Por Leo Vinicius Liberato

Durante o governo Bolsonaro-Guedes a Fundacentro – fundação federal de pesquisa em segurança e saúde no trabalho ligada ao Ministério do Trabalho – passou por um dos mais profundos processos de assédio institucional de natureza organizacional do período. Também durante o período Bolsonaro-Guedes, mais precisamente em 2022, expus publicamente esse assédio institucional e organizacional, sem pretender exaurir os fatos e processos ocorridos [1].

Devido a denúncia sindical e de servidores, o Ministério Público do Trabalho instaurou uma Ação Civil Pública, sob tema Violência no trabalho, cujos réus são a Fundacentro, o ex-presidente Felipe Mêmolo Portela e o ex-chefe do RH Diego Fernando Ferreira de Oliveira.

Em março de 2024 a Fundacentro, através de seu então presidente, Pedro Tourinho de Siqueira [2], do PT, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta oferecido pelo MPT. O TAC foi homologado judicialmente em 2 de abril de 2024, data a partir da qual a Fundacentro teria 180 dias para implementar as obrigações constantes no TAC [3].

No TAC constam 5 (cinco) obrigações que a Fundacentro deveria cumprir. Focarei no primeiro item do TAC. Procurarei mostrar que, infelizmente, a gestão do PT (que vai do Presidente da República, passando pelo Ministro do Trabalho até os presidentes da Fundacentro em 2023 e 2024, nomeados pelo Ministro), não só, em grande parte, não se dispôs de livre iniciativa a desfazer a organização de trabalho assediadora estabelecida pela gestão Bolsonaro-Guedes, como sequer cumpriu o que estava acordado no TAC assinado com o MPT.

O primeiro item de obrigação a cumprir pela Fundacentro no TAC é:

3.1. A Fundacentro compromete-se a adotar fluxos de trabalho que garantam o cumprimento da missão institucional da Fundação e impeça a interferência na atividade técnica dos servidores, buscando resguardar a autonomia didático-científica e poder de agir da área técnica em consonância com a missão institucional, nos termos do artigo 207, §2º da Constituição Federal;

Buscando outras palavras, esse item pode ser interpretado como a necessidade de adotar uma organização do trabalho (os “fluxos de trabalho”) condizente com a atividade-fim (missão) da Fundacentro: a pesquisa e difusão de conhecimento em Segurança e Saúde no Trabalho. Essa organização do trabalho também deve ser compatível com a autonomia didático-científica e o poder de agir da área técnica (a área-fim da Fundacentro).

De fato algumas ações nesse sentido foram tomadas pela gestão do PT em 2023 e 2024, enquanto por outro lado houve uma normalização de vários elementos da organização do trabalho assediadora estabelecidos no governo passado, e até mesmo ações e práticas que não haviam ocorrido no governo passado e que se acrescentaram ao quadro de assédio organizacional vivido na Fundacentro.

Comecemos pelas ações que vão ao encontro do item 3.1 do TAC, reproduzido acima:

  • Em 2023 a gestão da Fundacentro revogou a Portaria ilegal que impôs em 2022 controle de frequência por ponto eletrônico a Tecnologistas e Pesquisadores sem justificativa, substituindo-a por uma Portaria que adequou a norma interna ao que estipula o Decreto Presidencial nº 1590/95, o qual dispensa esses cargos de controle de frequência. Trata-se de um aspecto da organização do trabalho essencial para a atividade de pesquisa em geral;
  • Durante a atual gestão do PT na Fundacentro também deixaram de ser cobrados preenchimento de planilhas mensais sobre andamento de pesquisas, estranhas à natureza desse tipo de atividade, além de procedimentos burocráticos que impunham um controle que dificultava o trabalho. Porém o fato de isso ter sido feito sem revogação de Portarias e sem explicitar novos fluxos de trabalho deixa os servidores em insegurança jurídica;
  • Em 2024 a gestão da Fundacentro reativou o Sistema de Gestão de Projetos e Atividades (SGPA), que havia sido substituído pelo uso do SEI no governo passado. O fato é que o SGPA é mais adequado à gestão de projetos de pesquisa, já o SEI foi projetado para processos administrativos/jurídicos. O retorno do SGPA é muito mais adequado ao fluxo de trabalho da atividade-fim da Fundacentro.

Vejamos agora ações de normalização passiva e ativa, na atual gestão do PT, de aspectos da organização do trabalho que configuraram o assédio organizacional estabelecido durante o governo passado. Algumas dizem respeito diretamente ao item 3.1 do TAC, outras dizem respeito mais abrangentemente a expressões do assédio organizacional para além do fluxo de trabalho da atividade-fim da Fundacentro:

  • Durante a atual gestão do PT foi mantida a separação estabelecida no governo passado da Diretoria Técnica em Diretoria de Pesquisa Aplicada (DPA) e Diretoria de Conhecimento e Tecnologia (DCT). Tal separação se deu aparentemente para acomodar pessoas em cargos comissionados. Ela atrapalha o fluxo de trabalho separando a pesquisa da difusão de conhecimento, afetando a racionalidade de regras e de fluxos;
  • Todos os servidores das Unidades Descentralizadas, isto é, cerca de metade dos servidores da Fundacentro, tem sido mantidos subordinados ao RH. O chefe desses servidores, inclusive dos servidores da atividade fim, é o chefe do RH. Setor esse que foi inflado em seus poderes e atribuições no governo passado, tendo o RH se tornado de fato a diretoria de maior poder na Fundacentro, sob nome de Coordenação-Geral de Gestão Corporativa (CGGC). E se essa subordinação à chefia do RH (CGGC) já demonstra o nível de disfuncionalidade e assédio organizacional na Fundacentro – mantida na gestão atual do PT – , acrescente-se o fato das Unidades Descentralizadas serem mantidas formalmente como Setor de Apoio à Gestão [4]. Epíteto que se mantém inclusive no website da Fundacentro [5]. Fato esse que se choca com a obrigação exposta no item 3.1 do TAC. Até mesmo servidores da área de pesquisa estão enquadrados como Setor de Apoio à Gestão.
  • Em meio a essa disfuncionalidade de uma organização do trabalho que é expressão e instrumento do assédio estabelecido, os servidores da área fim das Unidades Descentralizadas não sabem quem são seus avaliadores, para fins das avaliações funcionais (necessárias para progressão funcional, por exemplo). Questionado formalmente em agosto de 2023, o então presidente Pedro Tourinho de Siqueira não respondeu quem seria o avaliador desses servidores. A inexistência de chefia imediata nas UDs, mantida na atual gestão do PT, vai contra princípios básicos da administração, impedindo que ingressem novos servidores por concurso nas UDs, uma vez que ao menos no primeiro ano do estágio probatório o servidor deve ser acompanhado presencialmente pela chefia [6].
  • A própria manutenção da CGGC expressa uma normalização e continuidade da situação de assédio organizacional. O fato de ter o papel de RH, com acesso a dados particulares de todos os servidores, e ter ao mesmo tempo um status de diretoria extremamente próxima à presidência, deveria ser motivo suficiente para desfazer prontamente tal excrescência organizacional. Em fevereiro de 2023, período em que a Fundacentro estava sem presidente, dezenas de servidores subscreveram uma carta ao Ministro do Trabalho, Luiz Marinho. Nela, em meio a outro tema, escreveram: “a CGGC foi criada no governo anterior e vem tendo um papel avassalador na gestão de nossa instituição, impondo práticas de assédio institucional”, e solicitaram que “a CGGC seja extinta em um contexto de alteração regimental e reestruturação da instituição” [7];
  • Tem sido mantida na Portaria que regula o teletrabalho na Fundacentro a possibilidade de desconto em folha do servidor, caso a chefia avalie com nota inferior a 5 o trabalho entregue pelo servidor. Não existe previsão legal, em lei ou instrução normativa federal, que permita desconto em folha nesses casos. Trata-se de uma ilegalidade flagrante, um abuso estabelecido em 2022 na Fundacentro. Não se tem conhecimento de outro órgão federal que tenha Portaria que regulamenta o teletrabalho com possibilidade de desconto em folha por nota dada pela chefia. Uma ilegalidade que tem potenciais implicações à saúde dos servidores. Colegas relatam estresse devido a essa possibilidade de desconto. Cabe ressaltar que o teletrabalho na Fundacentro, por um lado, é a forma que muitos servidores encontraram de terem condições de trabalho, uma vez que os locais de trabalho na Fundacentro não apresentam condições adequadas de trabalho desde o governo passado. Como vemos, há uma normalização de uma regra interna ilegal e abusiva que gera estresse. Bastaria retirar uma linha da referida Portaria, torná-la legal, o que mostra uma indiferença da atual gestão da Fundacentro em relação ao bem-estar dos trabalhadores;
  • Se os exemplos acima foram de manutenção e normalização passiva de elementos e expressões do assédio organizacional, este a seguir é de manutenção e normalização ativa. Em 2022, os então gestores da CGGC tentaram impor a obrigação de um relatório de atividades mensal para homologarem a frequência de quem estava sob controle de frequência eletrônico [8]. Um gravíssimo abuso, uma vez que condicionava o reconhecimento da assiduidade através também de um instrumento de verificação de produtividade. Diante do questionamento de tão flagrante ilegalidade, recuaram e formalizaram através de uma Portaria[9] a exigência de um relatório de atividade mensal para quem estava em sistema de controle de frequência. Embora não condicionando o reconhecimento da assiduidade à entrega desse relatório, tratava-se de medida abusiva uma vez que esse relatório não tinha função de avaliação funcional ou institucional: tratava-se de puro instrumento de constrangimento e exercício de poder. O presidente Pedro Tourinho de Siqueira revogou essa Portaria em 2023 para substituí-la por uma que mantém esse relatório, porém deixando em aberto sua periodicidade [10]; um relatório que é um subproduto da ação provavelmente mais escandalosamente abusiva do governo anterior na Fundacentro. Pedro Tourinho de Siqueira colocou sua assinatura num instrumento e expressão do assédio organizacional que foi estabelecido na Fundacentro, o normalizando ativamente. Essa Portaria continua em vigor em 2024, sob a presidência de José Cloves da Silva, que também não a revogou..

Na sequência seguem algumas práticas estabelecidas pela atual gestão do PT que se chocam com o item 3.1 do TAC e acrescentam elementos ao contexto de assédio organizacional estabelecido na Fundacentro pelo governo anterior:

  • A violação do Princípio da Impessoalidade na Administração Pública, aprofundada na atual gestão do PT na Fundacentro, tem tido como um dos resultados práticos a interferência na atividade técnica dos servidores e um obstáculo ao cumprimento da missão institucional da Fundacentro, se chocando frontalmente com a obrigação do item 3.1 do TAC. Enquanto projetos e relatórios de agentes do grupo político da presidência, formado principalmente por agentes vindos de fora dos quadros da Fundacentro, são postos em execução e publicados sem passar por qualquer fluxo de aprovação, os projetos de relatórios dos servidores de carreira da Fundacentro são deixados num limbo, sem sequer informarem qual seria o fluxo para andamento deles. Tais práticas patrimonialistas evidentemente afrontam o poder de agir da área técnica, interferindo nas suas atividades. A gravidade dessas práticas merece um artigo aprofundado e documentado, mas, por ora registro, que tais práticas já foram alvo de uma denúncia inicial ao Ministério Público Federal, fundamentadas em documentação [11];
  • Por fim, cabe mencionar que em mais uma expressão do assédio moral organizacional pelo qual atravessa a Fundacentro desde 2019, no final de 2023 a gestão de Pedro Tourinho de Siqueira passou a desrespeitar as atribuições regimentais da Comissão Interna da Fundacentro (CIF), esvaziando e suprimindo na prática as funções de um dos poucos órgãos internos com alguma democracia institucionalizada, tendo em vista que ela é composta parcialmente por membros eleitos entre os servidores. O caso já foi detalhado em um artigo anterior [12] e também em denúncia ao MPF e ao MPT [13].

Concentrei-me apenas no primeiro item do TAC, porém os outros itens também não foram cumpridos. O quinto item se refere a garantir a autonomia dos membros e a composição paritária da CISSP (Comissão Interna de Saúde do Servidor Público), que seria uma espécie de CIPA do serviço público federal. O fato de neste ano não ter havido candidatos à eleição da CISSP e o futuro da Comissão ser mais do que incerto, é também um reflexo do tratamento que a própria CISSP tem tido na atual gestão da Fundacentro. Reflete o descaso total da atual gestão do PT com a saúde dos trabalhadores e as condições de trabalho, por trás das cortinas do teatro em que encenam ao público, buscando iludir os desavisados.

Leo Vinicius Liberato é tecnologista da Fundacentro, com doutorado em Sociologia Política pela UFSC e pós-doutorado no Departamento de Filosofia da USP.

Notas

[1] Ver: LIBERATO, L. V. M. Nota Técnica 26 – Assédio Institucional na Fundacentro. Afipea. 2022. Disponível em: https://afipeasindical.org.br/noticias/nota-tecnica-26-assedio-institucional-na-fundacentro/; e VINICIUS, L. Assédio Organizacional no Serviço Público: O caso da Fundacentro. Passa Palavra, 13 jan. 2023. Disponível em: https://passapalavra.info/2023/01/147107/.

[2] Pedro Tourinho de Siqueira ficou apenas um ano como presidente da Fundacentro. Entrou já sabendo que sairia um ano depois para ser candidato à Prefeitura de Campinas. No seu lugar tomou posse, em junho de 2024, José Cloves da Silva.

[3] O Termo de Ajustamento de Conduta pode ser visto aqui: https://drive.google.com/file/d/1BWqwYmIHlmezvwnUtkf2XPLH3CZFmRCm/view?usp=sharing

[4] Em 2022, reproduzindo simbolicamente o processo violento de realocação física das Unidades Descentralizadas (UDs), todos os servidores das UDs da Fundacentro foram postos no organograma da instituição como Setor de Apoio à Gestão. Novamente a gestão da Fundacentro fez questão de expressar que os servidores das UDs eram inconvenientes e desprezíveis: a primeira vez através da realocação física e da forma como foi executada, a segunda vez através de uma realocação no organograma para um lugar despropositado. E os servidores das UDs foram expostos publicamente, uma vez que no website da Fundacentro cada Unidade Descentralizada aparece como Setor de Apoio à Gestão.

[5] Como se pode ver, por exemplo, aqui: https://www.gov.br/fundacentro/pt-br/composicao-1/unidades-descentralizadas/centro-regional-sul-santa-catarina-1/centro-regional-sul-santa-catarina

[6] Ver Instrução Normativa 24 de 2023: https://www.gov.br/servidor/pt-br/assuntos/programa-de-gestao/nova-in-2023/faq.

[7] A Carta pode ser acessada aqui: https://drive.google.com/file/d/1-hyFUlaifgcrG9-Q45-EzEXO1IacFx-E/view?usp=sharing

[8] Ver: https://drive.google.com/file/d/1nhU1ZXdxG2z0goF85kCzOCGtzbiex9_V/view?usp=sharin

[9] Ver a Portaria Fundacentro nº 910/22: https://drive.google.com/file/d/12lkqbgCxecMCGRQzuXXu5BZzAl8mGObj/view?usp=sharing

[10] Ver Portaria Fundacentro nº 1134/23: https://drive.google.com/file/d/1xgBOBof4xQaHqlZXP6hX2oK5Zfi3GqZo/view?usp=sharing

[11] A denúncia inicial gerou a Notícia de Fato nº 1.34.001.002683/2024-71 no MPF. O teor da denúncia inicial pode ser visto aqui: https://drive.google.com/file/d/1vqrW56mIOe7YPPvH0jJAd0flcPs2cUgY/view?usp=drive_link

[12] Ver aqui: https://aterraeredonda.com.br/o-caso-da-fundacentro/

[13] Para acesso ao teor da denúncia: https://drive.google.com/file/d/1F1beGnIJkeuDDRDr83fkzJBsiMOQlS8y/view?usp=drive_link