frações do capital. Mas ao mesmo tempo em que faz isso, o capital total enquanto um sistema mundial unitário produz a sua própria obsolescência. Se o valor é o tempo médio de trabalho humano abstrato socialmente necessário para a produção das mercadorias, a redução da dependência estrutural do capital em relação ao trabalho humano leva a uma redução do valor, ao ponto de que na prática é possível produzir quase tudo praticamente “de graça”. Desse momento histórico em diante, o capital sobrevive de forma artificial, criando novas necessidades (desde a corrida armamentista entre os países até o consumismo das camadas mais afluentes da população) para manter a demanda por uma produção destrutiva de mercadorias (Mészáros), que são na verdade em grande parte supérfluas. A desconexão entre produção e necessidade humana atinge o ápice, coincidindo com a degradação de populações que têm acesso precário ao básico necessário para sobreviver e já começam a ser ameaçadas pela destruição ambiental, que é um subproduto do consumo supérfluo e da produção destrutiva. Mas as engrenagens do sistema continuam girando, a despeito do aprofundamento da sua irracionalidade, destrutividade e disfuncionalidade. O capital pôde dar esses passos no terreno da produção e da técnica porque tinha conseguido vencer a disputa no terreno da política.

17. O que restou do movimento operário baseado no proletariado industrial vem gradativamente perdendo a condição de enfrentar o capital, tanto no terreno da política, em que vai deixando de ter a condição de disputar o poder do Estado; como no da técnica, em que não consegue conceber uma reorganização da produção que dispense o capital, o valor, o dinheiro e a mercadoria. A desorganização das forças do trabalho associadas a esse projeto é tão grande que este tende a se enfrentar com o capital menos na condição de vendedor da mercadoria força de trabalho, que tenta coletivamente conseguir um preço mais alto para esta mercadoria, na forma de melhores salários, benefícios ou direitos; e mais como comprador de bens salários, que tenta individualmente conseguir um preço menor na compra dos bens que precisa para reproduzir a sua força de trabalho. O trabalho tende a se colocar diante do capital menos como uma massa de operários industriais em condições formais homogêneas de contratação, e mais como um aglomerado de empresários de si mesmos atomizados a serviço de plataformas. Os trabalhadores plataformizados têm que gerenciar a sua própria exploração, em contratos do tipo salário por peça, por produção, algoritmicamente mediados; e também a própria reprodução, com custos de moradia, alimentação, saúde, educação, transporte cada vez mais individualizados e cada vez menos providos pelos Estados nacionais, os quais, por sua vez, estão cada vez mais falidos. O trabalhador tende a lutar menos no local da produção, e mais no da reprodução.

17.1. O capitalismo continua sendo o mesmo que sempre foi, ou seja, um sistema em mudança permanente. Ele continua a se basear na extração de mais valia, que é gerada nos locais onde se dá a produção de riqueza, para ser realizada na esfera da circulação, perfazendo um ciclo totalizante que pressupõe a unidade e integração de cada um dos seus momentos constituintes, a serviço do processo interminável e incontrolável de reprodução ampliada do valor. Uma das permanentes mudanças do sistema que caracteriza a época atual consiste no fato de que existe uma massa cada vez maior de capitais em busca de valorização que não encontram mais oportunidade para acumulação no terreno da produção e buscam outras saídas para seguir se reproduzindo, que resultam no que foi referido como hipertrofia financeira e também aparece como especulação e capital fictício. A inviabilidade destes capitais é mascarada pelo procedimento de os jogar para debaixo do tapete no balanço contábil dos Estados, na forma de títulos podres e ativos tóxicos, que se acumulam numa espiral inacreditável de endividamento que assoma às manchetes a cada crise periódica. Mas essa mudança característica que diz respeito às dificuldades do capital para se realizar não é a que mais importa neste ponto e sim o fato de que os locais de produção onde se gera efetivamente alguma riqueza real estão de tal forma blindados que o conflito social tende a se deslocar para outras áreas. A centralidade política do conflito está deixando de coincidir com a centralidade estrutural do sistema, que ainda se localiza na esfera da produção. A conflitividade está migrando para as esferas da reprodução da força de trabalho (vida cotidiana) e da circulação (não no sentido de circulação financeira do capital, mas de circulação física da mercadoria, atualmente chamada de logística, que de certa forma ainda é um momento subordinado do ciclo total de produção e circulação do capital mercadoria).

18. O centro da revolta tende a não ser mais o núcleo organizado da classe trabalhadora, o proletariado industrial, mas a sua periferia, o jovem precarizado e sem perspectiva. O estopim da luta tende a não ser mais a disputa por salários ou direitos, mas as lutas por condições de vida associadas à esfera da reprodução, desfalcada pela ausência de serviços públicos, ou algo ainda mais genérico, característico da vida nas metrópoles globais, como o preço dos combustíveis ou das passagens do transporte coletivo. Quando os locais de trabalho em que acontece a produção estão de tal forma blindados por um controle gerencial, policial, ideológico, algorítmico; e ao mesmo tempo a mercantilização atinge tantas esferas da vida (lazer, turismo, futebol, arte, sexo, etc.) que caminha para borrar a separação entre tempo de trabalho e tempo livre, sendo este também otimizado algoritmicamente de modo grotesco; a revolta contra o capitalismo tende a migrar das fábricas para as ruas.

19. As categorias fundantes do sistema do capital, a mercadoria, o valor, o trabalho assalariado, o dinheiro, a propriedade privada, o direito e o Estado se impõem cada vez mais como forma de poder totalizante que estrutura a unidade da realidade mundial. Mas se trata de uma unidade atravessada por uma diversidade infinita e contraditória de particularidades em movimento. A lógica unitária e totalizante das categorias do sistema do capital incorpora, redefine e refuncionaliza as estruturas de poder precedentes herdadas das formações sociais pré-capitalistas, dando a elas a tarefa de colaborar no empresariamento da força de trabalho mundial. A religião, o nacionalismo, o patriarcado e o racismo são exemplos dessas estruturas de poder refuncionalizadas pelo sistema do capital. A conexão dialética entre a universalidade totalizante do sistema do capital e a particularidade das estruturas de poder que este mobiliza cria um curto circuito no raciocínio das forças da esquerda.

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Transformações sociais e impasses estratégicos

20. Apesar da sua adesão nominal à dialética, a esquerda não consegue deixar de pensar de modo unilateral, simplista, mecânico, imediatista, politicista. Apesar das suas intenções declaradamente anticapitalistas, o seu modo de pensar pressupõe a permanência da superestrutura estatal e das categorias do valor e da mercadoria. Ela coloca como seu alvo direto o sistema totalizante do capital, mas como ignora as particularidades e a concretude, o seu alvo é concebido como uma abstração, bem como a força social que pretende mobilizar, a “classe trabalhadora”, concebida de maneira idealizada e também abstrata. Esta comparece como uma espécie de Deus ex-machina providencial para prover uma sustentação fictícia a uma narrativa e visão da realidade cada vez mais claudicante. Incapaz de produzir um discurso e uma estratégia que articule a totalidade às particularidades, a esquerda reduz a totalidade ao econômico, ou seja, à luta por salários; e ao político, ou seja, à luta por espaços de poder no Estado. Presa a esse reducionismo categorial, a militância prática gira em falso na realidade em mutação, na medida que os seus instrumentos tradicionais de intervenção (a forma partido e a forma sindicato) vão deixando de se encaixar.

Na medida em que vai naufragando o projeto político de tomada do poder do Estado (pela via revolucionária ou institucional/eleitoral) com base na força social da classe operária organizada, a esquerda vai se vendo órfã de estratégia. Quanto mais órfãos, mais esses setores se aferram à sua identidade periclitante, de modo que o grau de fidelidade à ortodoxia teórica é medido pelo grau de insistência em tentar colar nos componentes da realidade atual os rótulos dos personagens daquele projeto político naufragado. Os trabalhadores de hoje têm que ser encaixados de qualquer forma naquela moldura categorial reducionista, do contrário esses setores não conseguem raciocinar e agir. Mas a “classe trabalhadora” a quem essa esquerda apela é muitas vezes uma mera abstração, porque a sua composição real está atravessada por aquela infinidade de particularidades que ela ignora e que não são tocadas de modo imediato por um discurso que tenta se voltar diretamente contra as categorias do capital, mas que soa irremediavelmente abstrato.

21. No momento mesmo em que se torna urgente, atual e palpitante a tarefa de pensar a destruição e superação do sistema do capital, a esquerda regride para a nostalgia da gestão. O sonho de uma boa parte da esquerda é voltar aos “bons tempos” da crença no progresso e completar no próprio país a modernização capitalista de meados do século XX, para ter a seu dispor como base social uma classe operária industrial organizada em sindicatos, que possa servir como instrumento de pressão para arrancar melhorias do Estado. Nesta trama, os partidos da esquerda fariam o papel de intermediários, negociando aumentos salariais, benefícios e direitos, ao mesmo tempo em que estariam dirigindo sindicatos, ONGs e departamentos universitários, acumulando forças para finalmente chegar ao poder do Estado. Outros, para não se misturar com os primeiros, querem usar essa base social para organizar uma insurreição de massas e instaurar uma ditadura do seu partido, para completar a modernização sem incômodos causados por opositores e dissidências. Essas são as únicas modalidades de intervenção que a esquerda consegue conceber, num contexto em que a realidade material não lhes dá mais sustentação. Não há mais bases a serem organizadas e dirigidas como as do passado. No século XXI a modernização capitalista acabou, a industrialização se concentrou na China e em alguns países do sudeste asiático, os empregos gerados são precários e instáveis, o proletariado industrial está mais fluido e heterogêneo e aquela base social almejada pela esquerda não fornece mais alicerce sólido para projeto nenhum, às vezes nem sequer uma tábua de salvação no mar revolto das disputas eleitorais.

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22. Ao mesmo tempo, praticamente toda a população mundial está proletarizada, no sentido de que depende da venda da força de trabalho para sobreviver, mas essa venda é feita cada vez menos nos moldes de negociações salariais coletivas por empresa ou por categoria profissional, e cada vez mais no modelo de plataformas de intermediação que conectam prestadores e tomadores de serviços eventuais. Quanto mais se universaliza a condição proletária, de sobrevivência por meio da venda da força de trabalho, mais ela é sentida como individual por uma massa de trabalhadores postos a concorrer entre si por remunerações cada vez mais escassas, que exigem jornadas cada vez mais extenuantes, em condições também cada vez mais precárias no nível da reprodução. Os trabalhadores são explorados enquanto produtores, enquanto consumidores e enquanto reprodutores da própria força de trabalho.

22.1. Cada negociação de compra ou de venda é uma guerra, um nanoenfrentamento de classes, em que cada indivíduo tenta comprar por um valor mais barato os bens/serviços de que precisa e vender mais caro os bens/serviços que fornece. As negociações via plataformas são travadas na forma de avaliações e pontuações, que geram índices e métricas, que podem resultar em transações futuras, bem como em “networking”, redes de contatos, com sua etiqueta peculiar, seu jargão característico, sua ditadura da positividade, seu caráter simulado e hipócrita que contamina todas as demais relações sociais. Essa contaminação aparece nas produções da indústria cultural e nas interações das redes sociais, que vão transformando cada microcosmo social em um Big Brother, uma arena de concorrência, lacração e cancelamento. É essa massa de indivíduos atomizados em concorrência de todos contra todos e em vigilância de todos sobre todos que está tomando lugar daquela base social organizada com a qual a esquerda estava habituada a lidar.

23. Existem vários níveis de descompasso, defasagem ou desencaixe na forma como a esquerda procura lidar com a classe trabalhadora. O primeiro, como exposto acima, diz respeito à forma dos vínculos contratuais de venda da força de trabalho, na qual está em retirada a forma da negociação coletiva de salários e está avançando a forma da vinculação individual a plataformas de intermediação. O segundo nível diz respeito ao fato de que os vínculos formais de contratação típicos da classe operária industrial organizada nunca foram hegemônicos, majoritários ou predominantes, em escala mundial. O proletariado sempre esteve estratificado em camadas caracterizadas por diferentes gradações de acesso à remuneração, benefícios, condições de trabalho, direitos e serviços públicos. E essa estratificação, para complicar ainda mais as coisas, sempre esteve atravessada por uma diversidade de particularidades de gênero, de raça ou outras.

Mas um terceiro nível, muito mais fundamental e mais decisivo, e no qual, por isso mesmo, o fracasso da esquerda é ainda mais estrepitoso, diz respeito ao fato de que, confrontada com as defasagens do primeiro e do segundo níveis, tudo o que a esquerda consegue imaginar é uma luta para incluir nos moldes formais de contratação todos aqueles segmentos sociais deixados para trás pela história da expansão capitalista em cada país, as mulheres, os negros, as “ditas” minorias, etc. O seu limite teórico e político é determinado pelo horizonte da venda da força de trabalho como mercadoria, um tipo de relação para além do qual a esquerda não consegue pensar. Tudo o que essas forças conseguem imaginar em relação ao trabalho reprodutivo é a reivindicação de algum tipo de remuneração ou reconhecimento, como aposentadoria antecipada ou licença maternidade, que seguem reduzindo todas as atividades humanas a mercadorias. A esquerda não consegue imaginar uma forma de atividade social que esteja voltada para o atendimento das necessidades humanas, que portanto não seja a do trabalho assalariado, que não envolva a troca de capacidades humanas abstratas na forma de força de trabalho a ser vendida, que não envolva a forma mercadoria e o dinheiro. Não consegue imaginar relações sociais autogestionárias que não envolvam a propriedade privada, o dinheiro e o Estado.

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A esquerda não consegue imaginar a superação da atual sociedade, apenas melhorias situadas nos marcos dos mesmos parâmetros desta, e se torna, assim, merecidamente obsoleta junto com esta, no momento mesmo em que ela restringe cada vez mais os horizontes de futuro. Na falta de uma imaginação criadora do futuro, o que se oferece é a reprodução do presente e a reciclagem do passado, na forma de uma multiplicidade de identidades sociais e estéticas postas à disposição nas prateleiras da indústria cultural, que se funde com a da política, a qual, por sua vez, está cada vez mais degradada ao espetáculo das personalidades e cada vez menos relacionada a alternativas de gestão. E se nem alternativas de gestão são imaginadas, muito menos o são as alternativas de transformação sistêmica. Nesse horizonte, a esquerda se coloca como mais uma das identidades na prateleira, deixando para trás o debate sobre alternativas sistêmicas e superação do capital.

 

Individualidade, sujeito e identidade

24. A contraposição entre o indivíduo singular e a universalidade do capital não é direta, mas mediada por diversos níveis de particularidade. A classe trabalhadora real tem sexo, tem raça, tem religião e cultura, e se define individualmente muito mais em função dessas identidades do que da identidade de classe (em especial num momento em que os mecanismos de exploração reforçam uma individualidade de tipo empreendedor e competitivo). Essa definição individual não é um mero engano subjetivo ou cognitivo, fundado na ignorância das categorias totalizantes do capital, mas uma circunstância material derivada da herança histórica dos processos de subsunção e das relações sociais materiais através das quais o sistema do capital mediatiza e viabiliza a submissão universal da classe trabalhadora mundial. A acumulação primitiva do capital e a espoliação em andamento mobilizaram uma infinidade de subdivisões previamente existentes no interior da população em camadas e hierarquias e as transformaram em instrumentos adicionais para reforçar a dominação. Ignorar essas identidades e as relações sociais em que estão fundadas, bem como as lutas que lhes são correspondentes, é tão nefasto quanto fazer delas o objeto de políticas de representatividade, as quais, em sua inspiração identitária e neoliberal, se mostram convenientemente funcionais ao sistema.

25. As identidades são uma criação dos dominadores, impostas sobre os dominados. São os dominadores que atribuem um lugar subalterno para mulheres, negros, homossexuais e minorias diversas, e em função desse lugar definem participações diferenciadas no trabalho produtivo e reprodutivo, bem como nas respectivas remunerações, tanto materiais como simbólicas. O universo social de cada segmento da população, seu mundo cultural, moralidade, relações interpessoais, etc., é mediado por seu lugar no processo de trabalho, e retroage sobre este, numa interação complexa, que se auto reproduz. Essas interações entre a lógica universal totalizante da exploração e as mediações particulares da sua implementação de acordo com formas historicamente herdadas de subsunção em cada sociedade geram um círculo vicioso que se impõe como um obstáculo ou armadilha inescapável. Essa situação é paradoxal porque, para que as identidades subalternizadas possam ser superadas, elas precisam primeiro ser reconhecidas. O indivíduo precisa se reconhecer como mulher, ou como negro, ou como homossexual, ou como pertencente a uma minoria ou nacionalidade qualquer, para negar o papel subordinado que lhe é socialmente designado pelo simples pertencimento a essa identidade. As identidades são as condições em que os indivíduos são chamados a intervir para fazer a história, aquelas circunstâncias que foram herdadas e que não lhes coube escolher, como dizia Marx no 18 de Brumário. Mas essas identidades não são essências imutáveis, de tipo metafísico ou biológico, que aprisionam os indivíduos a um destino previamente prescrito, pois são elas próprias construções sociais e históricas que devem ser reconhecidas para serem superadas. O identitarismo é o mecanismo que interdita a passagem do reconhecimento da identidade para a sua negação, impedindo a conexão com a totalidade da dominação social exercida pelo capital. O reconhecimento da identidade se torna um fim em si mesmo e o horizonte passa a ser a busca de representação nas estruturas de poder capitalistas existentes, e não a abolição de todas essas estruturas.

26. A ideologia liberal apresenta todos os seres humanos como sujeitos de direito, livres, iguais e proprietários de mercadoria. Nessa condição, todos os indivíduos podem ingressar no mercado e perseguir a realização dos seus objetivos, desfrutando de oportunidades iguais. Dessa forma, a apresentação liberal do mundo cria um horizonte de futuro em que a sociedade está num processo permanente de aperfeiçoamento, na medida em que os entraves à igualdade de oportunidades e à liberdade de empreendimento vão sendo removidos. E dessa maneira, estaria assegurada a possibilidade do acesso à prosperidade, medida quantitativamente em um acúmulo de mercadorias e monetariamente no afluxo de dinheiro. O identitarismo reforça essa apresentação na medida em que reivindica o reconhecimento simbólico de um lugar para cada uma das minorias e identidades no desfrute da almejada prosperidade. Ele funciona como uma espécie de autoajuda, enaltecendo a dignidade das mulheres negras, dos homens gays, dos periféricos, etc., que também “chegaram lá” e participam do grande espetáculo do consumo; sem que a massa das mulheres negras, dos homens gays, dos periféricos, etc., tenha alcançado qualquer melhoria nas suas condições materiais de vida. A história é falsificada de modo a reconhecer o papel de cada uma das minorias na edificação da civilização, de modo que todos os seus herdeiros hoje possam desfrutar da glória reflexa de se verem devidamente representados naquela edificação, sem que a sua situação material tenha se alterado.

A crítica revolucionária tradicional ao identitarismo procura mostrar que a desigualdade material continua existindo, que a massa da população pertencente a essas múltiplas identidades continua excluída apesar dos ganhos de representatividade e que portanto o discurso da igualdade de oportunidades esconde uma história milenar de violências, exclusões e opressões. A crítica procura reconhecer as limitações que são impostas a cada segmento particular, em função de identidades historicamente construídas, limitações que resultam das derrotas históricas que os segmentos oprimidos vêm sofrendo há milênios e que culminaram na edificação do sistema mundial do capital. Contra a falsificação identitária, a história de todas as lutas e todas as derrotas passadas dos oprimidos tem que ser resgatada, no sentido em que ensinava Walter Benjamim (“nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”), para que a humanidade possa ter um futuro livre da alienação.

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27. Entretanto, o horizonte dessa crítica revolucionária tradicional continua sendo o da reparação material dessas desigualdades, em termos de acesso igualitário ao mesmo acúmulo de mercadorias e ao afluxo de dinheiro que funcionam como parâmetros absolutos da sociabilidade do capital. Por isso, essa crítica revolucionária continua presa ao horizonte das identidades, porque não consegue ir além da busca de reparações para os segmentos oprimidos, medidas em termos de mercadorias e dinheiro, uma reparação que repõe os mesmos termos da competição liberal infinita. Liberalismo e identitarismo se tornam inseparáveis e envolvem a esquerda na sua reprodução cada vez que esta renuncia a uma crítica totalizante das categorias do capital e se acomoda às lutas particulares, aos projetos reformistas e ao horizonte da gestão do sistema.

A superação do identitarismo e do liberalismo só é possível por meio da superação dos marcos da sociabilidade do capital, ou seja, da forma mercadoria, do dinheiro e da propriedade privada, numa forma em que a igualdade entre os indivíduos não seja a formalidade abstrata do direito dos compradores e vendedores de mercadorias; mas a igualdade substantiva (Mészáros) dos seres humanos confrontados com a possibilidade e a responsabilidade pela gestão de todas as dimensões da sua vida. Para que o indivíduo possa se afirmar como ser humano genérico universal, para que tenha acesso a possibilidades ilimitadas de realização independentes da identidade particular em que veio ao mundo, é preciso que o sistema do capital seja superado. A conexão com a totalidade é a chave para o sucesso das lutas particulares, e vice versa, a luta contra a totalidade do capital deve partir da realidade social tal como existe hoje, com todas as suas desigualdades e particularidades, para reorientar a atividade social num sentido emancipatório, igualitário, horizontal e autogestionário.

28. Em boa parte, o identitarismo foi capaz de executar essa operação de interdição da passagem do reconhecimento das identidades para sua negação por conta da omissão de muitas correntes da esquerda em relação às lutas particulares de diversos segmentos secundarizados, estigmatizados, racializados, minorizados. Ou mesmo, por conta da opção explícita de algumas correntes de administrar o Estado, se equilibrando entre as demandas particulares de cada segmento para lhes conceder migalhas, inclusive na forma de cargos e verbas para organizações e representantes. Alguns desses, inclusive, se especializaram na profissão de manipular demagogicamente os ressentimentos dos segmentos sociais de onde emergiram contra um inimigo abstrato, o “homem branco cis hétero”, que toma o lugar do capital como causa de todos os males. Dessa forma, o desastre é completo: de um lado, uma parte da esquerda ignora as particularidades da composição de classe nas diversas sociedades, abrindo caminho para que a gestão neoliberal mobilize essas particularidades como recurso ideológico motivacional no discurso identitário da representatividade; de outro lado, para não perder espaço no mercado eleitoral para os neoliberais típicos, a esquerda institucional se converte ela própria em portadora do discurso identitário e representante da versão progressista do neoliberalismo, renunciando a uma crítica do sistema do capital em sua lógica totalizante.

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Aspectos políticos adicionais

29. Em cada realidade nacional o sistema do capital refuncionaliza as estruturas de poder historicamente precedentes para legitimar politicamente a dominação de classe. Os chefes tribais na África, os chefes religiosos no Oriente Médio, os ex-burocratas do partido no antigo bloco soviético, os latifundiários e seus herdeiros na América Latina, são as formas substitutivas da burguesia capitalista e da tecnocracia estatal na periferia mundial, encarregadas do microgerenciamento local da força de trabalho mundial. Conforme avança a mundialização do capital, os governos nacionais cada vez mais se convertem em delegacias de polícia a serviço do capital global. A sua função é negar as reivindicações que poderiam resultar em melhorias para a população, sob alegações diversionistas as mais variadas, fundadas na razão inconfessável de que tais reivindicações são impossíveis por conta dos limites impostos pelo mercado, pela gestão pública “responsável”, pelas políticas de austeridade, etc., ou seja, pela obediência inquestionável à lógica do capital.

30. Os espaços econômicos nacionais estão se convertendo em províncias locais do Estado mundial do capital. Isso não significa que o papel do Estado está sendo diminuído, como quer fazer crer a mitologia liberal, mas pelo contrário, que ele tem que ser reforçado na sua função mais essencial, a defesa da propriedade privada e das relações mercantis, pelos meios que forem necessários, mesmo que isso implique assumir formas autoritárias, mais dependentes da força nua e crua das armas e menos da hegemonia e dos consensos ideológicos, o que vem se tornando paulatinamente mais comum. Eleições, referendos e consultas perdem significado e conteúdo concreto, se convertendo em rituais formais vazios (mesmo que estridentes) por meio dos quais se legitima e recicla a vigência inquestionável e inalterável das mesmas políticas. Essas políticas são decididas em fóruns outros, em que líderes empresariais, políticos, religiosos, militares, etc., se reúnem entre quatro paredes (ou em grupos de WhatsApp) e negociam entre si as fatias de cada um na destinação das verbas, propinas, licitações, encomendas, sem que haja qualquer controle ou sequer conhecimento por parte dos segmentos envolvidos e do conjunto da população.

O Estado nacional está sendo gradualmente reduzido à função policial de disciplinar a força de trabalho na obediência aos ditames do sistema mundial do capital. As margens de manobra dos Estados nacionais para políticas de desenvolvimento e projetos nacionais estão cada vez mais estreitas, asfixiadas pelo endividamento e pelas políticas de austeridade. A função policial de controle armado do território é praticamente a única de duas que restam, pois ela se completa pela função assistencial de fornecer alguma renda mínima para as populações excedentes e cronicamente inviáveis do ponto de vista da acumulação. A falha dos Estados em desempenhar uma ou outra dessas duas funções, a penal ou a assistencial, é o que abre o espaço para a ocorrência de revoltas.

31. Em estágios avançados de endividamento estatal e austeridade, o controle armado dos territórios pelo Estado pode ser comprometido pela falta de verbas, que leva ao sucateamento das instituições encarregadas desse controle, como as forças armadas e polícias. Assim, na linha de frente da gestão da miséria e da violência, na ponta mais distante do Poder Público, o monopólio estatal do uso da força se dilui numa semi-privatização em que os integrantes das forças armadas e polícias, nas horas vagas ou depois de afastados da função pública, constituem milícias privadas, empresas de segurança particular, serviços de guarda costas, esquadrões da morte, assassinos de aluguel, etc. E por meio desse poder local, alternando situações de conflito e de parceria com o crime organizado, exploram a população cobrando por serviços de “proteção”, aluguéis, eletricidade e internet clandestinos, etc. O estágio final da decomposição do Estado burguês periférico no capitalismo ultra-tardio é a sua transformação em máfias.

A maior onda de revoltas populares da história da humanidade (2)

Perspectivas

32. A tendência para a homogeneização dos componentes estruturais da realidade mundial conduz a uma maior homogeneidade também da percepção de determinados traços fundamentais, por trás de todo o alarido dos discursos ideológicos, dos acenos dos mercadores de identidades e da balbúrdia geral do entretenimento industrializado em que tudo se dilui. Nos momentos de crise, alguns traços fundamentais dessa realidade vêm à tona com maior facilidade, de modo que a disjuntiva entre espontaneidade e organização tende a ser superada, na medida em que a revolta é premeditada diariamente no sufoco do busão, no enquadro da polícia, na humilhação por parte do patrão ou do cliente, na doída consciência da miséria, do tédio e do desespero de uma sociedade falsificada de cima abaixo. Quando suficientes motivos desses se acumulam, basta uma gota d’água para que a revolta exploda e se espalhe como um rastilho de pólvora. Também por isso, a revolta não precisa de dirigentes, nem de representantes, e quando estes surgem, em geral é para matar o impulso criador. A revolta basta a si mesma, coordena a si mesma, da primeira linha à retaguarda, cada um contribui como é capaz e ninguém precisa dizer ao outro o que fazer, porque já está tudo premeditado nos incontáveis momentos de fúria silenciosa contra o sistema. A vivência cotidiana das formas atuais de exploração cria um alinhamento entre os indivíduos revoltados mesmo sem que partilhem a experiência prévia de greves ou insurreições.

33. O critério para medir o sucesso das revoltas anteriores era a tomada do poder do Estado. Hoje se pode conceber algo muito mais avançado, a desmoralização do conjunto do Estado e todas as suas instituições, o descrédito dos políticos e dos partidos, o ódio merecido aos tecnocratas, gestores e aspirantes, a consciência de que as questões decisivas das nossas vidas podem e devem ser tomadas por nós mesmos em nossas mãos, sem intermediários e representantes. Quando este parâmetro é observado, podemos avaliar com mais precisão as reais condições para a superação do capital, em relação ao critério anterior, no qual reinava absoluto o fetiche da apropriação do Estado.

Dessa forma, deixamos de lado o aspecto de que boa parte das revoltas listadas na parte 2 foram derrotadas nos seus objetivos imediatos, ou foram recuperadas e até revertidas em sentido reacionário. Neste ponto preferimos destacar o fato de que as revoltas aconteceram, e esse simples fato é importante não só por erodir a legitimidade do Estado, partidos, instituições, burocracias e forças repressivas, mas também porque cria um marco na memória de toda uma geração, em termos de experiência de luta, enfrentamento e militância, podendo deixar rastros de organização e reflexão, que podem ser úteis em revoltas futuras.

33.1. A revolta social é o momento excepcional em que o ódio acumulado explode e se volta contra o sistema. Em oposição a essa exceção, a regra é que o ódio cotidianamente se volte contra o outro trabalhador, o concorrente, o superior hierárquico, o cliente, o que reclama, o que publica avaliação negativa, o pedinte, o parente, aquele que fica no meio do caminho e atrapalha o fluxo. Esse ódio impotente se volta também contra o próprio indivíduo, que implode em somatizações patológicas e estados emocionais e psicológicos de sofrimento sob o peso de exigências inalcançáveis vindas simultaneamente de todos os lados (trabalho, relacionamento, família, estudo, realização pessoal, religião). Para impedir que essa força destrutiva venha à tona descontroladamente, uma barreira de contenção discursiva é construída na forma de uma ditadura da positividade, do otimismo, do bom mocismo, do sorriso amarelo, da selfie instagramável, da ostentação de uma vida perfeita. Essa barreira de contenção, por sua vez, contém uma válvula de escape que é a explosão catártica do ódio socialmente aceito e legitimado, voltado contra aqueles que são pegos em deslizes e comportamentos desviantes e canceláveis.

34. É muito difícil determinar quando a onda de revoltas pode ser considerada esgotada; ela experimentou uma interrupção no início de 2020 devido à pandemia, e logo em seguida teve continuidade, depois de alguns meses. Mas antes disso, em janeiro daquele ano, poucos se lembram da ameaça de guerra entre Estados Unidos e Irã, precipitada pelo assassinato do general Qassem Soleimani, oficial da Guarda Revolucionária encarregado de intervenções iranianas em países da região, como Iraque, Síria e Líbano. Naquele momento, tanto Irã como Iraque atravessavam um ciclo de protestos de massas, que já vinham de vários meses, desde meados do ano anterior, como referido na lista compilada acima. No caso do Irã, tratava-se do maior ciclo de greves, protestos e lutas desde a revolução de 1979; e no caso do Iraque a revolta teve a característica extraordinária de unificar a população à revelia das linhas de divisão sectária e nacionalista que as facções xiitas, sunitas e curdas manipulam para impedir a contestação dos interesses de classe do setores que controlam o Estado.

A maior onda de revoltas populares da história da humanidade (2)

O assassinato do comandante da Guarda Revolucionária iraniana serviu para esvaziar os protestos no seu país, pois o governo pôde usar a ameaça de guerra para unificar a população a seu redor, e o efeito foi parecido no Iraque, onde o general era o responsável por uma parte das forças xiitas. Naqueles países os protestos foram interrompidos, embora tenham prosseguido no restante do mundo, mesmo no auge da pandemia. O fato é que, a guerra (ou, no caso, a simples ameaça de guerra) tirou do foco a luta de classes das populações contra os governos (como guardiões dos interesses do capital) para o colocar na luta entre os países.

34.1. Esse mesmo mecanismo opera agora no início de 2022, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Neste caso, temos uma guerra de fato, com implicações mundiais, já que a Ucrânia pede apoio da OTAN, a aliança militar euro-estadunidense, que prontamente responde com sanções econômicas, que afetam a Rússia e os mercados mundiais de commodities. Ou seja, a guerra na Ucrânia se globalizou, atraiu as atenções do mundo inteiro, criou divisões no interior de cada país entre as forças que apoiam a Rússia e as que condenam a invasão. Isso serviu para encobrir o debate sobre a crise econômica e suas consequências, a pandemia, as condições materiais de vida, a carestia, o desemprego, a miséria, a violência, etc. Os discursos sobre a realidade política e social foram etiquetados com uma rotulagem que procura classificá-los em algum dos pólos da disputa, como pró-Rússia ou pró-Ucrânia/OTAN, sobrepondo essa clivagem às questões materiais de que esses discursos procuravam tratar. Os exércitos e os governos que os comandam se colocam assim como representação da unidade fictícia da população, fazendo desaparecer as classes e seus interesses conflitantes. Esse clima pode perdurar por um tempo, efetivamente refreando a onda de protestos. A guerra entre os Estados capitalistas e as paixões nacionalistas, militaristas, patriarcais que despertam servem para tirar o foco da guerra entre as classes.

34.2. Essa alternativa da guerra, entretanto, pode ser uma faca de dois gumes, pois o efeito unificador que ela proporciona, de alinhar a população na obediência ao seu respectivo Estado nacional, pode não servir para disfarçar por muito tempo aqueles traços fundamentais da realidade. As condições materiais de vida podem ser agravadas pela própria guerra, e isso pode, num momento posterior, fazer a população se voltar contra os governos, detonando uma nova onda de revoltas, como já aconteceu por vezes na história. A atual guerra entre Ucrânia e Rússia pode já estar servindo para fomentar novas possíveis revoltas, não para esvaziá-las (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).

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35. A maior onda de revoltas da história certamente não será a última. Já assinalamos que uma progressão de protestos de massas cada vez maiores (se é que de fato essa tendência existe) pode não ser por si mesma suficiente para superar o sistema do capital. A energia dos protestos pode ser recuperada por meio da ação das organizações reformistas e vinculadas ao Estado, ou ainda, na pior das hipóteses, desviada para fortalecer projetos de tipo reacionário (mecanismo que no passado deu origem ao fascismo). A questão é que simplesmente não há alternativa, e novas ondas devem aparecer.

35.1. A atual onda de protestos certamente não vai derrubar as estruturas de poder capitalistas, e talvez a próxima, que na nossa hipótese pode ser ainda maior, mesmo assim provavelmente ainda não será suficiente. A lógica do capital e a estrutura dos Estados nacionais possuem raízes muito profundas na vida social, manifestas no culto às eleições, na obediência das pessoas ao seu governo e às instituições em geral, às normas do direito, da propriedade privada, do trabalho subordinado, das relações mercantis e também no fetiche do dinheiro. Além disso, a estrutura de dominação possui uma couraça maciça de resistência conservadora e reacionária, na forma do aparato militar, das forças armadas, das polícias, do complexo industrial militar, das agências de inteligência, tecnologias de vigilância, etc. (isso para não falar também dos aparelhos ideológicos, universidades, igrejas, mídias e redes sociais etc., com seu bombardeio contínuo de representações irracionais do mundo que bloqueiam a percepção da realidade). Um movimento capaz de reduzir à inoperância estruturas desse porte e natureza, e não apenas em uma potência imperialista, mas no conjunto delas e nos demais países, teria que ser muito gigantesco, não uma simples onda de revoltas, mas um tsunami.

35.2. Além disso, a superação do capital não envolve apenas um trabalho de destruição, que pode se nutrir da insatisfação popular para produzir sucessivas ondas de revolta, mas um trabalho ainda mais difícil, de construção de novas relações sociais. Como dissemos, a superação do capital e do Estado só é possível a partir da construção de formas autogestionárias de produção e organização das atividades sociais. Na verdade, a derrubada do poder político do capital, aquilo que normalmente se chama de “revolução”, é apenas um momento subordinado do processo geral de superação do modo de produção, e esse trabalho positivo de construção das novas relações deve existir antes, durante e depois desse momento subordinado que é comumente chamado de revolução. A luta para derrubar a realidade atual e a construção de novas relações sociais, na verdade, são inseparáveis e devem ser pensadas e praticadas juntas para que tenham sucesso. O primeiro desses ingredientes, as revoltas que conduzem a uma revolução, é apenas uma possibilidade, com um elevado grau de imprevisibilidade e aleatoriedade, mas o segundo, a organização de relações sociais autogestionárias, é uma necessidade absoluta.

35.3. Entretanto, afirmamos que não há alternativa, e essas novas ondas de revolta podem surgir, porque o próprio sistema do capital não tem mais o que oferecer, e esse talvez seja o ponto principal. A lógica da sociedade baseada na troca de mercadorias e na propriedade privada já está há muito obsoleta. As inovações técnicas da produção que estão a ponto de entrar em utilização numa escala massiva, em campos como automação, inteligência artificial, internet das coisas, engenharia genética, e outras; podem em breve tornar dispensável uma quantidade imensa de trabalho humano, seja ele qualificado ou não, minando ainda mais a própria fonte do valor.

A maior onda de revoltas populares da história da humanidade (2)

A exigência de que as pessoas tenham que dedicar seu tempo a atividades absolutamente inúteis, dispensáveis do ponto de vista técnico-produtivo, para ter acesso a vínculos sociais mediados pelo dinheiro, ou morrer de fome quando não encontram tais atividades; deve aparecer como um completo absurdo, de maneira gritante e transparente, para um número cada vez maior de pessoas.

O caráter simulado, fictício, de uma vida social baseada em empregos de mentira (Graeber), em perfis artificiais em redes sociais, em avatares de videogame, está no fundamento da ideia psicótica e megalomaníaca de criar uma duplicação virtual do mundo na forma de metaversos, nova obsessão das empresas de tecnologia, apenas para que as pessoas não reflitam sobre a própria vida real.

A destruição ambiental avança num tal grau que a nova meta das personificações do capital de perfil mais psicopata é migrar para o espaço e deixar o restante da humanidade perecer num planeta destruído pela mudança climática.

A distopia do mundo real já está tão avançada que o gênero distópico da ficção foi esterilizado, se tornou meramente descritivo, levando as pessoas a se acostumar homeopaticamente com os maiores graus de violência e abuso, conduzindo-as pouco a pouco à aceitação passiva de situações inaceitáveis.

35.4. Um limiar se aproxima nas próximas décadas em que a inviabilidade do sistema e suas tendências destrutivas vão se aprofundar de uma tal forma que tornarão a vida tal como nos lembramos algo irreconhecível. A pandemia já foi um passo nessa direção, acostumando as pessoas a uma situação de desastre, a um “horizonte de expectativas” declinante, o chamado “novo normal”, que inclui desemprego, miséria, violência, competitividade generalizada, incerteza, medo, sensação de impotência, depressão e outras formas de sofrimento psíquico e emocional, bem como vigilância estatal, policiamento do pensamento por gestão algorítmica, cancelamento de dissidentes e “morte virtual”, polarização social, agressividade e conflitividade, instabilidade política, etc.

Novos desastres em série nos próximos anos e décadas podem anestesiar a sensibilidade individual e coletiva de uma tal forma que não se saiba mais o que seria uma vida “normal” ou o que seria uma vida melhor pela qual se possa aspirar e lutar. A barbárie capitalista pode progredir em câmera lenta, do ponto de vista da história de longa duração, não numa grande explosão, mas numa putrefação gradual. O perigo, portanto, não é apenas de que as revoltas populares não tenham a potência suficiente para derrubar as estruturas de poder capitalista e liberar o caminho para as novas relações sociais; o maior perigo é de que as revoltas nem sequer aconteçam.

A maior onda de revoltas populares da história da humanidade (2)

Granamir, 03 de Abril de 2022.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Raoul Ubac (1910-1985).

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