Por Henri Simon e Dominik Müller

Faleceu no último dia 16 de dezembro de 2024 o militante comunista francês Henri Simon, aos 102 anos. Simon fez parte do grupo da revista Socialisme ou Barbarie, com o qual veio a romper em 1958 para fundar, junto a Claude Lefort, a ICO (Informations et Correspondance Ouvrières) e desde 1975 editava a revista Échanges et mouvement. Seguiu em atividade até os últimos dias de sua vida. A entrevista abaixo foi publicada originalmente em Brooklyn Rail. A tradução é do Passa Palavra.

Em seu apartamento em Paris, cheio de livros e outros materiais, Henri Simon conversou com Dominik Müller sobre sua vida de ação. Uma prova viva dos benefícios da luta de classe ao bem-estar, Henri Simon chegou aos 100 este ano. Muito de sua vida foi dedicada a coletar e compartilhar informações e ideias sobre o movimento internacional dos trabalhadores na posição de membro de grupos como Socialisme ou Barbarie, ICO, e Échanges et movements. A conversa a seguir abrange essa história e as ideias de Simon.

Brooklyn Rail (Dominik Müller): Como você chegou à política?

Henri Simon: Quando eu era jovem, eu fiquei num sanatório por 6 meses. Para mim foi como estar de férias. Na primeira reunião que tive com o médico, ele me falou: “Seu caso não é interessante.” Porque eu já estava mais ou menos curado. Eu tirei vantagem do tempo nas montanhas. Comecei a colecionar e estudar plantas e coisas assim na esperança de me tornar um botânico, para aprender tudo o que eu pudesse sobre o assunto. Então eu viajei pelas montanhas, ignorando ordens estritas de descansar durante o dia. No sanatório eu encontrei um homem que trabalhava numa grande padaria. Ele era educado politicamente, e nós discutimos várias questões. Ele tinha ajudado a organizar greves em 1936 e me contou sobre aquela experiência, explicando o que ela envolvia e compartilhando sua trajetória política mais amplamente. Essa foi minha iniciação ao mundo da política.

Brooklyn Rail: E seus pais?

Simon: Meu pai era mais ou menos um social-democrata. Uma característica notável da minha família paterna, no entanto, era o fato de que eles foram os primeiros na cidade deles a declarar publicamente seu ateísmo. Por exemplo, quando meu avô foi enterrado, meu pai se recusou a que isso tivesse qualquer coisa a ver com a Igreja. O cortejo fúnebre passou não em frente a catedral, mas em frente à prefeitura.

Eu fui fortemente influenciado pela minha mãe. Por volta de 1936, ela começou a ser inspirada por uma pessoa com quem ela fez amizade. Essa amiga tinha sido forçada a se aposentar porque ela estava muito exausta. Ela tinha cinco crianças para cuidar dentro de casa, e ao mesmo tempo trabalhava como professora, onde tomava conta de quarenta crianças. Sofrendo de depressão aguda, a amiga da minha mãe adiantou sua aposentadoria. Essa ex-professora era bem informada sobre política e literatura, uma pessoa muito culta. E ela teve grande influência sobre minha mãe, dando a ela muita informação. Para minha mãe, o contato com essa mulher foi uma espécie de emancipação. A partir dela, minha mãe leu muita literatura nesse período, em grande parte inglesa. Ademais, isso foi durante a época da guerra, e a sua amiga recebia panfletos do Parti Communiste Français (PCF).

Para mim, essa foi uma revelação política e literária. Literária porque eu ganhei familiariedade com a literatura inglesa, e política porque me introduziu ao marxismo. Ali foi realmente o início do meu gosto por literatura, por um lado, e minha introdução à política por outro, e essa dupla exposição me permitiu desenvolver os dois lados da minha personalidade.

Além disso tudo, estranhamente eu tive a sorte de ter tuberculose nos anos 1940. Embora eu estivesse doente, isso me permitiu escapar de certas exigências que existiam na época. Sob o regime de Vichy, havia o Service du travail obligatoire [Serviço de trabalho obrigatório] que recrutava os jovens e os mandava para a Alemanha para trabalhar. Eu tive que passar por um exame médico com médicos militares alemães três vezes para provar minha situação de saúde, porque eles não acreditavam na declaração do médico. Então foi assim que escapei de servir na guerra. Ao mesmo tempo, um bom amigo meu foi levado. Enquanto ele estava na Alemanha, sua mãe vivia em uma vila como viúva. E eu a ajudei com a jardinagem já que seu filho estava no exterior.

Brooklyn Rail: Então você foi sortudo.

Simon: De certa forma. Serve para mostrar que algo pode ser ruim por um lado, mas também bom por outro.

Brooklyn Rail: E então você encontrou esse homem no sanatório?

Simon: Ele me ensinou muitas coisas. Isso foi em 1941. Depois, quando comecei a trabalhar, eu me aproximei do PCF. Me juntei à Confederation Generale du Travail [Confederação Geral do Trabalho, CGT] e me tornei secretário da seção sindical de uma grande companhia de seguros [1].

Brooklyn Rail: E como foi ser secretário da sua seção? Foi uma boa ideia?

Simon: O sindicato? Foi um período curto, a CGT tinha o mote, “classe contra classe.” Quando a primeira guerra da Indochina começou em 1946, [a CGT] era a princípio contrária ao governo. Mas então sua política mudou para uma de colaboração de classes. Eu não segui esse giro, e então em 1947 eu basicamente fui expulso do sindicato. Os líderes tentaram conspirar com membros da seção da CGT para me isolar, mas eles falharam completamente, porque as pessoas me apoiavam. Então eles usaram uma manobra para me remover, o que foi o fim do meu envolvimento com aquela seção.

Não obstante, eu continuei em contato com algumas pessoas. Em 1955 houve um grande protesto contra um contrato de trabalho. Eu esccrevi a esse respeito em meu livro de 1957, Une expérience d’organisation ouvrière, re-editado em 2002. Esse foi o começo de um novo tipo de resistência à política sindicalista nos locais de trabalho, e isso perdurou um longo tempo. Nós mantivemos um pequeno boletim até minha demissão em 1971. A demissão aconteceu porque eles queriam se expandir rapidamente. Na época nós tínhamos uma rede de pessoas contrárias ao sindicato. Na medida em que as seguradoras iam se concentrando, elas tentavam retirar todas as vantages que os trabalhadores tinham ganho em acordos locais. Havia uma discussão entre os diferentes sindicatos envolvidos, visando nivelar tudo, de forma que em algumas empresas obtivéssemos vantagens. Nós arranjamos uma reunião com o chefe e o sindicato, e pedimos para que houvesse uma assembleia antes do lado de fora do local onde a reunião aconteceria. Mas havia um bloco do Lutte Ouvrière, um grupo trotskista. Enquanto eu não estava planejando ir além do que havíamos combinado, alguém dessa organização tentou fazer mais para ganhar alguma influência. Então ele abriu a porta da reunião entre o sindicato e o chefe, e as pessoas o seguiram.

Isso mudou rapidamente a situação, dado o tipo de discrição em que o comitê de negociação estava operando. A punição veio imediatamente. Eles me demitiram junto com o bloco. Eu me recusei a me dissociar desse bloco, embora eu soubesse perfeitamente o que isso significaria. De qualquer forma, eu seria demitido. Mas o sindicato me ofereceu um bom acordo, onde eu seria remanejado para outro lugar. Eu não concordei com isso. Para mim era questão de solidariedade. Alguém poderia contestar a minha demissão, pois eu não não estava por trás da ação do Lutte Ouvrière, e por essa razão eles me deram uma boa quantia de dinheiro como recisão. Independentemente das consequências, foi importante para mim não me dissociar ainda que eu discordasse completamente do que fizeram os membros desse grupo. Você tem de seguir seus princípios.

Brooklyn Rail: E o que aconteceu depois?

Simon: Eu fiquei desempregado por um ano, mas no fim eu encontrei um novo trabalho no setor jurídico de uma estatal. Aqui eu tenho que mencionar algo. Eu fui contratado pela seguradora — AGF, Assurances Générales de France — em 1945. Depois, em 1946, essa empresa foi nacionalizada [2]. Mas por ter sido uma empresa privada, a maior parte da velha guarda era muito conservadora. O novo diretor era de origem judaica e a administração orquestrou uma campanha antissemita contra ele. Eu fiquei incrivelmente chateado com essa situação e combati abertamente a campanha na minha condição de secretário da CGT. Eu penso que esse homem, o diretor-geral (não o presidente), posteriormente se lembrou que eu o tinha defendido. Curiosamente, me ofereceram essa posição jurídica apesar de ter sido posto numa lista negra que tinha bloqueado todas as minhas tentativas de encontrar trabalho. Foi por causa daquele diretor que eu encontrei aquele emprego, por causa da minha solidariedade com ele… Claro, eu não tenho nehuma prova de que ele fez isso — mas eu tinha sido banido de conseguir emprego em qualquer lugar. Eu fiquei feliz de entrar numa empresa estatal e senti que minha contratação foi mais ou menos consequência do que eu tinha feito anos antes. Esse foi o último lugar onde trabalhei, no setor jurídico de uma estatal.

Brooklyn Rail: E por quanto tempo você trabalhou lá?

Simon: Em algum momento, esse novo trabalho foi reorganizado e propuseram um contrato para sair em três anos com um acordo específico onde você receberia seu salário completo. Eu fui sortudo, porque o prazo venceu justamente quando François Mitterand foi eleito e mudou a idade de aposentadoria para 60 anos. Eu tinha acabado de completar 60 anos e tinha resgistrado o número requerido de trimestres, então eu me aposentei. Felizmente eles consideraram três semanas que eu trabalhei numa fábrica de açúcar numa vila no começo da guerra, em 1939, que foi entre dois trimestres. Desde 1982 eu não trabalho. Eu recebo uma aposentadoria completa, então estou bem.

Brooklyn Rail: Você não considera sua atividade em Échanges et Mouvement ou Socialisme ou Barbarie como trabalho?

Simon: Não, porque quando eu estava trabalhando, eu também estava envolvido com esses grupos. Quando eu estava na SouB, eu escrevi alguns artigos. Então eu rompi em 1958, e tive outro grupo — um grupo de trabalhadores, ICO (Informations et correspondances ouvrières) — até 1975.

Brooklyn Rail: Como foi sua experiência no movimento de 1968?

Simon: Bom. Algo aconteceu. 1968 foi um momento de possibilidade. Para mim o que foi importante foi que a discussão estava muito aberta por todo lugar. Nas fábricas havia ocupações. Você poderia discutir qualquer coisa com qualquer um. Ao mesmo tempo, porém, os sindicatos rapidamente estabeleceram controle sobre a situação. Especialmente se havia ação espontânea, o sindicato tomava conta. Mas independentemente, havia a possibilidade de reunir-se em qualquer lugar. Não apenas no local de trabalho, mas do lado de fora havia locais em Paris onde as pessoas se reuniam espontaneamente. Foi assim que as coisas se sustentaram em 1968.

De certa forma, aquele ano significou a morte do ICO. Havia vários novos membros, mas todos esses membros eram estudantes — pessoas sem experiência real. Eles tinham discussões que não eram informadas pela luta de classes. Havia essa nova universidade em Vincennes onde as pessoas falavam sobre problemas ideológicos com [Félix] Guattari, [Gilles] Deleuze, e outros.

Havia muita gente vindo nas nossas discussões. Todas as reuniões do ICO aconteciam em uma sala de aulas na universidade Jussieu porque às vezes havia mais de cem pessoas. Mas o sucesso do ICO foi simultaneamente a sua morte. Eu me lembro de uma discussão. Eu fui à fronteira da França, próximo a Pontarlier para encontrar pessoas do grupo italiano Collegamenti de Milão. Nós conversamos sobre a luta de classes na Itália. Mas quando eu voltei e fui à reunião seguinte do ICO pra fazer um relato, foi impossível. Uma disputa ideológica tinha eclodido a partir de umas discussões da universidade de Vincennes que mencionei. Para mim, esse tipo de coisa foi a razão pela qual saí do ICO dois ou três anos depois. Antes de 1968 era realmente um grupo de trabalhadores, mas depois se tornou um grupo estudantil, sem nenhum interesse na luta de classes.

Échanges teve início em 1975. Alguns dissidentes do ICO fizeram uma reunião em Bolonha com pessoas do Solidarity do Reino Unido, com Cajo Brendel da esquerda holandesa, pessoas da Alemanha e da França. Agora, todas as pessoas que fundaram Échanges estão mortas!

Brooklyn Rail: Qual foi a motivação para fundar o Échanges?

Simon: Para levantar algum tipo de grupo internacional para defender a luta de classes.

Nós adotamos uma linha mais ou menos relacionada ao comunismo de conselhos no começo. Mas àquela altura, comunismo de conselhos estava se tornando algo distante. O problema era tentar reportar a luta de classes em todo o mundo.

Brooklyn Rail: E como vocês se informavam sobre as lutas antes da internet?

Simon: Nós tentávamos manter contatos com pessoas em todas as partes, por exemplo nos Estados Unidos. Nós tínhamos holandeses, 6 pessoas na Inglaterra, outro contato na Alemanha. Assim nós coletávamos informação.

Brooklyn Rail: Esses trabalhadores estavam escrevendo sobre suas próprias lutas?

Simon: Em geral, não. Na minha experiência, na maior parte do tempo as pessoas não escrevem sobre suas próprias lutas. Eu tentei várias vezes que as pessoas registrassem as coisas pelas quais passaram.

Brooklyn Rail: Qual foi e continua sendo o objetivo de descrever todas essas lutas?

Simon: Informar as pessoas e quiçá ter discussões sobre certos problemas, mas também analisar coisas que consideramos importantes e permitir às pessoas descobrir coisas novas. O que nós propúnhamos para essa publicação não era uma “linha”. As pessoas poderiam concordar ou discordar dos textos que publicávamos. Se eles discordassem, eles podiam explicar as razões das suas discordâncias. Alguns colaboradores tentaram uma vez estabelecer uma linha, mas nós dissemos a eles que o objetivo era ser um fórum aberto. Nós queríamos informar as pessoas sobre a luta de classes e provocar o debate; essa era a base. Alguns se recusaram a seguir essa base. Eles tentavam colaborar conosco, mas abandonavam depois de um tempo porque eles consideravam necessário ter uma linha. Mas isso era algo que nós recusávamos.

Brooklyn Rail: E você acha que vocês foram bem-sucedidos em disparar essas discussões?

Simon: Bem, nós ainda mantemos isso, não é só no passado. É um novo mundo: aqueles que o iniciaram em sua maioria estão mortos, então agora outros estão colaborando.

 

Brooklyn Rail: Quais lutas que o interessaram mais, ou que o deram alguma esperança? Quais lutas foram mais importantes para você, pessoalmente?

Simon: Essa é difícil de responder. O que aconteceu aqui dois anos atrás foi muito importante. A onda de greves na Inglaterra neste momento é muito interessante. Agora mesmo há um sindicato bem militante lá que está logrando trazer o método de greve de volta à discussão. Na Inglaterra tem uma lei que regula as greves. Apenas greves em uma certa empresa são legais, não a forma mais severa de greve, a greve geral. Há assim uma extrema divisão entre as greves. Mas esse sindicato militante tem conseguido reverter a situação: eles conseguiram adotar o mesmo movimento em todas as unidades, assim fazendo uma greve geral contra o patrão.

Brooklyn Rail: Karl Marx disse que na luta contra o estado atual das coisas, a crítica não é uma paixão do cérebro mas o cérebro da paixão. Qual é a sua motivação para criticar, para ser militante? O que o move?

Simon: No começo, eu lutava porque eu sentia que eu tinha que fazer algo contra a injustiça. De alguma forma, essa é a base moral de tudo. Eu herdei isso da minha mãe, que eu via constantemente lutando pelo que era certo. Como ela, eu não consigo tolerar injustiça na sociedade, então minha motivação sempre está aí. Então eu segui o exemplo dela. Para minha mãe, a luta contra a injustiça abrangia tudo, desde dar aulas gratuitas às crianças polonesas de um operário, até arrecadar roupas para a Revolução Espanhola. Combater injustiças era algo cotidiano para ela, desde a escola onde ela lecionava, até as coisas mais coletivas. Ela foi meu modelo, eu fui fortemente influenciado por ela, vendo-a simplesmente fazer o que podia, e não seguindo ordens. Minha mãe não foi membro de nenhuma organização; ela estava atuando de acordo com seus próprios sentimentos, e para mim é a mesma coisa.

Brooklyn Rail: Você ainda pensa que é importante usar o conceito de classe trabalhadora?

Simon: O conceito do trabalhador é habitual: pessoas vendendo sua força de trabalho para um chefe, apenas isso. Você é um trabalhador se você faz algo em troca de salário. Essa é a definição marxista, e para mim não há problema algum com ela. Trabalhadores vendem sua força de trabalho para ganhar um salário e o patrão confisca o produto do trabalho deles. Essa é a base do sistema capitalista. Eu me atenho à teoria marxista. A classe trabalhadora são pessoas forçadas a vender sua força de trabalho. Às vezes, você consegue um status especial como trabalhador assalariado, mas às vezes você não tem esse status. Tem muita gente explorada de uma certa maneira, então todo mundo que é obrigado a vender sua força de trabalho é um trabalhador, seja lá qual for seu status legal.

Brooklyn Rail: Não é importante discutir como a classe trabalhadora mudou ao longo de tempo, e como a classe é composta?

Simon: Sim. Algumas pessoas não são trabalhadores legalmente ou oficialmente, mas ainda são trabalhadores de fato. Por exemplo, existe muita discussão sobre pessoas fazendo entregas. Você vê todas essas pessoas nas ruas levando comida para algum lugar. Na maior parte das vezes essas pessoas não são consideradas trabalhadores assalariados, mas na verdade são. Então a noção de trabalhador é mais do que o status legal de “trabalhador”.

Brooklyn Rail: E quanto ao trabalho pelo qual você não é pago, que é majoritariamente feito por mulheres, trabalho não pago?

Simon: Poderíamos considerá-los trabalhadores. Mas uma mulher que fica em casa cuidando das crianças, fazendo um monte de trabalho, não é legalmente considerada uma trabalhadora. Dela apenas se espera que cuide da família. Esse é um problema, é claro. É claro, uma mulher trabalhando em casa poderia eventualmente ser considerada uma trabalhadora, mas atualmente ela não é. É evidente que ela está trabalhando para a reprodução da espécie humana. Mas nunca é considerado trabalho, ainda que seja a real situação.

Na maior parte dos casais atualmente, no entanto, as mulheres estão trabalhando fora de casa. Hoje as coisas não são as mesmas que eram um século atrás. Mesmo cinquenta anos atrás, a maior parte das mulheres ficava em casa. Agora a maior parte delas também está trabalhando e tem sua própria renda. Mas mesmo sob as circunstâncias atuais, as mulheres precisam cuidar da vida cotidiana mais do que os homens. Elas não são pagas por isso, é claro. Está mudando aos poucos – se movendo bem devagar, mas se movendo.

Brooklyn Rail: Se você compreende o conceito de trabalhador em sentido amplo, eu entendo por que o conceito marxista seja útil. Mas quem é a classe trabalhadora hoje em dia?

Simon: Marx desenvolveu sua teoria há mais de 150 anos, refletindo sobre a situação econômica de seus dias e as condições em que o trabalho era explorado naquele período. Ele não podia prever algumas das mudanças que iriam acontecer nos anos 1960 na natureza do trabalho e dos meios de controle sobre o trabalho. Eu penso que enquanto o fundamental da análise de Marx ainda ressoa, as condições dos trabalhadores por outro lado são diferentes do que eram quando ele estava escrevendo. Certamente a base da exploração da força de trabalho e a extração de mais-valia através do assalariamento é a mesma, mas a forma como o sistem opera mudou. Há um controle mais estrito do que havia antes. Por exemplo, um século atrás os trabalhadores respondiam ao capataz e a mais ninguém. Agora é completamente diferente. Você está sendo vigiado em todo lugar, nas ruas, no metrô, nas lojas, no trabalho, até em casa. Quando você sai na rua você é filmado por sistemas de câmera, e no trabalho também. Há muitos métodos de pressionar os trabalhadores. Quando era só o capataz, você podia passar despercebido com várias coisas no trabalho, mas agora é praticamente impossível. Eles monitoram você e podem ver a qualquer momento o que você está fazendo e onde você está no momento em que você tentar trapacear. Ficou muito mais difícil resistir. Marx não pôde prever isso, é claro. Há alguma resistência, mas é muito difícil escapar desse sistema de total e constante controle.

Brooklyn Rail: Você vê formas de resistir e escapar desse sistema?

Simon: Há maneiras. São mais comportamentos individuais, pelo que vejo. Por exemplo, poucas pessoas participam das eleições na França atualmente. Apenas vinte e cinco por cento da população vota, o que é um tipo de descontentamento com o sistema. Nenhum sistema pode duurar muito sem o apoio da maioria da população. Então você poderia dizer que na presente situação atitudes individuais se tornam mais importantes do que antes. Não é ação coletiva, mas o fato de que vários indivíduos fazem [uma determinada ação], tornam-na um movimento coletivo… Você entende o que eu quero dizer? Não é uma ação organizada, mas ainda assim resulta em uma ação coletiva. Tem aquilo que chamam de “a grande resignação”: pessoas trocando de trabalho, não se pode impedir isso. Há falta de trabalho em vários setores atualmente, não apenas na França, mas em todo mundo. Eles não sabem o que fazer, eles aceitam mudar as condições de trabalho em alguns lugares. Mas em geral, as pessoas estão mudando para onde elas se sentem melhor. É uma atitude individual. Quando eu comecei a trabalhar havia grandes greves por todo lugar, agora a era das greves acabou. Existem ainda algumas greves, mas a maior resistência ocorre em ações individuais em relação ao trabalho. O que estamos vendo é um tipo de recusa individual de um monte de coisas, um tipo de recuo na participação no sistema.

Brooklyn Rail: Como você converte uma abordagem individual em uma ação coletiva que seja efetiva?

Simon: Não é algo novo. Na maior parte das vezes a luta de classes é considerada como a atividade coletiva dos trabalhadores. Mas atitudes individuais sobre o trabalho poderiam tornar-se uma ação coletiva porque elas são repetidas individualmente pelos trabalhadores. Isso sempre existiu. Por exemplo, no meu trabalho as pessoas trabalhavam em grandes escritórios. Antes do fim do expediente, as pessoas estavam prontas para parar de trabalhar talvez dez minutos antes do horário. Elas faziam isso individualmente juntas e se amontoavam nas escadas para correr para o lado de fora. Não era uma ação organizada, era uma atitude individual, mas se tornava uma ação coletiva. Isso é apenas um exemplo. Aqui estão uma série de situações similares, mas que são completamente negligenciadas, porque a maioria dos sociólogos e sindicalistas consideram bobagem. Mas é muito importante, e alguns estudos organizados por chefes viram a importância dessas coisas. É algo no limiar de tornar-se ação coletiva, tomar de volta uma parte da produtividade. Eles sabem que há alguma luta aí que é difícil de entender. Há muitas situações onde ações individuais se tornam coletivas. Por exemplo, se as pessoas param de trabalhar para fumar um cigarro. Em algum ponto, as pessoas não eram autorizadas a fumar no trabalho, então em alguns lugares onde há muitos escritórios como La Défense em Paris você pode ver vários trabalhadores saindo para ter um tempo livre. Existem muitas situações como essa que são muito danosas para a produtividade. Tem uma espécie de luta clandestina do chefe para tentar controlar isso, mas é muito difícil de controlar. Eu poderia citar alguns exemplos como esse. Você pode ver que existem, mas as pessoas não falam sobre.

Onde eu trabalhei, quando as crianças começavam a escola havia muitos pedidos de lápis e canetas — não eram os trabalhadores que precisavam, mas seus filhos. Você está roubando tempo ou objetos, por exemplo usando o telefone quando seu chefe está fora do escritório, porque a gerência normalmente demora muito tempo no almoço, então as pessoas tem acesso livre e usam o telefone do chefe para fazer chamadas. As pessoas fazem essas coisas quando têm a chance, e elas são muito inventivas. Eu poderia citar alguns exemplos, mas em geral, coisas como essas não são consideradas “luta de classes,” quando na verdade elas são. Nós tivemos um monte de discussões sobre isso uma vez, porque até alguns militantes viam a luta apenas nas formas organizadas, não como uma coleção de atitudes individuais. Mas se as pessoas estão fazendo algo dessa forma os outros podem ver, mas não dizem nada porque poderiam estar fazendo a mesma coisa. É uma forma de cumplicidade; para o gerente é importante, porque quando tem várias centenas ou milhares de pessoas fazendo esse tipo de coisa isso afeta a produtividade.

Brooklyn Rail: Quando você pensa e analisa uma greve com suas palavras você usa uma linguagem que trabalhadores ordinários não usam. Por quê?

Simon: Por um longo tempo, um grupo de pessoas onde trabalhei publicava um pequeno boletim e o distribuía no portão. Quando eu escrevi um artigo, eu usei linguagem normal. Era sobre fatos, não coisas teóricas – por exemplo, se um gerente tinha uma atitude ruim com os trabalhadores ou algo assim, nós comentávamos. Eu tentava pressionar outros trabalhadores a escrever. Mas eles achavam que se eles escrevessem para os outros lerem seria trabalho literário. Então eles não queriam usar sua linguagem normal. Então eu tinha que escutar eles falando e escrever aquilo que eles diziam. Percebe? Porque ao falar eles usam a linguagem que usam para se comunicar com outros trabalhadores.

Brooklyn Rail: Voltando à ideia de que um trabalhador ou trabalhadora é aquele ou aquela que precisa vender sua força de trabalho: como podemos dizer que as situações de um professor e de um trabalhador migrante, informal, ilegal são as mesmas?

Simon: Não são as mesmas. Mas é a mesma coisa de qualquer modo. Porque ambos vendem sua força de trabalho. Essa é a base. E ao mesmo tempo o que eles fazem é confiscado pelo gestor. Eles produzem mais-valia e isso é a base de tudo — legal ou ilegal. É a base de tudo. O que é certo é que o gestor sempre tenta extrair tanta mais-valia quanto possível. Pagará menos se puder. Aumentará a produtividade se puder. É o básico. Eu me atenho a isso. Porque é evidente. Eu me atenho ao que é simples. O que muda é a forma como isso é obtido. Em um certo sentido, você pode dizer que um trabalhador hoje é mais explorado do que no tempo de Marx porque ele ou ela tem menos possibilidade de defesa coletiva. Mas o gestor sempre usa a força de trabalho do trabalhador para fazer dinheiro. Isso não mudou desde o tempo de Marx. O que mudou são as condições de trabalho. Mas o básico ainda é o mesmo.

Brooklyn Rail: As condições dos trabalhadores estão progressivamente se tornando mais similares ao redor do mundo. Você vê alguma possibilidade de uma luta classista internacional?

Simon: Existem muitos movimentos que tomaram uma posição internacional no Mundo Ocidental – por exemplo, o Black Lives Matter. E o #MeToo, se alastrando internacionalmente sem nenhuma organização prévia. E isso aconteceu diversas vezes recentemente. O movimento climático começou a partir daquela jovem ativista sueca, Greta Thunberg. Mas esses movimentos não aconteceram entre os trabalhadores. Eles são aquilo que geralmente chamamos de movimentos sociais. Não há movimento classista internacional por enquanto. Se pode acontecer eu não sei. Mas já existe uma tendência dos movimentos de se espalhar espontaneamente — sem organização. Cinquenta anos atrás, organizações — o Partido Comunista, o Partido Trotskista — tentaram agir internacionalmente. Mas isso acabou. Mas agora você pode ver o movimento internacional se espalhando espontaneamente. Isso é completamente novo. E você poderia pensar que as coisas poderiam algum dia acontecer assim com lutas classistas. Eu penso, considerando a situação, que podemos ser otimistas.

Brooklyn Rail: É como você falou, o controle nos locais de trabalho está se intensificando. Nos meus locais de trabalho as pessoas têm medo de falar contra o chefe. Elas só fazem isso em privado. Mas no fim, toda vez, elas superam esse medo. Elas ainda sentem a solidariedade que vem da experiência compartilhada de ter que trabalhar juntos, e saber que seus colegas estão na mesma situação que você, e isso ainda é uma das coisas que me dá confiança no potencial da classe trabalhadora no local de trabalho de superar sua situação coletivamente. Eles só precisam se livrar desse medo.

Simon: Você pensa que as pessoas estão com medo? Do quê?

Brooklyn Rail: De fazer qualquer coisa.

Simon: Você pensa que as pessoas estão com medo de fazer algo? Não, não! Se você está numa situação dessas, você tem que se defender. Você age. A prova disso: há muitas greves. As pessoas conhecem os meios de controle, mas elas não ligam mais. Elas não ligam. Não, elas sabem que o balanço da luta está a seu favor. Quando precisam defender sua condição, as pessoas não sentem medo.

Notas

[1] Em 1943, Henri se envolveu com um grupo da resistência em sua cidade natal Rozay-en-Brie. Em 1944 ele era secretário do Comitê de Liberação de Rozay. Em 1944-1945, na mesma cidade, ele liderou um grupo de jovens ligado à Frente Nacional, à época dominada pelo PCF.
[2] Isso foi parte de uma legislação mais ampla aprovada naquele ano por Charles de Gaulle, nacionalizando a indústria de seguros.

1 COMENTÁRIO

  1. Nem militante baluarte, nem dirigente infalível: Henri Simon, impulsionado pela paixão da crítica e orientado pela crítica da paixão.
    Um belo rugido do Passa Palavra.

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