Por Rodrigo Oliveira Fonseca

Os fantasmas do comunismo dos tempos atuais não geram medo em ninguém. A distribuição em creches de mamadeira com bico em formato de pênis, a implantação de banheiros unissex [casas de banho neutras] em escolas e universidades, a obrigação do uso de linguagem neutra, a difusão da cristofobia, o roubo de cachorros para incrementar o churrasco de gato… são coisas que geram repulsa e indignação nas camadas menos escolarizadas, além de variações entre raiva e galhofa nas outras. Por exemplo, foram produzidos vários vídeos que musicalizaram a última pérola do Trump, a sua denúncia de que em Springfield desapareceram cachorros e gatos porque os imigrantes estariam comendo-os. Me chamou a atenção, em particular, a postagem de um remix desses por uma conta trumpista do YouTube. Neste vídeo, Trump aparece não como um otário ou pateta de quem se ri, mas sim como um cara zoeiro [troçador] que quebra o tédio do debate político, um sujeito que é autêntico e tem cara dura [descarado] o suficiente para dizer coisas assim e não corar ou gaguejar. Esses fantasmas também divertem aqueles a quem poderíamos supor estarem assustados.

E a mentira? Uma pista: Jean Pierre-Faye, na sua Introdução às linguagens totalitárias, explica que no ambiente intelectual nazista a distinção entre o verdadeiro e o não-verdadeiro era visto como um formalismo pernicioso, e o que realmente importava era a defesa dos mitos e da cultura de um povo em situação de “violação”. Cachorros e gatos não estão sendo comidos por imigrantes nos EUA? Mas o risco seria “real”, e quem alerta amigo é.

Não que a verdade seja um valor e um discurso desimportantes para toda a direita. Verdade, honestidade, honradez ainda são moedas ideológicas correntes, mas no consórcio entre tradicionalistas religiosos e iconoclastas reacionários, entre conservadores de um lado e radicais de direita de outro, os conservadores às vezes parecem como a parte “manipulada”, “abusada”, beatas católicas nas mãos de nazistas pagãos. Têm a ver com isso os ataques recentes do Malalfafa ao Lamarçal, as críticas do principal líder bolsonarista junto aos evangélicos, o pastor Silas Malafaia, às picaretagens de Pablo Marçal, candidato à prefeitura de São Paulo e empresário coach. Claro, pessoas que honesta e genuinamente creem (creem em____, a preencher como se quiser), muitas vezes são feitas de gato e sapato, ou de churrasco e capacho, à esquerda e à direita, nas mãos de quem tem expectativas mais “pragmáticas”, prosaicas e mundanas, seja a direção do partido, se reproduzindo ad infinitum para manter pequenos poderes, seja o charlatão que vende remédio para combater vermes que causam a diabetes, seja o político profissional e fisiológico que se elege como antissistema. A frase do todo dia sai na rua um otário e um malandro é uma caricatura disso. Juventudes periféricas radicalizadas, descrentes de tudo, reativas e violentas, “malandras”, também são manipuladas e manipuláveis nas mãos de conservadores “otários” desde os seus gabinetes.

O que não é bem uma caricatura disso são algumas letras da banda Engenheiros do Hawaii. Esses dias vi parte de um podcast que reuniu os músicos Carlos Maltz e Augusto Licks. Me levou a querer ouvir, pela primeira vez na vida, um disco inteiro deles, no caso, o primeiro, Longe demais das capitais, de 1986. Estarrecedor. Na adolescência eu gostava muito de Somos quem podemos ser e Toda forma de poder, músicas cujas letras críticas me soavam mais anarquistas. Mas copio aqui abaixo duas letras de músicas que eu nunca tinha ouvido, músicas que hoje soam meio que como versão séria e careta do remix They’re eating the dogs, uma delas sobre um amor nazi-fascista-medieval-pós-moderno, uma “sopa de letrinhas” cuja fauna ideológica é curiosa, e outra sobre a superioridade de quem não tem fé nenhuma, da qual vou comentar mais adiante uma das estrofes.

SOPA DE LETRINHAS

O nosso amor é nazi-fascista Você se esconde e eu sigo tua pista Eu fico sozinho mas eu fico em paz Eu volto pra casa você volta atrás

O nosso amor é medieval É como uma pedra em piso De catedral […]

O nosso amor é pós-moderno Eu quero que você se aqueça nesse Inverno Eu tenho andado aéreo como tropas minhas No ataque Fim de noite fim do mundo lá no fundo Do conhaque Eu fico sozinho Teu beijo me arranha Um estranho no ninho Ninguém estranha

O nosso amor é nazi-fascista Eu tento fugir você me conquista Eu fico sozinho mas eu fico em paz Eu volto pra casa e você volta atrás Eu fico sozinho Teu beijo me arranha Um estranho no ninho

FÉ NENHUMA

Não levo fé nenhuma em nada! Não levo fé nenhuma em nada!

Mas ninguém tem o direito De me achar reacionário Não acredito no teu jeito Revolucionário

Eu sei que você acredita Nas notícias do jornal Mas tudo isso me irrita Me enoja e me faz mal

Por incrível que pareça Teu discurso é tão seguro Talvez você esqueça: Você também não tem futuro

Não levo fé nenhuma em nada! Não levo fé nenhuma em nada!

Você quer me pôr no agito No movimento estudantil Mas eu não acredito No futuro do Brasil

Eu não vou morrer de fome Eu não vou morrer de tédio Eu não vou morrer pensando Qual seria o remédio

Sei de cor seus comentários Sobre o mal da alienação Mas eu não vivo de salário Eu não vivo de ilusão

Não levo fé nenhuma em nada!

Volto às provocações do vídeo do Trump zoeiro dançando um fake news pra cá, fake news pra lá. Querer desmontar o Trump (e o Bolsonaro, e o Marçal, e o Orbán, e o Putin, e o Chega, e o….) só pelo lado conservador, pelo lado que mobiliza os setores que alimentam e se consomem por ídolos e instituições, pode ser como enxugar gelo. No campo dos ídolos e das instituições é capaz que, até aqui, as grandes transformações tenham sempre operado substituições. Como escreveu o jovem Marx, Martinho Lutero abalou a fé na autoridade (“o Papa é pop”!) porque restaurou a autoridade da fé, e assim uma devoção autêntica não cai com a queda de um príncipe, político, dirigente, guia genial ou pastor: “Deus detesta os ídolos” (SalmosCoríntiosLevíticoÊxodo etc.); “O indivíduo tem dois olhos / O Partido tem mil olhos / O Partido vê sete Estados / O indivíduo vê uma cidade / O indivíduo tem sua hora / Mas o Partido tem muitas horas. / O indivíduo pode ser liquidado / Mas o Partido não pode ser liquidado…” (Brecht, no seu Elogio ao Partido).

Para (não) variar, o cerne do problema é material, é esse mundo vale de lágrimas: “O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe a crítica do vale de lágrimas de que a religião é a auréola.” (Marx, na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel).

O final de Fé nenhuma é como a cereja no bolo ideológico que reúne conservadores indignados e revoltados sem fé? Quem não vive de salário tem maiores predisposições para não crer em nada? São pessoas que vivem em uma parte VIP do vale de lágrimas, de onde assistem a tudo de camarote refrigerado com all-inclusive? Não perigam morrer de fome, nem de tédio.

A crítica ao conservadorismo e à religiosidade é germinal de toda e qualquer crítica, mas ainda não é a crítica radical e muito menos a ação radical que pode fazer recuar e sumir essa gente toda que tomou o lugar do radicalismo revolucionário antes ocupado à esquerda do espectro político.

Acusá-los de mentirosos e criminosos é mais que inócuo, pois uma parte de suas bases está tomada pela fé e mitologia em torno desses personagens, enquanto uma outra parte quer mais é gozar com a cara e o desespero dos adversários, para desestabilizá-los e tirá-los de cena, entendendo que, no fundo, ninguém vale nada, e mentira por mentira, é sempre melhor optar por aquela que atinge os inimigos. Como o filósofo fascista Julius Evola admitiu no pós-guerra, ainda que o texto dos Protocolos dos Sábios do Sion fosse mentiroso, “aquele escrito faz parte de um grupo de textos que de maneiras diversas (mais ou menos fantásticas e por vezes até fictícias) expressaram o sentimento de que a desordem dos tempos recentes não é acidental” (apud João Bernardo, Labirintos do Fascismo, p. 341 na edição de 2018).

São muitas as “desordens” não acidentais que afetam a vida das maiorias trabalhadoras. A produtividade do trabalho cresce de modo exponencial, o número de trabalhadores aumenta em todos os cantos, e o tempo efetivamente utilizado ou disponível para o trabalho também aumenta.

O salário é uma ilusão? Claro, a ilusão de ser pago pelo tempo disponibilizado e pelo empenho despendido.

Uma aposta quanto ao que não seria inócuo nessa quadra da história, na perspectiva dos que vivemos de salário, seria sermos mais “proativos” nessa evocação de fantasmas. De outros fantasmas, claro. Por exemplo, os países de capitalismo avançado têm necessidades crescentes de trabalhadores imigrantes, mas o fantasma reacionário da “grande substituição” não deverá mais meter tanto medo quando, de modo generalizado, pudermos avançar em uma cultura e em uma política de solidariedade nos locais de trabalho e nos ramos de atividade. Não deixar que as divisões entre cargos, funções, setores e regimes de contratação, como as divisões entre nacionalidades, sejam também divisões políticas, talvez seja o pior dos pesadelos para os capitalistas.

As obras que ilustram o artigo são ilustrações de Gustave Doré (1832 – 1883) para o poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe.

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