Por João Bernardo
No começo do Labirintos do Fascismo, quando defini o fascismo e lhe desenhei os contornos e os dois eixos estruturantes, localizei-o fora do leque político convencional, que vai da extrema-esquerda até à extrema-direita, e considerei que ele resulta de uma convergência, ou cruzamento, entre ambos os extremos.
Ao longo daquele livro procurei mostrar que o fascismo é, mais do que um lugar político estável, um processo permanente que, embora mantendo sempre ligações ao liberalismo do centro, se caracteriza sobretudo por reflectir no nacionalismo da direita o eco das reivindicações sociais da esquerda e, inversamente, eleger a nação como quadro privilegiado da efectivação dessas reivindicações sociais. A definição do fascismo como «revolta na ordem», tantas vezes citada pelos leitores, sintetiza a repercussão dos temas da esquerda — a revolta — no âmbito da direita — a ordem. Ou, para usar termos coevos, o fascismo foi gerado simultaneamente na Itália e no Japão quando Enrico Corradini e Kita Ikki formularam o conceito de «nação proletária» e começaram a esboçar-lhe as consequências práticas. A confusão entre o nacional e o social levou à mobilização do proletariado para revigorar o nacionalismo.
Continuo a considerar que este é o quadro teórico indispensável para compreendermos o fascismo. Mas se na física o tempo é irreversível, também na história o é e nada se repete da mesma forma. Por um lado, o fascismo desdobrou-se e, além das suas modalidades clássicas, que continuam a existir, surgiu uma variedade de modalidades novas, dando corpo àquilo que no Labirintos do Fascismo classifiquei como fascismo pós-fascista. Por outro lado, o próprio leque tradicional que vai da extrema-esquerda até à extrema-direita sofreu alterações profundas e os seus componentes mudaram substancialmente. Tudo isto obriga a reorganizar as peças do puzzle, para sabermos como relacionar os movimentos e onde situar os seus agentes. Aliás, se a palavra revolução, que noutra época representara um percurso astronómico de 360º, passou a representar um percurso político de 180º, não devemos espantar-nos por terem ocorrido outras transgressões semânticas igualmente drásticas. Reina hoje uma confusão terminológica que em linhas muito breves — talvez demasiado breves — eu pretendo ajudar aqui a esclarecer.
Não é uma tarefa fácil e em boa parte será inútil, porque o apego dos marxistas à velha terminologia mantém-nos na convicção de que o tempo não passa e que a história é circular, permitindo-lhes recorrer incansavelmente a antigas páginas bolorentas e ignorar os novos problemas. Converteram-se em bolhas isoladas do resto do mundo e a terminologia arcaica serve-lhes para consolidarem a blindagem ideológica.
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Antes de mais, a habitual assimilação do fascismo à extrema-direita serve para dissimular a participação de uma parte considerável da esquerda no processo de cruzamentos e convergências gerador do fascismo. Agora fala-se até com frequência de ultradireita, o que equivale a esticar uma das pontas do leque, para não sair dele.
Um factor indispensável a esta confusão é a ignorância em que a esquerda se mantém — e mantém o público — acerca da literatura fascista, mesmo das suas expressões clássicas. E não se trata de um desconhecimento gerado pela preguiça, mas promovido activamente por uma censura bem-pensante e sempre desperta, o que se demonstra facilmente porque obras hoje proibidas de publicar em papel e de vender nas livrarias e excluídas das bibliotecas lêem-se com facilidade na internet. Esta ignorância é diligentemente cultivada, porque aquela extrema-esquerda que transforma a noção económica de imperialismo numa noção geopolítica encontraria a sua imagem nas páginas de Mein Kampf e em muitos outros discursos do Führer, tal como a extrema-esquerda que confunde a reestruturação da sociedade com a renovação das elites poderia olhar-se ao espelho nos escritos do Duce. E quantos nostálgicos do maoismo haveriam de rever-se nas páginas em que Corneliu Zelea Codreanu evocou as suas cavalgadas pela Moldávia. Pior ainda — pior para essa esquerda que insiste em confundir o fascismo com a extrema-direita — o que sucederia se lessem Georges Sorel e averiguassem o percurso dos seus discípulos sindicalistas revolucionários? Se estes, quando jovens, ainda não sabiam que eram fascistas, os de agora tudo fazem para não o saber. É para evitar que sejam dadas às coisas os seus verdadeiros nomes que aquelas obras são ocultadas ou censuradas.
O mais grave é que não se trata só de um equívoco terminológico.
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Hoje, perante os nossos olhos e debaixo dos nossos pés, a convergência entre extrema-direita e extrema-esquerda, que gerou e continua a gerar as formas clássicas de fascismo, dá origem às novas modalidades do fascismo pós-fascista — a ecologia e os identitarismos. E qual é a terminologia adoptada para designar estes movimentos políticos? Eles são invariavelmente considerados de esquerda ou servem mesmo para caracterizar o que agora se entende por esta palavra.
Aliás, no que diz respeito à ecologia é inexacto classificá-la como pós-fascista, já que é fácil estabelecer a sua filiação directa no fascismo clássico. O cientista que pela primeira vez empregou a palavra ecologia para designar a relação dos animais com o seu meio participou activamente, no final da vida, nas áreas políticas em que se gerou o nacional-socialismo e o nexo manteve-se sem hiato, pois os grandes temas ecológicos fizeram parte da ideologia nacional-socialista, especialmente na sua vertente mais radical, os SS, a ponto de a agricultura orgânica ser erigida em doutrina oficial do Terceiro Reich. E não se tratou de um caso singular, porque a mitificação da natureza — poderia dizer mistificação — caracterizou todas as variantes do fascismo clássico, em que, com atritos maiores ou menores, coabitaram sempre uma ala industrializadora e uma ala ecológica.
Mas a censura imposta pelas potências vencedoras da segunda guerra mundial serviu de álibi para um interesseiro esquecimento, e na sequência da desagregação do grande movimento anticapitalista e autonómico da década de 1960 a ecologia ressurgiu com uma máscara de extrema-esquerda. Este é um dos casos flagrantes do processo gerador — aqui, renovador — do fascismo, porque foi a própria esquerda a dar o impulso necessário para rejuvenescer uma característica do fascismo que se mantinha hibernada. Por isso a ecologia tem desde então fornecido um campo propício às novas convergências entre direita e esquerda, onde surgem os identitarismos que caracterizam o fascismo pós-fascista.
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Na política as máscaras são sobretudo feitas de palavras e o carácter pós-fascista dos identitarismos diz respeito às aparências. Nas suas modalidades organizativas eles limitaram-se a transpor o principal campo de actuação das milícias para as relações sociais virtuais, onde a paulada e o óleo de rícino são substituídos pelos cancelamentos. E no quadro ideológico cada presumida identidade, embora se projecte transnacionalmente, reproduz os traços característicos das nações — o exclusivismo e os ressentimentos recíprocos. Os identitarismos prolongam até o tipo de racismo que servira de fundamento ao Terceiro Reich.
O movimento negro prossegue nessa via sem grande criatividade, limitando-se a mudar a cor e a geografia da anti-raça, que passou agora a ser pálida e eurocêntrica. Ora, alterar a fisionomia das peças sem alterar o jogo só reforça as regras deste jogo, e quando o movimento negro considera que «miscigenação também é genocídio» está a relegar os mestiços para o mesmo estatuto em que o Terceiro Reich colocara os Mischlinge. Aliás, a génese é antiga e as raízes são profundas, porque já Marcus Garvey dissera acerca do seu movimento que «nós fomos os primeiros fascistas» e proclamara: «Mussolini copiou de mim o fascismo». Se acreditarmos no pai fundador, não é o movimento negro a tomar o fascismo como modelo, mas foi o fascismo a inspirar-se no movimento negro. Assim como o ocultamento das obras clássicas do fascismo é indispensável aos equívocos terminológicos com que hoje se mascara a política, também o movimento negro se esforça por esquecer aquelas palavras incontroversas.
Quanto aos identitarismos incluídos na ubíqua e ilimitada sequência de letras, todos eles partilham, embora sem filiação directa, a circularidade entre ideias e biologia defendida extensivamente por Houston Stewart Chamberlain, uma das quatro estrelas maiores do panteon nacional-socialista, e que constituiu um dos traços característicos do racismo do Terceiro Reich. Este reaparecimento de algo que depois da segunda guerra mundial caíra no esquecimento é o exemplo mais eloquente da geração de um fascismo. Chamberlain considerava que «assim como o físico reage sobre o intelectual, o intelectual reage do mesmo modo sobre o físico», por isso ele falava com todo o à-vontade de uma «anatomia interior e invisível» e evocava uma dolicocefalia ou uma braquicefalia «puramente espirituais». Foi seguindo estes ensinamentos que um dos principais cientistas do nacional-socialismo admitiu a existência de uma «raça espiritual» e defendeu que tanto os traços físicos como os mentais e caracterológicos serviam para definir uma raça. E quem duvidaria disso, se o próprio Führer proclamara que podia pertencer-se «em espírito a uma certa raça»!
Do mesmo modo converteu-se hoje num lugar-comum a pretensa cisão entre sexo e género, e se o sexo serve a estes identitarismos para determinar as ideias, em sentido inverso admite-se que as ideias possam também definir qual deverá ser o sexo. Logo no início de um artigo publicado há quase vinte anos com «considerações inoportunas e politicamente incorrectas» a respeito do novo tipo de feminismo, escrevi que durante as minhas pesquisas sobre o fascismo me havia apercebido «de uma convergência de pontos de vista entre certo tipo de feminismo hoje em voga e a modalidade racista de fascismo, o nacional-socialismo hitleriano. Essa descoberta, devo confessá-lo, deixou-me perplexo». Mais estupefacto ainda ficaria se tivesse previsto a sequência dos acontecimentos.
Com a mesma convicção com que Hitler falara aos seus comensais de «uma raça mental», que seria «algo mais sólido e duradouro do que uma simples raça», também os trans falam agora de um sexo mental, mais sólido do que o mero sexo. Aliás, é curioso que os trans tivessem passado a ocupar o centro das atenções, quando representam apenas 1% da população de um país ou 0,5% ou muitíssimo menos. A circularidade entre o âmbito mental e o âmbito biológico contida na clivagem género / sexo assume nos trans a sua forma mais drástica e, ao mesmo tempo, mais patética. Nestes casos as ideias ultrapassam a esfera mental e materializam-se em cenários, que podem limitar-se a gestos e maneiras de andar, mas também prologar-se no tipo de vestuário ou, finalmente, alterar o próprio corpo, convertido na encenação última. Mas o género que se julga ter, ou se ambiciona ter, não altera o sexo que se tem, porque uma mulher não adquire próstata nem um homem adquire ovários, e a pessoa converte-se numa cisão viva de personalidades, irremediável quando, mediante cirurgias e medicamentos, afectou a forma exterior do corpo. E por que motivo não se torna público o número de casos de trans que desistiram da encenação e quiseram voltar ao corpo anterior, muitas vezes sem o conseguir? A circularidade nazi entre ideias e biologia atingiu nos trans uma expressão catastrófica.
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As confusões semânticas continuam a ser indispensáveis no pós-fascismo, já que é comum situar-se na extrema-direita o fascismo herdeiro das formas clássicas, ao mesmo tempo que se remete para a extrema-esquerda os identitarismos e a ecologia. Mantém-se deste modo a ilusão da unicidade do velho leque político e obnubila-se o carácter dinâmico do fascismo enquanto processo de convergência, ou cruzamento, entre os dois extremos.
Ora, o conceito de populismo, hoje tão frequente, refere-se precisamente ao decurso desse processo na sua acção simétrica, a reprodução dos temas de cada lado no lado oposto. Porém, este conceito indica o processo sem lhe assinalar os resultados, daí a sua ambiguidade. O conceito de populismo deve passar a integrar todas as descrições do fascismo, mas com a condição de elas se apresentarem explicitamente como descrições do fascismo.
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O fascismo pós-fascista não suprimiu o fascismo clássico, e os identitarismos existem ao mesmo tempo que os nacionalismos e cruzam-se com eles. Assim, aos conflitos entre nações somam-se agora os conflitos entre identidades.
A imprecisão semântica agrava-se ainda pelo facto de a hostilidade de certos fascismos clássicos aos identitarismos representar uma forma de conflito entre fascismos nacionalistas e fascismos transnacionais. Não se trata de conservadorismo, porque os governos do centro, frequentemente apelidados de conservadores, acabaram todos eles por ser receptivos às reivindicações dos identitarismos de género. Mas aquela hostilidade serve para atrair para o fascismo nacionalista correntes de opinião que pelo peso do hábito ou por simples bom senso são críticas das veleidades identitárias.
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A descaracterização terminológica do fascismo, na multiplicidade das suas variantes, não está suspensa no ar, e as velhas palavras já não servem para designar as novas realidades porque se alterou profundamente a ilusória continuidade gradual entre os dois extremos do leque político tradicional.
Toda a teoria política que suponha a existência de um único centro de emanação do poder está viciada pela base, porque além da área clássica de soberania preenchida pelos governos, os parlamentos e o aparelho judiciário, e que eu denomino Estado Restrito, devemos considerar o que classifico como Estado Amplo, ou seja, o conjunto das empresas enquanto instituições dotadas de soberania não só sobre os seus assalariados durante o processo de trabalho, mas ainda sobre a vida social em redor. Ora, o crescimento da economia e a sua concentração, formando uma rede de múltiplos pólos interligados, dilatou os limites do Estado Amplo e aumentou-lhe a importância e a repercussão. Não só convergiram ambas as áreas de soberania, cada vez mais indissociavelmente unidas, como as normas do Estado Amplo adquiriram o ascendente sobre o Estado Restrito e impuseram noções de rentabilidade ao aparelho político clássico, conferindo um novo sentido ao liberalismo. Quando hoje se fala de Estado e de mercado, já não são as realidades do século XIX que se evocam, embora as palavras permaneçam as mesmas.
A reorganização do leque político tradicional teve ainda outras consequências porque, intimamente ligada à noção de liberalismo e situada no antigo centro entre os extremos, a noção de conservadorismo ficou também definitivamente ultrapassada. A direita deixou de ser conservadora e procura incessantemente introduzir modificações que agilizem a economia e tornem a sociedade mais fluida. Não é a mudança, mas a imobilidade, que a direita receia, enquanto os realmente conservadores se encontram sobretudo naquela extrema-esquerda agarrada a receitas arcaicas e que em vez de transformações práticas só é capaz de debitar palavras de ordem.
Talvez o exemplo mais flagrante desta inexactidão semântica consista em chamar conservador a Javier Millei, apostado em derrubar tudo sem deixar peça sobre peça. É um paradoxo terminológico especialmente nocivo, porque fica assim por estudar e por entender uma das experiências mais inovadoras da política actual, em que pretende impor-se ao Estado Restrito a totalidade dos critérios do Estado Amplo.
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A crescente extensão assumida pelo Estado Amplo contrasta com o alheamento da extrema-esquerda tradicional relativamente à questão das relações sociais de trabalho e com a insistência com que ela recorre ao Estado Restrito como panaceia para todos os problemas. A luta pela remodelação das relações de produção foi substituída pela reivindicação de uma maior equidade na distribuição dos rendimentos, o que deixa inalterada a estrutura do sistema económico e, pior ainda, só confirma este sistema. A actuação da extrema-esquerda tradicional é pautada por duas balizas. Por um lado, pressiona o Estado Restrito a emitir símbolos pecuniários, como se a linguagem substituísse a realidade. Por outro lado, pretendendo aplicar o que eu denominei como sistema da vaca leiteira, essa extrema-esquerda reivindica a instauração de um regime em que os patrões privados continuem a produzir riqueza, encarregando-se o governo de os espremer regularmente para lhes extrair a riqueza produzida, o que só poderia levar a uma queda dos investimentos e à fuga de capitais. Com este duplo programa conseguir-se-ia uma inflação e uma estagnação económica que se potenciariam reciprocamente, numa espiral em colapso. A extrema-esquerda tradicional realizaria o socialismo como um capitalismo disfuncional.
Entretanto, os identitarismos, que se apresentam como a nova extrema-esquerda dos nossos dias, mantêm-se igualmente alheados das relações sociais de trabalho para se preocuparem apenas com a reorganização da classe dos gestores, e reclamam uma remodelação das elites que abarque o Estado Amplo ou até incida sobretudo nele.
Por seu lado a ecologia, cujas sugestões e realizações têm como consequência directa a redução da produtividade e o agravamento da mais-valia absoluta, propõe-se modificar neste sentido os processos de produção do Estado Amplo.
Assim, a mesma expressão extrema-esquerda designa hoje realidades políticas não só diferentes, mas divergentes. A confusão semântica não poderia ser maior.
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Talvez não seja necessário criar palavras novas, mas precisamos urgentemente de aprender o novo significado das palavras antigas.