Por Jan Cenek

Quem chega a Manaus pelo porto do rio Negro dá de frente com mural gigante. No antigo edifício do Ministério da Fazenda, de costas para a cidade – para não sentir o cheiro de mijo e de merda? para não ver as baratas, os ratos, a sujeira, a pobreza, os turistas, a prostituição, os indigentes, os igarapés poluídos e os edifícios modernosos dos bairros “nobres”? –, sentada num tronco sobre o rio Negro, uma menina indígena observa o horizonte com um olhar taciturno. Atrás da menina – no mural – se vê a selva amazônica, mais ou menos como devia ser o espaço antes da construção de Manaus. É o mesmo verde que enxerga quem está na cidade e olha para a mata do outro lado do rio Negro. O mural com a menina indígena foi elaborado pelo grafiteiro Jarbas Lobão com o apoio dos artistas Sprok, Panda e Luan. Eles se inspiraram numa fotografia de Michel Mello registrada no Alto Rio Negro há mais ou menos 10 anos. A menina fotografada chama-se Mirión – “Rainha das Águas” na língua Desana – e tem, atualmente, 17 anos [1]. No Google Maps é possível localizar o trabalho buscando Mural Mirión – Guardiã de Manaós.

No centro de Manaus há diversos murais interessantes, inclusive alguns gigantes, que ocupam toda empena (parede sem janelas) de grandes edifícios, como no antigo prédio do Ministério da Fazenda. Imagino que o movimento começou durante a pandemia da Covid-19. Isso porque o trabalho mais antigo parece ser um que retrata trabalhadores que estiveram na linha de frente durante a pandemia – profissionais da saúde, motoboys, motoristas, garis – e registra uma mensagem de esperança: “isso tudo vai passar”. A impressão de que o mural com os trabalhadores que estiveram na linha de frente durante a pandemia é o mais antigo se explica porque o trabalho é o que está mais desgastado.

Curiosamente, quem sai do porto fluvial no centro de Manaus, vira à direita e caminha pela avenida Floriano Peixoto passa pelo mural com a menina de olhar taciturno e, poucos metros depois, vê outro mural: uma jovem guerreira indígena está dentro do rio Negro, segura uma lança e observa com o mesmo olhar taciturno. Também a guerreira está de costas para Manaus. Talvez pelas mesmas razões apontadas anteriormente. O mural com a guerreira indígena foi elaborado por Alessandro Hipz na empena do antigo hotel Amazonas, a partir de um registro fotográfico feito pelo próprio artista em São Gabriel da Cachoeira, representa uma Guardiã da Amazônia [2].

Os olhares da menina e da guerreira indígenas representadas nos murais impressionam. São as imagens que mais me impactaram em Manaus, apesar do encontro das águas do Negro com o Solimões e tantas outras preciosidades da natureza amazônica. A menina e a guerreira indígenas foram fotografadas na mesma região, mas não são a mesma pessoa. Só que, expostas a poucos metros de distância uma da outra, é como se fossem a mesma mulher separada por alguns anos. O olhar é parecido. Nenhuma das duas sorri. Estão de costas para a cidade. O descontentamento e a preocupação registrados nos olhos de ambas contrastam com os sorrisos forçados presentes nas fotos dos turistas. É como se a menina e a guerreira conhecessem o destino que as aguarda, daí o olhar taciturno. Quem chega em Manaus pelo porto fluvial e caminha pela avenida Floriano Peixoto vê a pequena Mirión e, na sequência, a jovem guerreira, fica com a impressão de que a menina cresceu e se tornou uma Guardiã da Amazônia. Como se fossem a mesma pessoa. Como se os murais representassem a mesma guerreira em momentos distintos. Como se o nome da Guardiã da Amazônia fosse Mirión.

Walter Benjamin [3] comentou uma foto do menino Franz Kafka: os olhos incomensuravelmente tristes dominavam a paisagem feita sob medida para eles, contrastavam com as primeiras fotografias, nas quais não se via um olhar perdido e desolado, como o do jovem Kafka. No caso das Guardiãs da Amazônia representadas nos murais de Manaus, o olhar taciturno não espanta pela originalidade, ele pode ser observado em toda a cidade: nos passageiros dos coletivos, nos venezuelanos que trabalham nos piores empregos, nos camelôs do centro, nas prostitutas da região portuária, nos indígenas que encenam rituais para os turistas fotografarem, nas pessoas estendidas em redes amarradas nos barcos, nos indigentes que dormem na calçada do mercado municipal Adolpho Lisboa. As Guardiãs da Amazônia representadas nos murais são as imagens que mais me impactaram em Manaus justamente porque aqueles olhares estão espalhados por toda a cidade.

O pixo [4] me atrai mais que o grafite: não pela potência estética, mas pela carga de subversão que carrega e pelo incômodo que causa. O incômodo causado pelo pixo lembra o incômodo que se vê nos olhos dos habitantes das grandes cidades. Curiosamente, o primeiro incomoda e o segundo não. Como se o incômodo no olhar das pessoas fosse um problema privado. Não é coincidência: quanto maior a cidade, maior a presença do pixo. Apenas as cidadezinhas do interior desconhecem as pixações, provavelmente porque não estão expostas ao incômodo das grandes aglomerações urbanas e, além disso, porque os pixadores não querem suas “obras” expostas para públicos reduzidos.

Manaus é uma metrópole encravada na selva. Tem muitas ligações fluviais e poucas estradas de rodagem. Recebe turistas do mundo inteiro, especialmente europeus. Tem muitos imigrantes haitianos e, principalmente, venezuelanos. Como não poderia deixar de ser, o pixo está presente em Manaus porque o incômodo está espalhado pela cidade: das antigas construções do centro aos edifícios modernosos dos bairros abastados. Mas, para mim, foi o olhar taciturno das Guardiãs da Amazônia que melhor representou o incômodo que se sente e que se vê em Manaus. É a imagem que guardo da cidade.

Mural de Jarbas Lobão registrado da avenida Floriano Peixoto
Mural de Jarbas Lobão registrado de dentro de um barco, no rio Negro
Mural de Jarbas Lobão registrado da avenida Eduardo Ribeiro
Mural de Alessandro Hipz registrado da avenida Floriano Peixoto
Mural de Alessandro Hipz registrado da avenida Marques de Santa Cruz

Notas

[1] Amarilis Gama. Um retrato da Amazônia: Mural gigante celebra a cultura indígena no Centro de Manaus. Disponível em: https://www.acritica.com/entretenimento/um-retrato-da-amazonia-mural-gigante-celebra-a-cultura-indigena-no-centro-de-manaus-1.347438
[2] Manuella Barros. Guardiã da Amazônia é estampada no Centro Histórico nos traços de Alessandro Hipz. Disponível em: https://cultura.am.gov.br/guardia-da-amazonia-e-estampada-no-centro-historico-nos-tracos-de-alessandro-hipz/
[3] Walter Benjamin. Pequena história da fotografia. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas – Magia técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
[4] Registrei pixo, pixações e pixadores com x pelas razões expostas no texto São Paulo: a capital do pixo.

1 COMENTÁRIO

  1. Jan Cenek, achei oportuna sua percepção do olhar taciturno das personagens nos painéis da cidade. Porque parece ter capturado um traço da metrópole. Nada mais natural ao artista que representar a naturalidade que vê na paisagem da cidade e no olhar das pessoas. Seria a expressão taciturna dos painéis gigantes na cara dos edifícios o olhar estrangeiro das vidas nativas sobre o avanço da intrusa selva de pedra civilizada sobre a floresta ancestral? Seja como for seu relato demonstra que a população urbana compartilha o mesmo olhar e a mesma preocupação.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here