RICARDO LEONI 16/09/2004 / O GLOBO

Por Bancário Anônimo

3. A greve histórica de 2004: antecedentes, deflagração, dinâmica e encerramento

3.1. Situação da categoria antes de 2004

A categoria bancária é parte dos setores organizados da classe trabalhadora brasileira que protagonizaram as lutas da década de 1980, que serviram de esteio para a construção da CUT e do PT. Muitos trabalhadores que vivenciaram esse período, seja já como bancários, seja trabalhando em outras categorias naquele momento, estavam presentes no quadro de funcionários dos bancos públicos na histórica greve de 2004. Vale lembrar que no caso do Banco do Brasil, por exemplo, chegou-se a ficar um período de 7 anos, entre 1991 e 1998, sem a realização de concursos. Portanto, quando uma nova geração de funcionários começa a entrar nos bancos públicos a partir de 1998, esses novos bancários encontram ainda presentes uma imensa maioria de colegas que tinham vivido a década de 1980, e que carregavam consigo ainda tanto a memória daquelas lutas, como, igualmente, a ilusão de que uma chegada do PT ao governo federal traria as mudanças há tanto tempo aguardadas pelos trabalhadores.

Essa esperança, que de resto era compartilhada pela imensa maioria dos trabalhadores brasileiros, especialmente nas categoria urbanas e mais organizadas e no setor mais esclarecido e progressista das camadas médias (base eleitoral histórica do PT naquele período), era muito presente para quem tinha vivenciado os dois mandatos do PSDB no governo federal, entre 1995 e 2002, quando a reestruturação produtiva, a abertura comercial e as privatizações entraram de vez no país, depois dos ensaios no malfadado governo Collor. Dentro dos bancos públicos, essa política geral, chamada de “neoliberal”, se manifestou na forma de uma reorientação do papel do BB, CEF e bancos estaduais, visando privatizá-los ou transformá-los em bancos comerciais lucrativos e concorrentes dos bancos privados. Houve seguidas reestruturações, como o traumático PDV no BB em 1995, que chegou a produzir uma onda de suicídios. A privatização branca, disfarçada, veio na forma de metas de vendas de “produtos” bancários, assédio moral, sobrecarga de serviços, falta de funcionários, com os quais os bancários começaram a conviver em doses cada vez maiores desde então.

Essa reorientação no papel dos bancos públicos provocava dois tipos de reação. Da parte dos funcionários antigos, uma rejeição muda, sem canais para se expressar, já que não havia greves e lutas abertas nesse período. Essa parte do funcionalismo guardava consigo a memória dos bancos públicos quando eram instituições mais propriamente públicas, onde a função da empresa era diferente, o tipo de serviço, a remuneração, etc. Esses funcionários buscaram sobreviver à nova gestão de tipo mais privatista saindo da “linha de frente” do atendimento nas agências, migrando para os departamentos, áreas operacionais (também chamadas de “áreas meio”), caixas, etc.; ou simplesmente se aposentando. E enquanto isso, sonhavam com a reversão do quadro perverso de implantação do projeto neoliberal, quando o PT finalmente chegasse ao governo.

Da outra parte, os funcionários novos se depararam com uma imensa frustração ao constatar a dura realidade do trabalho nos bancos públicos. O “eldorado” da estabilidade, alta remuneração, prestígio social e carga de trabalho suave, que constituem o imaginário da população em geral que olha de fora para os bancos públicos, mostrou ser uma miragem, que se diluiu em poucos anos. Tudo isso construiu as condições subjetivas para a greve de 2004.

3.2. A eleição de Lula em 2002: a forma petista de gestão da miséria e contenção das lutas

Durante a década de 1990 o PT construiu as condições para a chegada ao governo, que se daria na eleição de 2002, buscando apresentar-se como uma força política disposta a colaborar com a burguesia na gestão do capitalismo brasileiro. Isso incluía o fim do sindicalismo combativo que tinha caracterizado a CUT desde sua fundação (a central sempre esteve sob controle da Articulação, núcleo duro da direção petista) e a implantação de uma estratégia de colaboração de classe, no chamado “sindicalismo cidadão”. Um marco dessa mudança estratégica da CUT foi a greve dos petroleiros em 1995, que foi isolada, abandonada e boicotada pela central sindical. Não houve nenhum trabalho para construir a solidariedade do restante dos trabalhadores para com os grevistas. Isso foi um dos elementos que levou à derrota daquela greve. A CUT passou a ser mais decididamente um fator de estabilidade e garantia da governabilidade, desarticulando as lutas e organizações nos locais de trabalho e nos sindicatos de base filiados, e participando de fóruns tripartites, câmaras setoriais, etc., como um ator relevante da superestrutura do Estado burguês.

Mais adiante, finalmente, com o esgotamento da gestão do PSDB, uma situação de crise econômica e forte rejeição popular ao neoliberalismo, o “aggiornamento” petista alcança seu resultado e o bastão do governo federal é passado ao PT, através da eleição de Lula em 2002. As gestões petistas em dezenas de prefeituras e governos estaduais, bem como o comportamento das suas bancadas legislativas, já tinha servido para mostrar o compromisso do partido com a ordem capitalista, de modo que não havia mais o que temer por parte da burguesia. A “Carta ao Povo Brasileiro” apresentada pelo PT na campanha eleitoral daquele ano, na verdade uma carta aos banqueiros, assegurava à burguesia brasileira e internacional que o PT seria “responsável” na gestão do Estado, ou seja, seguiria pagando a dívida externa, não reverteria as privatizações, continuaria impondo o arrocho sobre os trabalhadores, etc. Ao invés de conceder as reivindicações históricas dos trabalhadores, o PT passaria a realizar uma gestão mais inteligente da miséria do país, não alterando nenhum dos elementos estruturais dessa miséria, não atacando nenhum dos interesses da burguesia, mas fazendo mediações que pareciam cosmeticamente atender as necessidades da maioria da população.

Bancária usa máscara do presidente Lula durante passeata em Brasília.
Alan Marques – 29.set.04/Folha Imagem

Assim, ao invés de programas de habitação popular, foi criado o Minha Casa Minha Vida para dar dinheiro às construtoras. Ao invés de uma expansão das Universidades Públicas, lançou-se o Prouni/Fies para desviar dinheiro público para empresas de ensino privadas. Ao invés da Reforma Agrária (inviabilizada pela aliança com o agronegócio, que Lula chamou de “campeões” do país), Bolsa Família para os miseráveis do campo e da cidade. Ao invés da garantia de direitos humanos e sociais, de combate à violência policial, da remoção do chamado “entulho autoritário” da ditadura, de redução de danos para dependentes de drogas, etc., difundiu-se a “cidadania do crédito”, ou seja, o acesso ao consumo por meio do aumento da bancarização, da expansão do uso de cartões de crédito e da explosão do endividamento. Ao invés de políticas públicas, ações coletivas e solidariedade de classe, o consumismo, o empreendedorismo, a meritocracia, o individualismo, a concorrência e o salve-se quem puder.

Numa das sociedades mais desiguais e violentas do planeta, as gestões do PT não fizeram nada para mudar as regras do jogo e a predominância dos poderosos de sempre, apenas disseram aos setores menos favorecidos que eles agora podiam disputar o mesmo jogo, porque agora seriam “empoderados”. Ao mesmo tempo em que diversas formas de violência e opressão contra mulheres, negros e LGBTs continuaram correndo soltas ou até mesmo se agravando, o governo fazia propaganda dos ganhos simbólicos com as políticas de cotas e de representatividade, que serviram para cooptar os dirigentes de movimentos de mulheres, negros e LGBTs para cargos no governo, universidades, ONGs, etc., sem alterar as condições materiais estruturais que originam as formas específicas de opressão de imensos segmentos da população. O identitarismo cresceu nesse período, com a defesa do politicamente correto e a complacência dos setores empresariais interessados em nichos de mercado (“pink money”, afroempreendedorismo, etc.).

Dessa forma, o PT conseguia alavancar os negócios da burguesia, mas com o discurso de estar favorecendo os trabalhadores, ou os mais pobres, sob o disfarce de “programas sociais” e de progressismo no campo dos costumes. Além disso, contra os movimentos sociais mais combativos, o governo petista também adotou uma forma bastante astuta de conter as lutas. Ocupações de terra, por exemplo, eram feitas somente onde a desapropriação já tinha sido previamente acordada com o latifúndio. Campanhas salariais poderiam até resultar em greve, como veremos no caso dos bancários (além das muitas que ocorreram nesse período entre professores, trabalhadores dos Correios, petroleiros, etc.), mas desde que as greves não comprometessem realmente os lucros das empresas e os reajustes ficassem também dentro de limites previamente pactuados com a patronal.

Os militantes dos grupos que não se centralizavam pela política do PT (e seus satélites como PCdoB ou outras burocracias sindicais pelegas como Força Sindical, UGT, NCST, etc., entre outras surgidas nesse período e que oscilavam entre apoio e oposição ao governo) ou ativistas independentes que se atravessem a tentar fazer a luta de fato eram “tratorados” pelos dirigentes petistas nos sindicatos e movimentos. Quem defendesse greves nas assembleias contra a burocracia, ou ocupações, manifestações de rua, ação direta, etc., era hostilizado, perseguido, difamado pelos dirigentes petistas e seus satélites. Ou pior, eram entregues por esses burocratas para serem demitidos pela patronal ou perseguidos pela repressão, mortos por jagunços do agronegócio, etc.

Essa forma petista de gestão dos conflitos sociais trazia para a classe dominante o incômodo do aparelhamento do Estado por burocratas petistas e de legitimar em alguma medida o discurso das “melhorias sociais” como algo benigno, mas foi aceita pela burguesia como uma necessidade devido ao contexto de lutas no continente sulamericano. No início da década de 2000 houve mobilizações massivas contra as chamadas políticas neoliberais, as quais resultaram na queda de governos na Argentina, Bolívia e Equador. Posteriormente, esse estado de mobilização popular serviu de sustentação para impulsionar os mandatos chavistas na Venezuela, o de Evo Morales na Bolívia, e outros. Preventivamente, para evitar que essa onda chegasse ao Brasil, e ao mesmo tempo como forma de deter a radicalização no continente, a burguesia optou pelo modelo petista de gestão.

O resultado distorcido das lutas populares no continente durante esse período foi uma série de governos de “esquerda” que tomaram conta da região, e que deram continuidade às mesmas políticas neoliberais antes rejeitadas pela população, mas sustentaram esse marketing de “progressistas” graças à margem de manobra proporcionada pelo aumento conjuntural da arrecadação estatal. Esse crescimento da arrecadação foi devido a uma alta temporária dos preços internacionais das matérias primas que os países da região se especializaram em exportar (petróleo, gás natural, minérios, trigo, soja, com maior peso de um ou de outro produto conforme cada país). Quando essa alta dos preços foi revertida, a partir da última crise econômica mundial em 2008-2009, todos esses governos e suas politicas “sociais” começaram entrar a entrar em crise.

A crise desses governos “progressistas”, por sua vez, deu a base para uma ofensiva conservadora em todos esses países, a qual vem tratando de tentar derrotar não somente as forças políticas que sustentaram tais governos, mas também todos os setores minoritários que se mantiveram independentes e combativos e de resto todo o ideário mais amplo da esquerda. É este o momento em que estamos agora. Mas antes de chegar a isso, trataremos ainda do momento de chegada da crise mundial de 2008-2009 no Brasil na parte 5 adiante. Por enquanto, no que se refere ao ponto seguinte, o fato é que a burocracia sindical cumpriu a sua parte na trajetória do projeto petista, fazendo o papel de contenção das lutas. Para que o prosseguimento das políticas neoliberais e o favorecimento da burguesia prosseguisse, a expectativa nutrida entre as várias categorias mais organizadas de trabalhadores de que as suas reivindicações seriam atendidas com a eleição do PT tinha que ser revertida caso a caso, e a seguir veremos como isso se deu em bancários.

3.3. Antecedentes imediatos da greve de 2004

Na categoria bancária o marco da perda de combatividade do sindicalismo da CUT foi a derrota da luta contra a privatização do Banespa, quando uma greve fortíssima foi traída pela direção do sindicato com a assinatura de um acordo que entregava o banco estatal paulista ao Santander, em 2000. Além do próprio PDV no BB, em 1995. A estratégia geral de conciliação de classe, manifestada no abandono da combatividade e da organização nos locais de trabalho, resultou em uma década sem reajuste salarial nos bancos públicos, e reajustes que precariamente repunham a inflação nos bancos privados. A política de reajuste zero nos bancos públicos era viabilizada por abonos, o chamado “cala boca”, que vinha para ajudar a pagar as contas, mas não era incorporado no salário, não incidia nas verbas de INSS, FGTS, etc. Cumulativamente, o arrocho salarial nos bancos públicos nos anos 1990 resultou em perdas imensas, que jamais foram repostas (cerca de 100% na CEF e 90% no BB).

Outro elemento importante de insatisfação nos bancos públicos foi a mudança nas regras de contratação autorizada por uma portaria emitida em 1997 pelo DEST, órgão do Ministério do Planejamento responsável pelas estatais federais. A mudança trazida nessa portaria fez com que os bancários que ingressavam no BB e na CEF a partir dos concursos de 1998 (ano em que o autor deste texto entrou no BB) passassem a ganhar salários muito menores e ter muito menos direitos (folgas, licenças, anuênios, etc.) que os funcionários antigos. Criavam-se na prática duas categorias de bancários nos bancos públicos federais, os pré-1998 e os pós-1998, que faziam o mesmo serviço, mas recebiam salários diferentes. Isso repercutia por exemplo na sustentação dos fundos de pensão e caixas de assistência (planos de saúde) dos bancos públicos, já que as contribuições funcionais e patronais são proporcionais aos salários, que agora passavam a ser muito menores (além do fato de que esses novos funcionários não tinham mais direito ao plano de benefício definido, que garantia a complementação da aposentadoria, como os pré-1998 tinham). Sendo assim, a reposição das perdas acumuladas, a isonomia entre funcionários pré- e pós1998, a volta dos planos de cargos e salários, eram as principais reivindicações dos bancários, que se esperava que seriam imediatamente atendidas quando o PT chegasse ao governo.

Era esse o quadro da categoria quando Lula foi eleito em 2002. Para impedir que os bancários do BB e CEF exigissem diretamente do novo governo do PT o atendimento das suas reivindicações históricas, a burocracia sindical adotou uma manobra magistral, levando a negociação da campanha salarial para a Mesa Única da Fenaban. Foi feito um movimento combinado entre o governo do PT, os banqueiros e a Contraf-CUT, por meio do qual os bancos federais, BB e CEF (agora subordinados à gestão do governo Lula), passavam a fazer parte da “central patronal” dos banqueiros e acatavam as decisões do conjunto dos bancos privados, Bradesco, Itaú, Unibanco, etc. (lembrando que na época a concentração oligopólica ainda não tinha atingido o grau atual e havia muito mais bancos privados). O pretexto para essa nova formatação no discurso da burocracia sindical era de que o arrocho salarial da década de 1990 acontecia porque o BB e a CEF não faziam parte da Mesa Única, ao contrário dos bancos privados, cujos funcionários seguiam tendo reajustes (mesmo que precários) e conseguindo uma atenuação das perdas (entre os bancos privados as perdas acumuladas estavam em torno de 30%).

Com esse argumento, a burocracia conseguiu convencer os trabalhadores de que a ida do BB e da CEF para a Mesa Única era uma grande conquista da categoria, pois agora seria possível que os bancários dos bancos públicos passassem a ter reajustes. O raciocínio subjacente era de que a causa da falta de reajustes na década de 1990 era a negociação separada por banco, e não a ausência de lutas (que a burocracia se eximia de organizar!!!). Assim, a burocracia sindical petista conseguiria um duplo objetivo: impedir que os bancários entrassem em luta contra o governo federal do PT, de quem na verdade dependia o atendimento das suas reivindicações; e ao mesmo tempo manter uma imagem positiva do PT perante a categoria, com fins eleitorais, mediante os reajustes que agora voltariam a acontecer (mas numa escala irrisória em comparação com as perdas) enquanto o PT estivesse no governo.

Na primeira campanha salarial da categoria sob governo do PT, em 2003, a burocracia sindical cutista ainda tinha prestígio suficiente para convencer os bancários de que o governo precisava de tempo para “pôr a casa em ordem” depois das gestões do PSDB, e de que não seria possível atender imediatamente as reivindicações históricas. Essa pauta histórica teria que ser adiada para algum outro momento, disse a Articulação, e os bancários de certa forma aceitaram isso. Mesmo assim, ainda em 2003, houve uma rápida greve de 3 dias nos bancos públicos, com adesão de quase 100% dos locais (ainda que em muitos desses locais os próprios gestores fechassem as agências, com os bancários trabalhando no seu interior), para fechar um acordo que trazia a reposição da inflação (12,60% segundo o IPCA daquele ano).

A reposição da inflação oficial (nunca questionada, mesmo considerando-se que os índices oficiais mascaram os itens que mais pesam no bolso do trabalhador) e uma porcentagem ínfima de “aumento real” em torno de 1% passaram a constituir um modelo de acordo que se tornaria padrão a partir da gestão petista. O acordo entre o PT e os bancos era exatamente esse, como de resto entre o governo e o restante dos setores patronais, portanto nenhuma campanha salarial poderia ir muito além desse formato. Um último detalhe referente a 2003 foi a inclusão de uma nova cláusula no acordo específico dos bancos federais, o chamado termo aditivo à convenção coletiva, no qual foi acrescentado o reconhecimento da figura de delegados sindicais, representantes dos locais de trabalho com estabilidade e inamovibilidade. Ao longo de 2004 foram feitas as eleições nos locais de trabalho e centenas de ativistas potenciais foram chamados a fazer parte do movimento, inclusive este autor.

3.4. Deflagração e dinâmica da greve

A “herança maldita” do PSDB, porém, não se limitava ao arrocho salarial, mas consistia também, ou principalmente, na continuidade do projeto de privatização disfarçada dos bancos públicos, a sua transformação em instituições comerciais voltadas para o lucro com os mesmos métodos dos bancos privados (venda casada, cobrança de metas, etc.). A sobrecarga de serviço, o assédio moral, o adoecimento, continuaram avançando nos bancos públicos sob o governo “democrático popular” do PT. Quando a campanha salarial de 2004 chegou, o descontentamento era gigantesco em ambos os segmentos do funcionalismo, antigos e novos. A paciência já tinha se esgotado e os bancários queriam o atendimento imediato das reivindicações históricas.

Como no ano anterior, a burocracia conduziu a campanha para a Mesa Única da Fenaban, e acertou com a central patronal um índice de reajuste bastante rebaixado, de apenas 5%, abaixo do INPC acumulado daquele ano (6,64%), sem mais nenhuma concessão minimamente relevante nas demais reivindicações históricas. A intenção da burocracia era defender a aceitação dessa proposta nas assembleias e impedir que houvesse greve. Mas isso se revelou um monumental erro de avaliação, pois o clima entre os trabalhadores era totalmente o oposto. A data base já havia passado, desde o dia 1º de setembro, e as assembleias para deliberar sobre o acordo só aconteceram na metade do mês. Na assembleia de São Paulo mais de três mil bancários se acotovelavam na Quadra do Bancários, na região da Sé. A diretoria do sindicato tentou defender esse acordo rebaixado, que ainda por cima deixava de lado todas as demais reivindicações históricas, mas acabou sendo atropelada por uma massa enfurecida, que impôs a deflagração da greve sem sequer deixar que os dirigentes terminassem suas falas, tamanhas eram as vaias e as manifestações de repúdio.

A greve foi deflagrada a princípio em São Paulo e alguns outros centros, a partir do dia 15 de setembro, e depois explodiu em todo o país, com cenas semelhantes nas várias assembleias das demais bases e uma adesão gigantesca nos bancos públicos. Mas havia uma armadilha escondida, que depois se revelaria crucial. A confiança da burocracia sindical na aceitação da proposta e na não deflagração de greve era tão grande que o edital de convocação da assembleia não previa paralisação, conforme exige a lei de greve, apenas deliberação sobre aceitação ou rejeição da proposta patronal. Por outro lado, entre os trabalhadores, a rejeição à proposta era muito grande, bem como a impaciência da categoria com duas semanas já decorridas da data base sem que houvesse perspectiva de acordo. E acima de tudo, o clima da assembleia, com a rejeição feroz ao que era visto como uma traição da diretoria e o apoio massivo aos que defenderam greve, fez com que explodisse uma espécie de greve selvagem, com milhares de bancários enfurecidos na quadra e a diretoria do sindicato saindo escondida. Naquele momento ninguém pensou numa tecnicalidade jurídica como o edital de convocação.

Assembleia dos bancários decide pela continuidade da greve

Desde os primeiros dias a adesão era gigantesca, e também o grau de participação, não só nas assembleias, que eram praticamente diárias, como nos piquetes e arrastões. Os bancários do BB, CEF, Nossa Caixa (e outros bancos públicos nos estados) em cada bairro saíam das suas agências para fechar os bancos privados, fazendo “arrastão” nas avenidas e corredores dos bairros. Os arrastões eram movimentos em que os trabalhadores se auto-organizavam, marcavam pontos de encontro para fazer piquetes, fechavam os bancos privados, tiravam os bancários de dentro das agências (deixando apenas um ou outro gerente), deixavam alguns piqueteiros “de guarda” para manter a agência fechada e iam para a agência seguinte. Em alguns casos as agências já estavam abertas, e então o público era atendido, mas ninguém mais entrava, até que a agência estivesse vazia e os bancários pudessem sair. Nesse intervalo, os piqueteiros ficavam do lado de fora, barrando a entrada de clientes e autorizando a saída de quem estava dentro. E mantinham guarda também da agência fechada, para impedir que algum gerente remanescente quisesse reabrir a agência.

Os conflitos mais agudos se davam contra o público em geral, que brigava para entrar nas agências, já que naquela época o uso de serviços bancários por internet praticamente nem existia e nem se sonhava ainda com aplicativos para celular. Os clientes tentavam forçar entrada nas agências, discutiam, e às vezes até chamavam a polícia, tentavam agredir os piqueteiros, etc. Os bancos, por sua vez, pediam “interditos proibitórios”, um instrumento jurídico muito usado por proprietários de terras ocupadas, para retirar os piqueteiros da frente das agências. Nesses casos os piqueteiros tinham que “enrolar” o oficial de justiça e a polícia por algumas horas até que se tornasse inviável abrir a agência no final do dia. Os trabalhadores dos bancos privados anotavam os contatos dos piqueteiros e telefonavam para que fossem nas suas agências no dia seguinte. Se todas as agências numa determinada região fechassem, eles não teriam como ser mandados para trabalhar num outro local, e podiam ir pra casa. No final do dia, havia uma nova divisão de tarefas e alguns iam para a assembleia (as assembleias eram diárias e massivas).

Comandos de greve locais e ativistas se formaram de improviso no próprio processo da luta, bem como redes de solidariedade e amizades que se fortaleceram. Para que se tenha uma ideia da importância dessa greve, uma das consequências dela foi que o PT, recém-saído da eleição vitoriosa de Lula em 2002, perdeu a eleição municipal em São Paulo em 2004, em que Marta Suplicy concorria a um segundo mandato, tamanho foi o descontentamento da população em geral com o fechamento praticamente total dos bancos, e por um período tão longo (a greve durou 30 dias, que se distribuíram justamente entre os meses de setembro e outubro, quando ocorreram as eleições).

3.5. Encerramento e conseqüências da greve de 2004

Entretanto, a Fenaban não aceitou rever o que tinha sido combinado com a burocracia, ou seja, ter que pagar um reajuste maior ou fazer mais concessões do que já tinha sido acordado com os sindicalistas. E a burocracia, por sua vez, não aceitou que os trabalhadores tivessem se rebelado e expresso sua vontade própria na assembleia. Tornou-se questão de honra para a Articulação garantir que essa greve fosse derrotada exemplarmente, para que os bancários nunca mais quisessem ter a ousadia de se mobilizar por si mesmos. Era muito fácil para a burocracia fazer isso, no papel de representante oficial dos bancários na mesa de negociação: bastava cruzar os braços e não dizer nada aos banqueiros em relação àquilo que os bancários realmente queriam. O Comando Nacional que “representava” os bancários na negociação era composto por dirigentes sindicais eleitos numa Conferência realizada meses antes, sem mobilização e participação de trabalhadores de verdade, ou seja, somente por burocratas petistas.

Nas assembleias, os burocratas diziam que a Fenaban estava intransigente na negociação e não queria melhorar a proposta de acordo, mas na realidade não havia negociações acontecendo, ou quando se noticiavam negociações, era pura encenação, os burocratas jamais entregavam as reivindicações reais dos bancários. E nenhum bancário de carne e osso tinha acesso a essas negociações. Com isso, a greve se arrastou por 30 dias. Mesmo com toda essa participação dos trabalhadores em piquetes, arrastões e assembleias, a mobilização não conseguiu romper o controle burocrático da negociação e falar diretamente com a Fenaban. Uma representante de base chegou a ser eleita na assembleia do Rio de Janeiro (e em outros locais também houve a tentativa de fazer o mesmo), mas sua entrada no prédio em que acontecia a negociação foi barrada.

Não era apenas a burocracia petista que tentava impedir manifestações independentes dos trabalhadores e formas de ação mais radicalizadas, mas também a própria oposição já existente. Antes do Facebook e Whatsapp os ativistas se organizavam por listas de e-mails. Nessas listas circulavam propostas e as pessoas eram convidadas a se organizar por fora das assembleias para discutir o andamento da luta. A direção sindical impedia e dispersava as tentativas de reunião de comandos de greve nos espaços da Quadra dos Bancários, portanto um comando informal (mas o único comando efetivo, que buscava contatos com os “arrastões” que aconteciam espontaneamente nos bairros da cidade) se reunia numa sede do PSTU, na Rua Florêncio de Abreu, no Centro. Num desses comandos surgiu a proposta de ocupar o próprio prédio da sede do sindicato, que fica no edifício Martinelli, na Rua São Bento, também no Centro, para exigir que os bancários pudessem representar a si mesmos. Mas essa proposta não foi aprovada no comando devido ao argumento do PSTU de que “não havia correlação de forças” para uma ocupação (lembrando que na assembleia de deflagração da greve mais de 3.000 bancários gritavam tanto que impediam a diretoria de falar, viravam as costas ao palco, incendiavam camisetas do sindicato, etc.).

A ocupação não aconteceu, a greve continuou com sua rotina, a burocracia continuou com seu teatro, a Fenaban não se manifestou, e a luta caminhava para o esvaziamento e a derrota. Para escapar desse beco sem saída, a oposição procurou a Contec (ver parte 2) e propôs que ajuizasse o dissídio no TST, uma espécie de manobra “tudo ou nada”. Com o ajuizamento pedido pela “representação dos trabalhadores”, a expectativa da Fenaban (e a torcida da Articulação) era que o TST julgasse a greve ilegal (por conta do edital de convocação da 1ª assembleia) e impusesse o reajuste rebaixado, bem como o desconto dos dias parados, o que seria uma derrota categórica (praticamente um mês sem salário) para os grevistas.

Mas ao enunciar a decisão, o TST cunhou a categoria jurídica “sui generis” de greve “meio legal e meio ilegal”, e decretou reajuste de 8% a 12% no piso da categoria, ou seja, a imensa maioria dos grevistas, mais a compensação das horas de greve, ao invés do desconto, e mais alguns penduricalhos na pauta econômica. No contexto daquela campanha, isso foi considerado uma pequena vitória, ainda que insuficiente, dado o tamanho da luta. De modo geral, no momento imediato após a greve, os bancários se sentiram fortalecidos, enquanto que o repúdio à direção sindical petista por sua evidente colaboração com os bancos foi praticamente unânime.

A publicação deste artigo foi dividida em 8 partes e um glossário, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
Parte 8
Glossário

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