Por João Bernardo

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Há uma radical assimetria entre o historiador e os personagens. O historiador estuda os acontecimentos do a posteriori para o a priori, mas os personagens vivem do a priori para o a posteriori. Um efeito — que serve igualmente de demonstração — desta assimetria é que nenhum historiador roda 180º e, já que também ele se situa num a priori, se atreve a descrever o seu futuro com a mesma aparente segurança com que descreve o passado dos outros.

Isto significa que no processo histórico, enquanto ele decorre, há actores, mas não existe enredo nem encenador. Ora, como podem os actores, representando um papel que não conhecem numa peça de que ignoram o desfecho, trilhar um caminho tão claramente definido como aquele que o historiador apresenta nas páginas que escreve?

Assim, não há nenhum motivo para admitir que a perspectiva anómala do historiador, arrogando-se o ilusório privilégio do a posteriori, corresponda, por si só, a uma relação causal.

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O problema não se resume à perspectiva a posteriori tomada pelo historiador. A questão é mais complicada, porque na história não existem causas possíveis de isolar, apenas contextos, entendidos como conjuntos estruturados de factores.

Tudo — seja uma coisa material, uma instituição, um conceito ou uma simples palavra — só se define por oposição a tudo o resto. x ≠ a, b, c … n. Um contexto é um conjunto de factores estruturado mediante relações de oposição, e a coesão desse conjunto decorre precisamente da simultaneidade de negações recíprocas. É a inter-relação de negações, e a sobreposição dessas inter-relações, servindo umas às outras como espelho das diferenças, que impede o todo de se fragmentar, se pulverizar e dispersar.

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Esta noção de contexto fica mais complexa, e ao mesmo tempo a coesão do contexto fica reforçada, se entendermos que as pessoas não vivem dentro delas mesmas e, portanto, não são sujeitos das práticas. Não há razão para recorrer a categorias psicológicas, desprovidas de validade histórica. Cada pessoa é um percurso, aleatório e sempre mutável, entre diferentes esferas sociais, caracterizadas por práticas distintas. São estas esferas, e não as pessoas, os sujeitos das práticas. Os actores da história são as esferas sociais. E cada pessoa, ao longo do seu percurso, partilha parcialmente multiplicidades de práticas com um número ilimitado de outros percursos pessoais. Nesta perspectiva a noção da pessoa como uma individualidade é uma ilusão, devida ao facto de haver cérebros que processam certos tipos de informação recebidos através de sensações e excluem outros tipos de informação, estabelecendo assim uma clivagem relativamente ao mundo considerado exterior.

Ora, se esta forma de conceber os personagens deixa os contextos mais complexos, porque lhes multiplica o número de factores, deixa-os também mais coesos, porque a variedade e a mutabilidade dos trajectos individuais entre esferas sociais distintas contribuem para entretecer aqueles contextos.

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A complexidade da noção de contexto é ainda superior, porque será que cada contexto se confunde com o presente dos personagens num dado momento? Mas um contexto articula o passado (memórias pessoais e instituições num processo de desenvolvimento) e o futuro (projectos pessoais e o desenvolvimento de instituições), podendo afirmar-se que não existe um tempo presente e que, portanto, ele nunca deve ser a matéria do historiador.

A afirmação inversa é igualmente verdadeira, podendo afirmar-se que o presente dos personagens em cada momento resume um contexto em que o passado é entendido como os traços que dele restam no presente, e o futuro é entendido como as antecipações contidas no presente. Deste modo, os sucessivos presentes são a matéria única do historiador, que neles deve inserir os passados e os futuros.

Na perspectiva temporal, a complexidade da noção de contexto resulta de uma necessária complementaridade, em que o historiador deve conjugar uma história centrada no presente, cujo dinamismo provém de se entender o presente como uma amálgama de tempos, com uma história alheia à noção de presente, porque segue o dinamismo de processos em que se desvendam traços e se antecipam projecções.

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Se considerássemos um contexto como causa linear dos efeitos que lhe sucedem, teríamos de definir quais dos inúmeros factores do contexto, ou quais das inúmeras relações entre factores, foram ou não causa e em que medida o foram. E esta definição deveria resultar da complementaridade de duas perspectivas, uma centrada no dinamismo de sucessivos tempos presentes e outra acompanhando a sobreposição de desenvolvimentos do passado e de despertares do futuro.

Mas aqui precisamente reside a dificuldade. O número de factores, e de relações entre factores, integrantes de um contexto é ilimitado, não só porque a pesquisa histórica tende a descobrir novos factores e a estabelecer novas relações, como porque cada factor ou relação deve, por seu turno, ser entendido num contexto, e assim sucessivamente, o que prolonga o carácter ilimitado dos factores e das suas relações.

Por isso, a noção de causa deve ser substituída pela noção de acção.

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Devido ao carácter ilimitado do número de factores e de relações e ainda devido à complementaridade das abordagens temporais, e se cada factor e cada relação devem ser entendidos no contexto de outros factores e relações, ad infinitum, então a acção emanada de um contexto nunca pode entender-se em termos de causalidade linear, mas exclusivamente em termos de determinismo probabilístico.

Mas será esse probabilismo do tipo apresentado no modelo de Maxwell e Boltzmann relativo às moléculas ou átomos (naquela época a terminologia a este respeito era imprecisa) nos gases, em que o momento e a posição de cada molécula ou átomo seriam definíveis simultaneamente, sendo, porém, impossível ao observador calcular a interacção desses milhões de partículas, o que obrigaria a um cálculo estatístico e imporia, portanto, um determinismo probabilístico? Ou será um probabilismo do tipo formulado pela primeira vez por Max Born ao reinterpretar a função de onda de Schrödinger, quando afirmou que no âmbito quântico nenhuma partícula é susceptível de determinação causal linear, sendo o probabilismo, portanto, inerente à natureza das próprias partículas? Será um probabilismo resultante do desconhecimento ou um probabilismo resultante da incerteza?

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De certo modo — mas só de certo modo — esta problemática fora já antecipada por Leibniz, quando considerou que toda a possibilidade, enquanto possibilidade, tem um grau de realidade, porque é uma «pretensão à existência».

O possível não é determinado especificamente, não sabemos se vai ou não materializar-se ou, numa terminologia precisa, se vai ou não actualizar-se. Mas nem tudo atinge o estatuto de possível. Os limites do possível são determinados. Isto significa que pode definir-se exactamente o impossível, podendo portanto definir-se os contornos do possível, mas dentro desses contornos o número de possibilidades é ilimitado. Por outras palavras, num quadro com fronteiras rigorosamente determinadas existem ilimitadas possibilidades de realização dessa determinação.

Os personagens da história ou sabem o que estão impedidos de fazer ou ignoram o que lhes está vedado sequer sonhar, mas deparam com um leque ilimitado de alternativas possíveis. O que cada um idealiza dentro da sua cabeça ninguém conhece, mas se o pensamento beneficiar nem que seja de um esboço de efectivação, então isto implica construir alguma coisa ou falar com outras pessoas, deixa traços materiais e move relações sociais. A possibilidade não é um fantasma, é o gérmen de um processo, a tal «pretensão à existência» de que falava Leibniz, e por isso é real. Se o processo não se desenvolver, a possibilidade não se efectivará, a «pretensão à existência» ficará frustrada, mas entretanto ela foi real enquanto possibilidade. A história dos múltiplos fracassos não é menos real do que a do único êxito.

Do a posteriori para o a priori o historiador vê uma só realidade efectivada, mas do a priori para o a posteriori os personagens vivem um número ilimitado de realidades possíveis.

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Para o historiador, a história comparada é tão necessária como é o laboratório para o cientista, destinando-se a focar um fenómeno ou um processo e a ter a certeza de que é dele, e não de outro, que se trata. Se os factores de um contexto estão estruturados mediante relações de oposição, só a história comparada permite definir essas oposições.

Mas a história comparada não responde apenas a esta exigência e tem igualmente uma segunda finalidade, que considero indispensável. Sendo de antemão frustrada a ambição de abarcar todos os factores e todas as relações para estabelecer uma impossível causalidade linear, a história comparada destina-se também a estudar factores que abortaram e relações que não se desenvolveram, presentes fracturados e dinamismos temporais interrompidos, de modo que o entendimento de múltiplos insucessos esclareça o grau de probabilidade do único sucesso. Para o determinismo probabilístico a história comparada é uma necessidade intrínseca.

A única maneira de evitar a distorção resultante da assimetria entre o a posteriori e o a priori consiste em levar a historiografia a incidir nos factores e relações que, apesar de serem realidades possíveis, acabaram por ser eliminados e nunca chegaram a ser realidades efectivas. Só estudando o que não aconteceu poderemos elucidar o que sucedeu. Deste modo, o a posteriori deve resultar do estudo do fracasso dos — de quantos? — a priori.

A historiografia só atingirá um nível científico quando se transformar na história do não.

As obras que ilustram este manifesto são de Antoni Tàpies (1923-2012).

9 COMENTÁRIOS

  1. RUPTURA EPISTÊMICA & ESPÍRITO DA UTOPIA
    Estudar o que não aconteceu, numa crepuscular e bachelardiana história do não, faria sentido como disciplina auxiliar de uma espiritual e blochiana teleonomia do não-ainda.

  2. João, seu texto é intrigante… gostaria que você esclarecesse um pouco mais, se possível, o problema da objetividade na ciência histórica, dentro do seu modelo. Entendi que há uma complexificação dos processos históricos e uma crítica à linearidade histórica. O que mais você diria?
    Aproveito para tirar uma dúvida que nada tem a ver com esse texto especificamente, mas estou me pegando com ela neste momento. Em suas discussões sobre Estado Amplo e Estado Restrito, você já confrontou diretamente a teorização de Gramsci sobre esses conceitos em algum texto?

    Saudações!

  3. Ulisses,
    Agradeço o seu comentário, porque em linha e meia você expôs o tutano deste manifesto.
    O problema é que no a priori não existe maneira de distinguir o não-ainda da sucessão de não-nunca.

    Irado,
    Quanto à sua primeira questão, é-me impossível responder-lhe num comentário. Talvez eu apresente aqui proximamente um artigo mostrando como procurei aplicar, ao longo de toda a minha obra, uma historiografia do Não. Para já, sobre a questão da objectividade, remeto para um livro meu já antigo, Dialéctica da Prática e da Ideologia (Porto: Afrontamento, São: Paulo: Cortez, 1991).
    Quanto à segunda questão, o meu conceito de Estado Amplo nada tem a ver com o de Gramsci. As palavras são as mesmas, mas o conceito não tem nenhuma relação.
    De qualquer modo, eu nunca fui influenciado pela obra de Gramsci, embora na minha juventude tivesse sido bastante influenciado por Antonio Labriola (não confundir com Arturo Labriola!), de quem Gramsci sofreu a influência. Se não me falha a memória, a única ocasião em que mencionei Gramsci foi no Labirintos do Fascismo, como um caso, entre muitos outros, de convergência entre a esquerda social e a direita nacional. Mas ali o caso de Gramsci serviu-me apenas para ilustrar um problema que atingiu, e atinge, uma enorme amplitude.

  4. No distante ano de 2005, João Bernardo esteve em Goiânia num congresso de História na UFG e na ocasião ofereceu-nos o desenvolvimento analítico de oito teses sobre metodologia da História. O texto dessa conferência foi publicado na História Revista e pode ser consultado através deste link: https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/9006
    Vale muito a leitura do texto de 2005 com o que o autor retoma e avança neste texto.

  5. Obrigado João, de fato conheço as diferenças entre a sua teorização e a de Gramsci, apenas queria saber se você se confrontou com o autor neste aspecto. Abraço.

  6. Caro João Bernardo:
    O problema da indistinção entre o não-ainda da sucessão de não-nunca é uma pseudo-aporia, eventualmente solucionável mediante o recurso a uma negativa e adorniana dialética.

  7. Caro João, uma inspiração, como sempre. Desculpe-me a forma – reproduzo trechos e comento -, mas me pareceu a mais simples. Obrigado pelo texto. Abraços do Mário.

    “Isto significa que no processo histórico, enquanto ele decorre, há actores, mas não existe enredo nem encenador. Ora, como podem os actores, representando um papel que não conhecem numa peça de que ignoram o desfecho, trilhar um caminho tão claramente definido como aquele que o historiador apresenta nas páginas que escreve?”
    Meu caro, a meu juízo sua proposição remete à questão da consciência dos sujeitos, do grau de liberdade com que conduzem suas ações e da amplitude de suas percepções da trama que se desenrola. Porque há tramas se desenrolando, mas para o curso das quais os atores atuam supondo que conhecem e controlam a plenitude do enredo. Eles atuam supondo que conhecem a trama e que são capazes de conduzi-las ao desfecho que pretendem. Se não houvesse, como seria capaz o historiador de reconhecê-la e racionalizar o seu curso? Seria possível a racionalidade na História sem essa configuração? Não seríamos capazes apenas de descortinar ações restritas, performances limitadas, breves flashs do passado?

    “Cada pessoa é um percurso, aleatório e sempre mutável, entre diferentes esferas sociais, caracterizadas por práticas distintas. São estas esferas, e não as pessoas, os sujeitos das práticas. Os actores da história são as esferas sociais.”
    Althusser lhe referencia aqui de alguma forma? As pessoas não são a matéria-prima das esferas em questão?

    “Mas um contexto articula o passado (memórias pessoais e instituições num processo de desenvolvimento) e o futuro (projectos pessoais e o desenvolvimento de instituições), podendo afirmar-se que não existe um tempo presente e que, portanto, ele nunca deve ser a matéria do historiador.”
    A posição dialeticamente oposta que apresenta no parágrafo seguinte faz mais sentido para mim. São vários os presentes que o historiador aborda e que configuram sínteses provisórias de percentuais específicos e diversos de passados projetados e futuros em processo. Presentes sucessivos constituem relações dinâmicas entre percentuais diversos e diversamente combinados de passados e futuros. Os presentes são as sínteses. Não é isso o que configura os processos? Ademais, o futuro só é historicamente compreensível como present continuous. De resto, seria projeção. Sob tal perspectiva, o giro de 180º a que se refere seria possível, um conhecimento do futuro não como ele será, mas das suas potencialidades de ser a partir de projeções sucessivas arremetidas dos presentes em curso. Ademais, seria um conhecimento tão provisório como o que temos do passado. Aliás, não é isso que indica na passagem abaixo?
    “Mas aqui precisamente reside a dificuldade. O número de factores, e de relações entre factores, integrantes de um contexto é ilimitado, não só porque a pesquisa histórica tende a descobrir novos factores e a estabelecer novas relações, como porque cada factor ou relação deve, por seu turno, ser entendido num contexto, e assim sucessivamente, o que prolonga o carácter ilimitado dos factores e das suas relações.”

    “O possível não é determinado especificamente, não sabemos se vai ou não materializar-se ou, numa terminologia precisa, se vai ou não actualizar-se. Mas nem tudo atinge o estatuto de possível. Os limites do possível são determinados. Isto significa que pode definir-se exactamente o impossível, podendo portanto definir-se os contornos do possível, mas dentro desses contornos o número de possibilidades é ilimitado. Por outras palavras, num quadro com fronteiras rigorosamente determinadas existem ilimitadas possibilidades de realização dessa determinação.”
    Em cada presente, o possível é determinado pelo conjunto das sínteses viáveis entre passado e futuro, do quantum específico que opera a síntese das possibilidades. Desvendar um processo seria justamente estabelecer o que foi em meio às possibilidades do que poderia vir a ser.

    “A história dos múltiplos fracassos não é menos real do que a do único êxito.”
    Perfeito!!!

    “Do a posteriori para o a priori o historiador vê uma só realidade efectivada, mas do a priori para o a posteriori os personagens vivem um número ilimitado de realidades possíveis.”
    Penso que seja justamente contra este ‘estreitamento do foco’ que se levanta seu manifesto, não? Qualquer calouro de um curso de História ouvirá de um professor com cara de erudito que ‘a História não se faz, não admite o ‘se’. É preciso criticar este reducionismo e superar tamanha falta de fôlego e humildade.

    “Só estudando o que não aconteceu poderemos elucidar o que sucedeu. Deste modo, o a posteriori deve resultar do estudo do fracasso dos — de quantos? — a priori.”
    Que tal ensaiar a história do não? A tentativa de assalto ao céu poderia ter desfechos diversos? Quais? Que sucessivos presentes desfechos outros poderiam ter produzido?
    Só me resta lhe desejar mil anos de vida para que possa seguir adiante… E a mim também, para que possa acompanhá-lo!

  8. Caro Mário Jorge,

    Muito obrigado pela sua paciência. O problema é que é mais rápido colocar questões do que esclarecê-las e, como já disse a outro leitor, prefiro responder num novo artigo do que no espaço apertado dos comentários. No próximo mês procurarei ter esse artigo publicado.

    Limito-me agora a uma questão que, embora para mim seja fundamental, é acessória neste contexto. Considero que os actores da história, como indiquei no § 3, não são as pessoas, mas as esferas sociais, de que as pessoas não são sequer a matéria-prima. Pretendi expor este modelo no Dialéctica da Prática e da Ideologia (Porto: Afrontamento, São Paulo: Cortez, 1991), que decerto se encontra digitalizado num qualquer canto da internet. «Os indivíduos não são sujeitos práticos, nem aspecto de sujeitos práticos», escrevi eu ali. «Na esfera das instituições o indivíduo não existe como individualidade, não existindo aí portanto indivíduo». Por isso eu não introduzo a consciência pessoal na trama da história, e distingo radicalmente entre formas ideológicas expressoras de esferas sociais e formações ideológicas individuais. Nas esferas sociais os múltiplos percursos individuais partilham práticas, mas as ideologias individuais não podem ser partilhadas. De tudo o que publiquei, é aquele o livro que mais segue ao arrepio do senso comum. Mas pouco me importa, porque o encerro numa lógica solipsista, dizendo: «Tudo o que aqui escrevi é verdade, porque é a verdade de mim próprio». Onde encontro este modelo melhor trabalhado é nas peças de Sófocles ou então, modernizando um pouco, se imaginarmos um personagem kierkegaardiano errando entre esferas sociais definidas com rigor spinozista.

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