Por Bancário Anônimo
Contribuição para a História da Oposição Sindical Bancária de São Paulo, com aportes sobre a organização nacional, nas décadas de 2000 e 2010
1.1. Introdução de 2024
Em setembro de 2004, os trabalhadores dos bancos se rebelaram contra a direção do sindicato, numa assembleia histórica em São Paulo, e decretaram uma greve que acabaria se estendendo pelo país e durando 30 dias. Vivia-se então o primeiro mandato do PT na presidência do país, e havia uma geração de trabalhadores que tinha a expectativa de que essa mudança na gestão central do Estado traria melhorias há muito tempo aguardadas, ou no mínimo, a reversão de uma década de perdas acumuladas durante os governos neoliberais de Collor e FHC. Entretanto, o PT optou pelo projeto de um capitalismo que seria “bom para todos”, no qual as melhorias para a maioria da população supostamente viriam sem que fosse necessário alterar as estruturas de poder seculares que controlam o país. Por um tempo esse projeto pareceu se sustentar de pé, até que não mais… com as consequências que hoje conhecemos. Naquele momento, a adesão governamental à austeridade, então chamada de “responsabilidade fiscal”, impediu o cumprimento das expectativas daquelas frações de trabalhadores. E alguns fenômenos de rebelião e ruptura se manifestaram, tendo sido a greve dos bancários de 2004 um dos mais característicos.
A recente greve das universidades federais em 2024, já depois da volta do PT à presidência, deflagrada também contra a chantagem dos setores petistas (“não é hora de fazer greve” ou “se opor ao governo pode fortalecer a direita”); foi uma espécie de versão em miniatura daquele movimento dos bancários em 2004. Naquela ocasião, tratava-se de uma categoria muito mais numerosa e centralizada, cuja mobilização tinha impacto real na economia e na vida de grande parte da população. Vinte anos depois, em setembro de 2024, um novo movimento como aquele que os bancários protagonizaram é completamente impossível. Não apenas porque a quadra em que aconteciam as assembleias foi vendida e não pertence mais ao sindicato, e porque as assembleias, desde a pandemia, já acontecem todas em modalidade virtual, com pífia participação. A ocorrência de uma nova mobilização na categoria, mesmo de intensidade muito menor, é impossível porque nessas duas décadas desde aquela rebelião histórica, a memória de luta e organização foi esvaziada de uma tal forma que nenhum bancário cogita hoje em fazer greve, ou mesmo se opor aos bancos de qualquer outra maneira que seja.
A ousadia dos trabalhadores de tentar tomar decisões sobre sua vida e sua luta por si mesmos, manifestada naquela assembleia e no decurso da greve, precisou ser desfeita pela burocracia sindical com o uso intensivo de manobras as mais pérfidas possíveis. Nos anos seguintes a 2004, um movimento de oposição contra a direção sindical tentou lutar contra essas manobras e retomar a mobilização da categoria, por meio de diversas estratégias e formas de ação e organização. Esse movimento fracassou, a política da burocracia prevaleceu, a passividade e o conformismo se instalaram, os bancários aderiram em massa à ideia de seguir carreira individualmente e abandonaram a perspectiva da ação coletiva.
Duas décadas depois, a oposição de esquerda ao PT praticamente deixou de existir, no sentido de que deixou de ter qualquer pretensão de mostrar alguma autonomia em relação à política petista e de desenvolver alguma disputa pelos rumos da sociedade. Isso aconteceu não apenas na categoria bancária, mas em todos os segmentos sociais em que havia algum tipo de oposição de esquerda organizada. A adesão acrítica de todos os setores da antiga oposição de esquerda à chantagem petista reitera o seu papel de sócios minoritários do sistema burocrático composto por partidos, sindicatos, ONGs, movimentos sociais e outros aparatos. As organizações que participam dessas estruturas acabam funcionando como parte da gestão do capital, com interesses de classe próprios, opostos aos dos trabalhadores.
Todos esses setores cederam à chantagem petista de que não é mais possível fazer lutas, pois isso poderia “fortalecer a direita”. E justamente ao abandonar qualquer perspectiva de combatividade contra o capital, o PT e seus satélites contribuem exatamente para fortalecer as versões mais oportunistas e extremas da direita, que aparecem perante amplas camadas da população como única alternativa de projeto de sociedade existente. O PT e as demais forças daquilo que um dia foi a esquerda, que pateticamente emprestam sua obediente militância para a política do partido, reproduzem um imaginário reducionista e claustrofóbico, em que a ação direta contra o capital não é mais possível, e as candidaturas eleitorais mais rebaixadas, com as alianças mais duvidosas e fisiológicas, são a única tábua de salvação disponível contra o reacionarismo. Não se chega a essa situação calamitosa em que nos encontramos sem o esforço concentrado da burocracia (e sem a conivência, por cumplicidade, negligência ou incompetência da oposição) para destruir a mobilização autônoma dos trabalhadores. O relato que fazemos neste texto é uma pequena amostra de como tal destruição aconteceu, observada sob o ponto de vista de uma determinada categoria profissional.
Se nos seus primeiros vinte anos de história o PT viveu às custas da memória das lutas sociais do período final da ditadura, nos vinte anos seguintes o partido tratou de enterrar essa memória para se habilitar como um gestor qualificado dos interesses do conjunto do capital que opera no país. Aliás, o único gestor racional disponível, já que a alternativa bozista se mostrou muito errática e imprevisível, o que não impede que siga sendo uma aposta com grandes chances de aceitação. O texto que apresentamos a seguir mostra como essa destruição da memória de luta e organização aconteceu no interior de uma das principais categorias organizadas de trabalhadores do país. Esse segmento formado pelas categorias sindicalmente organizadas era um dos principais componentes da base social e eleitoral inicial do PT. Um processo semelhante a esse que descreveremos em bancários também aconteceu entre metalúrgicos, petroleiros, químicos, professores, trabalhadores dos correios, funcionários públicos, etc., com as particularidades e o colorido próprios de cada categoria. Talvez a publicação desta narrativa sirva de estímulo a outras testemunhas desses processos para que apresentem seus relatos.
O texto foi escrito por um dos participantes de 2004 e do movimento de oposição, como uma tentativa de refletir sobre como aconteceu esse esvaziamento da memória de luta e organização entre os bancários. A primeira versão desta História da Oposição foi escrita em meados de 2018, ainda com a intenção de provocar um debate interno entre os coletivos que faziam oposição às direções sindicais alinhadas com o PT, tanto na base de São Paulo quanto nacionalmente. Entretanto, esse debate acabou não acontecendo, o texto jamais circulou amplamente, os coletivos com os quais seria possível debater se desarticularam ou simplesmente deixaram de existir. O propósito original, que era o de reativar o debate sobre os rumos estratégicos para a organização dos bancários, não se cumpriu também porque a mobilização nessa categoria definhou cada vez mais, de 2018 em diante, até praticamente desaparecer. Sendo assim, o propósito que resta é de servir como documento histórico parcial, retratando um certo processo de lutas, as transformações na economia e na realidade do país e como isso se refletiu na categoria, as formas de organização que foram tentadas, o fracasso das estratégias e perspectivas que foram desenvolvidas, e o melancólico encerramento do ciclo de lutas que se expressou em greves todos os anos, de 2003 a 2016.
A parte principal do texto foi finalizada em 2018 mesmo; os parágrafos de apresentação a seguir (parte 1.2) e a parte final, que traz algumas conclusões políticas (parte 8), foram acrescentados em 2020, na última ocasião em que o texto foi revisado pelo autor. A apresentação acima e algumas poucas observações entre colchetes [Obs.] foram adicionadas para publicação em 2024. As estatísticas sobre a composição da categoria bancária e o papel do segmento bancário na economia, apresentadas na parte 2, não foram atualizadas desde que foram compiladas em 2018. No entanto, as tendências ali delineadas, de concentração oligopólica e renovação tecnológica do setor, desde então somente se aprofundaram, como atestam a massificação do uso de aplicativos de celular, a criação do Pix, o avanço das chamadas “fintechs”, etc. Por isso mantivemos essa parte do texto tal como foi escrita.
Pedimos a paciência do leitor com o desfile de uma miríade de coletivos e organizações, muitos de vida efêmera, que ocupam principalmente as partes finais do texto. Dentro do propósito original em que foi escrito, para servir como tentativa de balanço das formas de militância desenvolvidas no interior da categoria, para fins de uma possível reorientação estratégica, era indispensável dar nome aos bois e citar os grupos que serviam como portadores das principais ideias e projetos. Para facilitar a navegação por essa peculiar coleção de espécimes políticos, apresentamos também um glossário com as principais siglas citadas (ver aqui).
1.2.
Além desta apresentação, o texto está dividido em mais 7 partes:
– Na parte 2, para ambientar os leitores que não pertencem à categoria bancária e não estão familiarizados com a sua realidade, apresentamos um sumário sobre a sua atual forma de segmentação e organização: as diferenças entre funcionários dos bancos públicos e privados, o papel do sindicato de São Paulo no cenário nacional, estatísticas sobre o número de bancários no país e a “bancarização” da população, etc.
– Na parte 3 tratamos da greve histórica de 2004, abordando seus antecedentes, deflagração, dinâmica e encerramento. A greve “semi-selvagem” de 2004 (desencadeada contra a direção sindical, que defendeu o acordo com a patronal e perdeu a assembleia) dividiu a história da oposição sindical bancária, de uma tal forma que os acontecimentos anteriores a 2004 parecem uma acumulação destinada a desaguar naquela luta, e os acontecimentos posteriores foram determinados por aquela greve. 2004 dominou o imaginário da oposição bancária nos anos posteriores, como uma espécie de narrativa mitológica, cuja repetição foi reiteradamente buscada, mas nunca mais alcançada.
– Na parte 4 tratamos do período pós-greve de 2004, com as consequências daquela greve para a organização da categoria, a eleição do SEEB-SP em 2005, o esvaziamento progressivo do movimento nos anos seguintes, as manobras da burocracia sindical e as mudanças no comportamento dos bancários.
– Na parte 5 tratamos da oposição bancária de 2009 até 2013. Até 2009 o grosso da oposição se organizava no Movimento Nacional de Oposição Bancária – MNOB, tendência de oposição sindical controlada pelo PSTU. Naquele ano começam algumas rupturas de coletivos locais com a política do PSTU, vindo resultar na construção da Frente Nacional de Oposição Bancária – FNOB, que se funda em 2011. Esse período termina em 2013, quando se constitui uma outra frente, desta vez local, na base de São Paulo, na sequência das Jornadas de Junho, com o nome de Avante Bancários!
– Na Parte 6 tratamos do período de 2013 até 2017, mostrando como as tentativas de organização criadas no período anterior (FNOB e Avante), desconectadas dos processos reais que estavam acontecendo na categoria, voltadas para disputas política internas, projetos aparatistas e de auto-construção das organizações, terminaram por naufragar e se dispersar.
– Na parte 7 traremos mais alguns detalhes sobre as últimas tendências nas formas de organização (ou desorganização) da categoria, característicos do último período de enfraquecimento das lutas, em que se aprofundam as práticas burocráticas do que chamamos de “sindicalismo de encenação”.
– Na parte 8 temos o epílogo dessa história, chegando até a campanha salarial 2018, além de algumas conclusões políticas sobre o conjunto do período, bem como perspectivas gerais para a classe a partir do momento atual do país e também informações adicionais.
Por fim, precisamos deixar registradas duas observações. Primeiro, estamos cientes de que existe toda uma história da oposição sindical bancária anterior a 2004, que guarda preciosas lições para a nossa militância. Mas o autor não está habilitado a tratar dessa história precedente porque ingressou na categoria em 1998, e só começou a atuar efetivamente no movimento a partir de 2004 (houve uma greve menor em 2003, com três dias de duração, mas a esta o autor apenas aderiu passivamente). Por mais que se pudesse ter observações válidas sobre o que aconteceu no período precedente, este não foi esse o caso, de modo que não seria metodologicamente correto fazer o balanço do movimento num período que sequer foi acompanhado devidamente.
Segundo, cabe assinalar que, devido à segmentação descrita no ponto 2 e às correspondentes condições de organização, essa história do movimento de oposição sindical bancária praticamente se resume a uma história das lutas do funcionalismo do BB, principalmente, e da CEF parcialmente. Os enfrentamentos que houveram nos bancos privados se mantiveram num nível muito incipiente, praticamente molecular, restrito às CIPAS de alguns prédios, sem alcançar expressão nas formas de organização da categoria. Por isso, eles praticamente não são citados nessa história.
A publicação deste artigo foi dividida em 8 partes e um glossário, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
Parte 8
Glossário
Vem coisa boa por aí!!
Memória das Lutas: a greve de 21 dias do BB em 1989
Para a classe dominante é preciso que os trabalhadores não tenham História. Cada luta deve sempre ser um novo começo, separada de todas as lutas anteriores.
Assim a experiência coletiva se perde, as lições são esquecidas, os eventos não se constituem em processos.
A História se torna propriedade privada, cujos donos são também os donos de tudo o mais.
Resgatar a própria memória e conquistar autonomia sobre sua própria História é tarefa decisiva para o êxito dos oprimidos em sua luta por emancipação.
A linha de frente e os bastidores da greve dos funcionários do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro em 1989. Após 19 dias de paralisação, o TST decidiu que a greve foi legal e determinou o pagamento dos dias parados. Contudo, 2 dias depois um novo julgamento declarou a ilegalidade da continuidade do movimento.
Vídeo:
https://youtu.be/kQuam8SMWoo
Ato pelos 30 anos:
https://www.youtube.com/watch?v=0RF_NjDPO70
Parece que essa série vai ser interessante, e já esto aguardando ansiosamente.
Sobre essa introdução, eu gostaria de fazer apenas um comentário sobre a seguinte afirmação:
“[…] o PT optou pelo projeto de um capitalismo que seria “bom para todos”, no qual as melhorias para a maioria da população supostamente viriam sem que fosse necessário alterar as estruturas de poder seculares que controlam o país.”
Ora, se o PT optou pelo projeto burguês, pelas tais estruturas seculares, quer dizer que poderia optar por um projeto proletário de Estado? Essa dúvida ficou no ar. Eu só me pergunto até que ponto vai o alcance da liberdade de escolha da um governo que já optou por assumir a direção do Estado que é essencialmente burguês. Será que essa liberdade tem a mesma natureza daquela que tem o trabalhador de vender ou não sua força de trabalho?
Apenas para registro:
A foto encabeçando este artigo não é de São Paulo, e sim do Rio de Janeiro.
No piquete estão bancários do horário noturno da Câmara de Compensação de Cheques ou do Centro de Processamento do Banco do Brasil.
Parte importante da força do então movimento de bancários se deve a esta vanguarda. Devido às características do serviço por ela executado, dispunha de capacidade disruptiva em relação ao funcionamento do sistema financeiro em sua base.
Sem esta vanguarda radicalizada, os bancários não teriam o sucesso conquistado naquele período de 1979 a 1989.
O ciclo diário de greve começava de madrugada (após a assembléia de decretação) e acabava à noite.
Cabia à madrugada o ônus de concretamente dar início à greve, assumindo o risco de não ter qualquer garantia quanto à adesão ao movimento a partir da manhã.
Enquanto o horário noturno arcava com a responsabilidade de dar continuidade ao movimento, mesmo sem ter havido grande adesão durante o dia.
Noites de luta, dias de glória.