Por Jan Cenek
Despertou. Desceu da cama e calçou os chinelos que posicionava sempre no mesmo local. Tudo tinha seu lugar. Das roupas à escova de dente, das cuecas aos documentos pessoais, das ferramentas aos medicamentos. Era-lhe simplesmente insuportável não encontrar uma coisa ou encontrá-la fora do lugar. O servidor público odiava mudanças, bagunças e desorganizações. Caminhou até o banheiro. O dia não estava totalmente claro, a luz não havia penetrado na casa. Mas conhecia bem o caminho e seguiu sem dificuldade. Era capaz de percorrer todos os cômodos de olhos fechados. Isso por uma única razão: cada coisa tinha o seu lugar, que ele conhecia, mantinha e administrava. Assim era. Assim devia ser. Acendeu a luz do banheiro. Fechou a porta. Despiu-se. Deixou o chinelo perto do box. Dobrou o pijama e posicionou as peças sobre o gabinete. Depositou a cueca no roupeiro. Abriu a torneira. Deixou a água correr e lavou as mãos. Molhou os braços. Lavou o rosto. Penteou os cabelos. Não fez a barba. Era feriado. Não trabalharia. 28 de outubro: dia do servidor público, dia dele. Apanhou creme dental, escovou os dentes. Aliviou-se. O intestino do servidor público era tão pontual quanto o próprio servidor público. Limpou-se. Entrou no box. Abriu a torneira do chuveiro. Tomou banho frio. O contato com a água gelada era revigorante, dava-lhe força para ganhar mais um dia. Secou o corpo e se cobriu com a toalha. Retornou ao quarto. Vestiu-se. Beijou a esposa e a aliança. Sempre beijava a esposa e a aliança, nessa ordem. Celebrava diariamente a união, o casamento e a família. Voltou ao banheiro. Depositou a toalha de banho no roupeiro. Penteou novamente os cabelos. Desceu a escada sem fazer barulho. Conhecia a altura de cada degrau. Foi até a cozinha. Tomou um copo de água fresca. Espiou o relógio de parede. Estava ligeiramente adiantado, provavelmente porque não havia feito a barba. Devia ter se barbeado. A ordem natural dos acontecimentos precisava ser mantida e respeitada. Era segunda-feira: um homem deve fazer a barba diariamente, ainda mais um servidor público, porque tudo tem seu lugar e seu tempo. Foi até a sala. Abriu a cortina e a janela. Sentou-se no sofá. Correu os dedos pela barba por fazer. Irritou-se. Esperou. Sairia no horário exato para comprar os pães. Um servidor público deve ser pontual como os passarinhos, os galos e os grilos. Se a natureza não fosse precisa, o mundo seria caótico. Retornou da padaria e colocou os pães sobre a mesa. Lavou as mãos com detergente, na pia da cozinha. Complementou a higiene com álcool gel. Apanhou pratos e talheres no armário. Apanhou alimentos na geladeira. Montou a mesa para o café da manhã enquanto ouvia ruídos no andar de cima da casa. Alegrou-se. Eram os primeiros movimentos da esposa e das filhas. Estavam acordadas. Aquela família cumpria o horário naturalmente. Os despertadores eram prescindíveis. Passou o café. Atravessou a sala de jantar e a sala de estar. Apanhou o controle remoto da televisão. O servidor público gostava de tomar café da manhã com a família acompanhando o telejornal. Assim se atualizavam e começavam bem o dia. Mas hesitou. Era 28 de outubro. Os telejornais costumavam criticar o serviço público e os servidores públicos. Ganhavam muito. Trabalhavam pouco. Não discordava totalmente das críticas. Com certeza havia colegas complicados. Havia vagabundos que não gostavam de trabalhar e prejudicavam a imagem das instituições. Mas ele não. Esposa e filhas se posicionaram para tomar café da manhã. Ele aguardava na mesa, em silêncio. Recebeu cumprimentos. Era o dia dele. Faltava apenas o telejornal. Devia ser o feriado – pensaram elas. O servidor público se alegrou ao ver as filhas devidamente uniformizadas para mais um dia letivo. Elas se alimentaram, levantaram, recolheram e lavaram pratos e talheres. O servidor público guardou os alimentos que sobraram. As filhas escovaram os dentes, pentearam os cabelos, apanharam o material escolar, pediram para o pai acompanhá-las até a escola. Insistiram. Mas ele preferiu não ir. Beijou as meninas e a esposa e ficou em casa.
O servidor público se sentiu sozinho. Não estava vestido para o trabalho. Não havia cortado a barba. Não assistira o telejornal. Sequer havia acompanhado as meninas. Devia ter ido com elas. Por que não foi com elas até o colégio? Devia ter feito a barba para acompanhar as filhas. Seria um dia perdido. Ocorreu-lhe que o feriado de 28 de outubro era, na verdade, uma pequena vitória da esquerda e dos esquerdistas do sindicato: que não respeitavam as instituições, que não tinham fé, que queriam destruir as famílias, que não faziam a barba, que não gostavam de trabalhar, que se recusavam a servir a Deus. O servidor público tinha ódio da esquerda e dos esquerdistas do sindicato. Quando havia assembleias sindicais na porta da repartição, ele contornava e entrava por trás para evitar contato com aquela gente. Eram vagabundos que não trabalhavam. Assembleias sindicais eram frequentadas por gente que não gostava de trabalhar. Ele amava o próprio trabalho. Todos deviam amar o que faziam. As coisas são o que devem ser. É preciso amar as coisas como elas são. Os “colegas” esquerdistas passariam o 28 de outubro se embriagando, se empanturrando, fazendo orgias, bagunçando, conspirando. Os vagabundos do sindicato passariam o 28 de outubro planejando greves e paralisações. Aquela gente se achava grande coisa. Mas não conseguiam nem cumprir horário. Pegavam mais atestados médicos do que processos para encaminhar. Ocorreu-lhe que não apenas o 28 de outubro, todos os feriados – com exceção dos religiosos – eram vitórias da esquerda. Precisava combater aquela gente. Devia se vestir, ir até a repartição e trabalhar ainda mais do que já trabalhava. Seria um tapa na cara daquela gente. Um servidor público de verdade deveria comemorar o seu dia trabalhando. Um servidor público deveria comemorar o seu dia servindo a Deus e ao país. Simples assim. Nada mais importante do que servir! Quem não vive para servir não serve para viver – repetiu para si mesmo o que ouvia do pastor, gostava do jogo de palavras. Pena não ter solicitado autorização para entrar na repartição e trabalhar no feriado. Não trabalharia para não contrariar as normas. Só por isso. Um servidor público deve respeitar as leis, as instituições e, sobretudo, as normas. O servidor público deve acreditar nas leis, nas instituições e, sobretudo, nas normas. Os esquerdistas vagabundos que descumpriam as leis, as instituições e as normas. E ninguém fazia nada. Os esquerdistas vagabundos que desmoralizavam as leis, as instituições e as normas. E ninguém fazia nada. Os esquerdistas vagabundos não acreditavam nem nas leis, nem nas instituições e nem nas normas. E ninguém fazia nada. Quem começa duvidando das leis, das instituições e das normas acaba duvidando de Deus, da família e do país. Eram uns pecadores, uns bêbados, uns drogados. Vermes que não sabiam administrar nem as próprias casas, mas queriam administrar as instituições públicas, o país e o mundo. Vermes sem família, que é a base de tudo. Chifrudos. Pervertidos. Veados. Fechou as mãos. Apertou os dedos. Beijou a aliança. Queria socar os esquerdistas. Se os patriotas tivessem, pelo menos, um líder com coragem para fazer o que era necessário, aquela gente seria eliminada. O ex-presidente fraquejou e não fez o que deveria ter feito. Se não dava para eliminar todos os esquerdistas, poderia começar expulsando-os do serviço público. Não era fácil, ele mesmo já havia feito denúncias anônimas na Corregedoria, na Comissão de Ética e no Ministério Público. Os vermes de esquerda prejudicavam a imagem das instituições públicas, não trabalhavam e ninguém fazia nada. É que aquela gente era influente. Por isso o ex-presidente não conseguiu fazer tudo que deveria ter feito. O serviço público deve ser para quem quer servir ao país, como um crente serve a Deus. O trabalho dignifica o homem. Aqueles bandidos queriam desmoralizar o Estado e as instituições públicas. Queriam ensinar putaria nas escolas. Queriam fechar as igrejas e destruir as famílias. Sempre que podia, o servidor público enchia o peito de ar e de orgulho para repetir seu bordão: a família é a base de tudo! Dizer isso na repartição era, para ele, como dar um soco na cara dos esquerdistas. Aqueles vagabundos se achavam grande coisa. Eram apenas bandidos que defendiam bandidos. Não gostam da polícia. Criticam a polícia. Quando um policial se defende e mata um bandido, fazem barulho. Quando os bandidos ferem ou até matam algum policial, ficam calados. Canalhas. Hipócritas. Enquanto ele estava preocupado com o país e com os vermes de esquerda, os vermes de esquerda certamente estavam dormindo e descansando para mais um dia de bebedeiras, orgias, bagunças, conspirações. Acordariam para tramar greves e conspirações. Irritou-se ainda mais. Mas o servidor público iria à forra no dia seguinte. Quando os vermes de esquerda chegassem na repartição com álcool saindo pelos poros, ele já estaria trabalhando. Trabalharia cada vez mais. Trabalharia pelas instituições, pela família, pelo país, por Deus. O servidor público se considerava um privilegiado. Fora abençoado com a possibilidade de servir duplamente: servia a Deus e servia ao país. Tivesse que escolher a palavra mais bonita da língua portuguesa, o servidor público escolheria o verbo servir!
lindo!
Cabou-se a estabilidade do servidor público no dia de hj.
Parabéns ao Supremo e ao governo Lula. Tudo na surdina, mais efetivo que o PL do Bolsonaro.