Por José Miguel de Sousa Lopes
O que vai ser abordado neste texto diz respeito a um episódio ocorrido no dia 09/01/2025.
Quero, desde já, chamar a atenção para três questões.
A primeira diz respeito ao uso que faço da palavra surrealismo no título deste trabalho. O surrealismo é um movimento literário e artístico, lançado em 1924 pelo escritor francês André Breton (1896-1966), que se caracterizava pela expressão espontânea e automática do pensamento (ditada apenas pelo inconsciente) e, deliberadamente incoerente, proclamava a prevalência absoluta do sonho, do inconsciente, do instinto e do desejo e pregava a renovação de todos os valores, inclusive os morais, políticos, científicos e filosóficos. Não é este sentido ligado à arte que utilizo no título, mas sim o sentido de presente em algo estranho, absurdo, que não corresponde à realidade. Dizer que algum acontecimento é surreal significa que foge à realidade, que é bizarro ou absurdo.
A segunda para o facto de que o texto, em alguns momentos, está carregado de forte ironia. A tragédia que está ocorrendo em Moçambique é de tal magnitude, que esta foi a forma que encontrei para não cair na insanidade.
A terceira diz respeito ao fato de estas reflexões se referirem a um episódio ocorrido num determinado dia e hora. Para quem desejar ter mais informações sobre o contexto político e os tumultos violentos que Moçambique atravessa no momento, clique aqui.
O que me “incentivou” a escrever estas breves considerações foi o episódio que ocorreu no dia 09/01/2025, às 8:20h da manhã, no momento da chegada ao aeroporto de Maputo, do candidato Venâncio Mondlane, que há uns meses se tinha auto proclamado Presidente da República. Ao colocar os pés em solo moçambicano não só reafirmou sua autoproclamação como foi mais além, montou uma cerimónia de tomada de posse, levando assim à prática o seu desejo. Alguns dirão que essa tomada de posse foi apenas uma forma simbólica. Tudo bem, mas também sabemos que um símbolo é qualquer coisa usada para representar ou substituir outra, estabelecendo uma correspondência ou relação entre elas. Tem um valor evocatório ou místico. Então, isso não invalida o propósito de Mondlane.
Já vi muita coisa na vida. Ingenuamente, pensei que já tinha visto de tudo. Ledo engano. Depois disto, só me falta ver boi voando. Descobri que um cidadão não precisa respeitar um mínimo de regras constitucionais. Basta uma Bíblia bem encadernada, novinha em folha como se pode ver nas fotos. Provavelmente este exemplar do seu possuidor nunca foi aberto! Precisa também ter habilidade para fazer genuflexões, que o caminho do Senhor fará o resto. Como se sentirão os moçambicanos pertencentes a outros credos religiosos, ou sem credo religioso, ao verem estas imagens? Pois, foi isto que os moçambicanos, e não só, tiveram o “privilégio” de assistir esta manhã, um momento que vai ficar registado não apenas na História de Moçambique, mas na História Mundial. Afinal, apenas em duas ocasiões ocorreram “autoproclamações” políticas no planeta Terra.
O surgimento das autoproclamações políticas
O fenômeno de autoproclamação ocorreu pela primeira vez na Venezuela, em 2019, quando Juan Guiadó acusou as autoridades venezuelanas de fraude eleitoral. Incentivado pelos Estados Unidos, seguido depois pelo Parlamento Europeu, se autoproclamou Presidente da República. Durante dois anos, fez um périplo por vários países para receber apoio e derrubar o presidente Nicolás Maduro, mas todas as tentativas fracassaram. Guaidó, além de ocultar ou falsificar dados de sua declaração de patrimônio, recebeu dinheiro de fontes internacionais e nacionais sem justificar, tendo também conseguido desviar 2 bilhões de dólares a contas próprias. Registe-se que o ato da tomada de posse ocorreu fora do país. Agiu em conjunto com o governo dos EUA para ativos venezuelanos apropriados no exterior. A movimentação financeira incluía contas do governo da Venezuela ou do Banco Central Venezuelano sediadas no Federal Reserve Bank de Nova York, mas o controle destes ativos era aplicável a contas semelhantes em qualquer banco segurado ou garantido pelo governo americano. Guaidó tem cerca de vinte processos abertos contra si por crimes de usurpação de funções, corrupção, branqueamento de capitais, incitação pública continuada à desobediência às leis, peculato agravado, utilização fraudulenta de fundos públicos, conspiração com governos estrangeiros, terrorismo, rebelião, tráfico de armas de guerra, traição e associação para cometer um crime.
A segunda ocorreu em 2024, também na Venezuela, no processo eleitoral para Presidente da República com o surgimento do candidato Edmundo González Urrutia, que também acusou as autoridades venezuelanas de fraude eleitoral. Na esteira de Guaidó, também se autoproclamou Presidente. Sua estratégia assenta na negação da Quinta República, no financiamento espúrio, na pressão política internacional e em medidas coercivas unilaterais, combinadas com cenários de violência nas ruas e, como aconteceu em 2019, a montagem de uma arquitetura institucional paralela, que, como o tempo demonstrou, tinha como objetivo a apropriação da herança venezuelana no exterior. Entre os vários encontros de Urrutia devem salientar-se os que ocorreram com Trump e Milei. Na América Latina, apenas Costa Rica, Panamá, Equador — que provavelmente mudará de governo em fevereiro —, Peru, Argentina e o governo cessante do Uruguai, são os países que reconheceram a autoproclamação de Urrutia. Mesmo com tensões, o Plano “Guaidó 2.0” parece ter muito menos atores envolvidos. É verdade que nem o mundo nem a região são os mesmos de 2019.
O “rio” da autoproclamação parece vir engrossando com novos afluentes que surgem cada vez com maior frequência e intensidade. Diria que parece estar virando moda esse tipo de ato na política, ou melhor, na antipolítica. Eu próprio começo a dar sinais esperançosos para me aventurar também nesse sedutor e atraente caminho da autoproclamação para Presidente da República. De que país? Ora… qualquer um. O que não falta são países no mundo. Talvez a escolha da República das Bananas seja a mais interessante!
Feita a escolha, só é necessário um estalar de dedos e abrir, ao acaso, uma página da Bíblia. Este é, certamente, um dos livros mais banhados de sangue da literatura mundial, principalmente o Antigo Testamento. É este livro que acompanha o pastor Mondlane dia e noite, livro sem o qual ele se sentiria à deriva, completamente sem rumo.
É importante destacar que Moçambique é agora o único país do mundo que tem dois presidentes: um proclamado e outro autoproclamado. Lembro que Urrutia, ao contrário de Mondlane, se autoproclamou, mas não tomou posse. Assim, Moçambique entrou para o Guiness Book com esta façanha indesmentível. Finalmente, toda a comunidade internacional vai passar a respeitar Moçambique! Que orgulho!
Uma pequena digressão bíblica
No mundo ocidental a Bíblia é o livro mais famoso e o mais citado. Atenção, eu disse citado, não disse lido. Nos Estados Unidos, por exemplo, praticamente todos os americanos possuem este livro que, inclusive, é colocado na mesinha de cabeceira. Mas, a esmagadora maioria, nunca o leu. No púlpito das igrejas do Ocidente, os padres sempre citam passagens da Bíblia, mas apenas aquelas poucas impregnadas de valores humanos. Daí que, ininterrupta e sistematicamente, sejam sempre as mesmas citações que os paroquianos são “obrigados” a ouvir até serem fixadas na memória para serem passadas adiante.
Mas a pergunta que não quer calar é a seguinte: Que Deus é esse que o livro nos mostra? A Bíblia apresenta-nos um Deus tirano, vingador, caprichoso, que manda exterminar povos inteiros. E pede que se façam essas ações sem compaixão. Vejamos apenas alguns exemplos, dentre centenas, que fazem parte do livro mais famoso do mundo ocidental.
Quando Deus fala a Saul para que acabe com o povo de Amaleque, ordena-lhe: “Vá, pois, e fira Amaleque e destrua tudo o que tem e não tenha piedade dele. Mate homens, mulheres e crianças, mesmo as de colo, vacas, ovelhas, camelos e burros. (1. Samuel, 15:3).
Outro exemplo:
Quando no meio de ti, em alguma das tuas portas que te dá o senhor teu Deus, se achar algum homem ou mulher que fizer mal aos olhos do senhor teu Deus, transgredindo a sua aliança, Que se for, e servir a outros deuses, e se encurvar a eles ou ao sol, ou à lua, ou a todo o exército do céu, o que eu não ordenei, E te for denunciado, e o ouvires; então bem o inquirirás; e eis que, sendo verdade, e certo que se fez tal abominação em Israel, Então tirarás o homem ou a mulher que fez este malefício, às tuas portas, e apedrejarás o tal homem ou mulher, até que morra (Deuteronómio 17, 2-5).
E para finalizar mais um exemplo:
Tudo o que for achado será transpassado; e tudo o que se unir a ele cairá à espada. E suas crianças serão despedaçadas perante os seus olhos; as suas casas serão saqueadas, e as suas mulheres violadas“ (Isaías 13, 15-16).
É este livro um dos principais suportes do projeto político de Mondlane. Numa época em que a questão da violência se coloca para toda a humanidade e em que diversos setores da sociedade buscam soluções não violentas para o drama da violência, coloca-se para o cristão, que baseia sua fé na revelação bíblica, o seguinte dilema: Como ser não violento e crer num Deus violento? Há que fazer uma escolha necessariamente empobrecedora, qual seja, escolher ou a imagem do Deus bíblico ou o ideal da não violência? Ou ainda, há que escolher entre o Deus do Antigo Testamento, que se envolve em práticas de violência e o Deus de Jesus, que se revela como amor redentor na impotência da cruz?
Saberá Mondlane responder a este dilema?
As sinalizações da política-espetáculo de Venâncio Mondlane
Na sociedade do espetáculo, a imagem desempenha um papel central na política. Os políticos que adotam estratégias teatrais se preocupam mais com sua própria imagem e como são percebidos pelos eleitores do que com a qualidade das políticas que estão sendo discutidas. Assim, a construção de uma persona midiática atraente se torna prioritária em detrimento do trabalho legislativo sério e da busca por soluções efetivas para os problemas enfrentados pela sociedade.
Contudo, essa utilização de estratégias teatrais na política contribui para a alienação e a superficialidade do debate público. Ao buscar momentos dramáticos e polêmicos, os políticos desviam a atenção dos problemas reais e complexos que requerem abordagens aprofundadas. A simplificação excessiva e a busca por slogans de efeito resultam em uma compreensão superficial e distorcida das questões políticas, comprometendo o diálogo construtivo e a tomada de decisões informadas.
Estamos numa época em que o método de divulgação de uma ideia, de um projeto e de uma liderança deve ser transmitido às massas em uma linguagem semelhante à de um produto de consumo, em que o discurso emotivo deve predominar. Nesse processo, no qual nós ainda vivemos, resta saber quem sobrevirá — a política ou a propaganda.
No caso em análise podemos ver como, num golpe de mágica, um novo Salvador, ou melhor, pastor, se apresenta perante o seu rebanho, que está inteiramente disponível para seguir toda e qualquer orientação messiânica.
Sua arrogância chega ao ponto de afirmar, um dia antes da sua chegada a Moçambique, que “Gostaria de convidar o próprio Presidente da República, o Procurador-Geral da República, a presidente do Conselho Constitucional e o presidente do Supremo Tribunal a irem receber-me”. Diria eu, não só recebê-lo, mas a prestar-lhe vassalagem.
Importa salientar que Mondlane transporta consigo vários processos-crime por incitação às manifestações violentas que têm vindo a acontecer no País desde 21 de outubro e que causaram danos materiais e vários mortos.
O sociólogo João Feijó assevera que: “Venâncio Mondlane já nos habituou a um tipo de política-espetáculo, em que tem de criar acontecimentos que provocam grande comoção social, para manter viva a chamada luta na rua, e é nessa onda que ele navega, mantendo as massas ativas, exaltadas e emotivas” (FEIJÓ, 09/01/2025). Aliás, essa é a estratégia adotada pela extrema-direita mundial, sendo as mais representativas as dos EUA, Argentina, Itália, Hungria.
Nestas considerações procuro, em alguma medida, mostrar o elo entre a mídia e a política, pois, como é óbvio, o que proporcionou minhas reflexões sobre este texto foram, exatamente, os vídeos e fotos da “tomada de posse” do pastor Mondlane na sua chegada a Moçambique.
A política não se esvazia necessariamente com a crescente importância dos meios de comunicação. Em primeiro lugar porque uma grande parte dela se faz longe destes meios e, depois, porque, mesmo na mídia, a política pode se realizar sem perder em conteúdo. Modificam-se as formas de interação entre os cidadãos e o sistema político, assim como se modificam as formas de interação em sentido mais geral nas sociedades contemporâneas. Os meios de comunicação oferecem novas possibilidades de ação para os movimentos que interagem e competem para tornarem as suas demandas assuntos de interesse público. Nesse sentido, a democracia corre o risco de morrer democraticamente porque a própria democracia está elegendo antidemocratas para o poder.
Não foi um espetáculo político, estrategicamente bem pensado, o que Mondlane proporcionou aos seus seguidores?
Para onde caminha Moçambique? Fazer futurologia política, como se sabe, é um exercício muito arriscado. Mas Deus e Mondlane sabem o caminho. Confiemos na indesmentível sabedoria de ambos.
Referências
FEIJÓ, João. Que Esperar do Regresso de Venâncio Mondlane a Moçambique: Prisão, Mais Manifestações ou um Regresso à Normalidade? In: Diário Económico. (09/01/2025).
Fotografias retiradas de Diário Económico e O Observador