Por Marcelo Tavares de Santana [*]
A Lei Nº 15.100 de 13 de janeiro de 2025 [1] trouxe discussões sobre a proibição do uso de smartphones nas escolas de ensino da Educação Básica no Brasil que não refletem o texto da lei. Essa lei funciona como uma lista de controle de acesso (bastante comum em segurança computacional) onde a primeira regra é proibição e logo em seguida são enunciadas as permissões; enxerguei pelo menos nove exceções na lei. Talvez por minha experiência com listas de controle de acesso percebi o verbo proibir apenas como uma instrução na lei, não como objetivo, inclusive está explícito no Art. 1º as palavras “com o objetivo de salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes”. Talvez por estarmos imersos numa sociedade de exposição de tragédias preferiram focar as discussões na instrução de proibição do Art. 2º. Talvez não tenham ocorrido discussões suficientes para uma lei desse porte, o quê não impede que ela seja aperfeiçoada. De alguma forma, talvez tenha surgido um sentimento coletivo de necessidade de que uma lei como essa precisava ser aprovada com urgência mesmo se conhecimento preciso do problema. Se lembrarmos do fracasso da experiência sueca com a educação 100% digital em 2023, e temos que agradecer o Governo da Suécia por ser transparente em nos contar os problemas dessa experiência e porque voltou aos livros impressos, percebemos que mesmo com planejamento pedagógico é preciso alguma restrição na forma de uso de equipamentos computacionais no ensino básico.
Apesar de tantos “talvez” cabe uma tentativa de enxergar o contexto que esses equipamentos estão inseridos, que é algo maior que a sala de aula. A imensa maioria de smartphones, sistemas operacionais e lojas de aplicativos para esses equipamentos é criada e gerenciada por grandes empresas de tecnologia, e além disso as mesmas empresas desenvolveram uma lógica de monetização baseada em publicidade que leva muitos desenvolvedores a buscar uma atratividade desmedida por uso de aplicativos, onde todo segundo é um momento para monetizar. Além dos desenvolvedores buscando essa atratividade ainda existe nas empresas as equipes de pesquisa de mercado com antropólogos, sociólogos, psicólogos, analista de dados, etc. algumas ou muitas vezes empenhados em fazer o usuário inconscientemente ficar na plataforma ou no aplicativo. Dessa forma, de um lado temos um docente muitas vezes desvalorizado tendo que produzir sozinho diversas aulas, cada uma com uma metodologia de ensino para seu conteúdo específico, e do outro temos nas mãos de cada estudante um equipamento que tem alguns propósitos embarcados, desconhecidos e fomentados por investimentos bilionários, graças a capacidade de replicação de cópias de programas que a tecnologia proporciona. Não costumamos lembrar do tamanho e capacidade financeira das big techs em algumas discussões, mas já passamos por situações similares nas legislações para proteção de dados pessoas como a LPGD no Brasil e GDPR na União Europeia, onde agora há também regulamentação para a área de Inteligência Artificial exigindo supervisão por humanos para garantir segurança e respeito aos direitos fundamentais da humanidade. Particularmente, dada a desproporção entre um docente na sala de aula e um equipamento e aplicativos com milhares de pessoas envolvidas, entendo que uma intervenção governamental era necessária.
Independente dessa regulamentação de uso de “aparelhos eletrônicos portáteis pessoais” na Educação Básica, temos formas de tutorar crianças para um uso saudável desses equipamentos no dia a dia e na sala de aula, mas a grande maioria da sociedade não conhece e nem sabe usar dessa forma pois há pouquíssimo incentivo e treinamento nos métodos de uso responsável. Para tentar ajudar um pouco nessa questão, vou compartilhar uma experiência pessoal usando um aplicativo de Controle Parental [2]: programa computacional que controla horários, tempos e acessos nos equipamentos das crianças. No caso, temos uma criança de sete anos que sempre teve acesso a smartphone e tablet com restrições de tempo, horário e aplicativos, sendo que hoje ela vê esses equipamentos como mais uma forma de fazer atividades, onde inclusive para de usar para pintar, desenhar, mexer com massa de modelar, etc.; hoje o uso é livre e ela voluntariamente consulta se pode usar o “celular”, porém quando era mais nova havia limites no aplicativo de controle parental que podem ter criado um bom hábito. Não vou apresentar aqui uma fórmula mágica, pois essa não existe, mas a experiência a seguir pode ser um ponto de partida, onde cada um deverá descobrir qual a melhor configuração conforme o desenvolvimento de suas crianças e adolescentes.
Utilizamos o Family Link [3], solução para Android fornecida pelo Google, que deve ser instalado em todos os equipamentos que serão gerenciados e os que forem usados como controladores. Esse aplicativo permite uma boa gestão com controle de horário de uso a cada dia da semana, tempo máximo de uso por dia, tempo individualizado de uso de cada aplicativo, etc. No começo do uso, quando ela era novinha e ainda não distinguia que o smartphone era só um equipamento, tínhamos configura o “Intervalo” (quando não pode usar) das 19hs às 8hs, e como aparecia um desenho de lua no início do intervalo inventamos que o “celular foi dormir”, estimulando um hábito de dormir nesse horário. No “Limite diário” tínhamos configura 45 minutos por dia, exceto domingo que era 1h15m; e quando esses tempos acabavam era a vez de brincarmos com ela; infelizmente na pandemia ela só tinha a nós para brincar devido ao isolamento social, mas mesmo num cenário de normalidade se não há outras crianças pra ela brincar ou fazer atividades, temos que entrar nesse papel. Apesar do Family Link permitir uma boa gestão de aplicativos, cada um deles é um microambiente que precisa ser observado e muitas vezes bloqueado pois apresentam anúncios, alguns inadequados, e compras (mesmo para crianças pequenas). Conforme vamos descobrindo o que cada aplicativo faz, bloqueávamos alguns dizendo que o aplicativo quebrou ou deu defeito; para exemplificar, no momento que escrevo esta matéria há 46 aplicativos bloqueados e 15 aplicativos “sempre permitidos”.
Nem todos os aplicativos estarão na dicotomia permitir ou bloquear, pois alguns oferecem conteúdos diversificados, e nesse caso será necessária uma curadoria contínua de conteúdo, pois o aplicativo vai sugerindo novos canais para a criança assistir e não oferece uma boa gestão de conteúdo, talvez por ter uma função implícita de empurrar conteúdo. É o caso do Youtube, pelo menos alguns anos atrás, onde o bloqueio precisava ser individualmente por canal. Nunca vou esquecer quando após 20-30 minutos assistindo um canal em português que parecia ser educativo, sai por uns 15 minutos e quando voltei um personagem do desenho estava dizendo que “o papel da mulher era servir o homem”, fiquei horrorizado e fiz o bloqueio do canal imediatamente. Hoje o Youtube Kids (para crianças) tem o modo “Conteúdo aprovado”, onde selecionamos os canais e não serão feitas sugestões de outros. Há até o aviso de que os canais podem apresentar conteúdo novo, o que sugere que até mesmo uma big tech que precisa impulsionar conteúdo está atenta às demandas de acompanhamento de crianças no mundo digital; bem que eu gostaria que o Youtube tradicional tivesse esse recurso.
Creio que ainda estamos longe de uma regulamentação com um mínimo de recursos de controle parental e de conteúdo que todos os aplicativos e plataformas devem ter, com uma usabilidade comum para nos poupar de termos que descobrir os caminhos de configuração de cada um deles, mas é preciso que esse debate ocorra e nos leva a algo parecido às legislações sobre proteção de dados pessoais. Do lado do consumidor, disseminar o uso de aplicativos de controle parental pode ser um modo de sensibilizar políticos e empresas a aprimorarem essas demandas; até porque de alguma forma as big techs saberão o quê estamos usando. Mesmo que não tem crianças pode experimentar esses recursos como forma de organização pessoal de tempo, se bem que para adultos ferramentas contra procrastinação [4] podem ser mais interessantes; por exemplo, o ActivityWatch [5] monitora até quanto tempo ficamos nas abas de navegadores de Internet.
Apesar do sentimento comum, equipamentos e estilos de vidas são muito diversos para sugerir um ou outro aplicativo que funcione em diversos sistemas operacionais. O imprescindível é que todos leiam a Lei Nº 15.100 de 13 de janeiro de 2025 para termos um ponto de debate em comum no amadurecimento da discussão sobre a inserção da tecnologia na sala de aula; mesmo entendendo que é mais fácil criticar uma lei que nos é transparente a criticar algoritmos que ficam escondidos nas plataformas digitais, confesso que me decepciona ver um debate baseado em uma palavra da Lei e não no todo, que na minha humilde opinião está bem pensada para uma primeira versão. Espero ter oferecido caminhos para usos saudáveis de smartphones e tablets na formação de nossas crianças, e para boas discussões sobre como as tutorar no mundo digital.
Bom debate a todos!
Notas:
[*] Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2025/Lei/L15100.htm
[2] https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/deboanarede/controle-parental
https://pt.wikipedia.org/wiki/Controles_dos_pais
[3] Alternativas para outros sistemas operacionais podem ser encontradas em https://alternativeto.net/software/google-family-link/about/
[4] https://alternativeto.net/category/productivity/anti-procrastination/?license=opensource