Por M. Ricardo de Sousa
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, e a guerra que seguiu vai marcar decisivamente a nossa época. É certo que mesmo depois da II Guerra Mundial os conflitos bélicos, invasões e enfrentamentos armados não pararam no mundo, principalmente nas periferias. Em muitos deles tiveram papel de destaque as superpotências da Guerra Fria e em particular os EUA. Apesar disso a vitória coube na maioria dos casos aos povos que se queriam livrar dos poderes coloniais e imperiais, não conseguindo os EUA e os países coloniais europeus, ou a URSS, impor a sua supremacia militar pela força das armas. É verdade, que passados todos estes anos sabemos que a independência nacional era uma miragem, num sistema capitalista tentacular e global, e a libertação dos povos implodiu internamente com a recomposição de classes dirigentes e elites saídas das lutas pela independência e isso vale para a Argélia, as ex-colónias portuguesas ou para o Vietname.
Apesar de tudo isso poucos esperavam, no final do século XX, que a Rússia reconstruída sobre um modelo autoritário e oligarca capitalista, ideologicamente reaccionária e imperial, mas decadente do ponto de vista económico e tecnológico, pudesse vir a se constituir como nova ameaça para os estados resultantes da implosão da URSS. No entanto, algumas décadas após os anos 90, a Rússia, ou melhor sua elite oligárquica reaccionária comandada por Putin, o ex-funcionário comunista, tomou a iniciativa de ir intervindo e condicionando os novos países da sua região até à invasão maciça da Ucrânia em que procurou derrubar o governo e submeter de forma duradoura esse país à sua órbita geoestratégica. O resultado está à vista: centenas de milhares, talvez milhões, de mortos e estropiados, cidades e campos destruídas, milhões de deslocados, uma crise económica, crescimento do militarismo, expansão da NATO, corrida aos armamentos, o caos e imprevisibilidade nas relações internacionais.
Face a tudo isto, a chamada esquerda de tradição anticapitalista dividiu-se e uma parte dela, a mais institucional e de referência leninista tomou o partido do invasor, da Rússia, aceitando os seus argumentos que justificavam o desencadear da guerra: a existência de comunidades russas na Ucrânia que se queriam ligar à Federação Russa, o nazismo dos governantes ucranianos, a expansão da NATO e, acima de tudo, o velho e agressivo imperialismo dos EUA. Bastava olhar para a NATO em coma, a falta de apoio ao militarismo na Europa, com as despesas militares em queda permanente, a decadência e desinteresse norte-americano no Velho Continente, a relevância da extrema direita na Rússia, para perceber que a realidade era então bem diferente daquela visão anti-imperialista de uma esquerda parada nos anos 60/70.
Mesmo assim o discurso dos rebuscados argumentos geoestratégicos e políticos putinistas afirmaram-se entre essa esquerda que justificava a rendição e submissão do povo ucraniano ao expansionismo russo, algumas vezes usando um pacifismo cínico na retórica.
Passados estes três anos de guerra, recordemos que a Grande Guerra que começou o século XX durou quatro anos, uma nova realidade foi criada pela reeleição de um presidente populista e reaccionário nos EUA. A política externa norte-americana agora é de paz imediata. Os seus interesses económicos e de política externa não são compatíveis com a continuidade de conflitos destrutivos, perigosos e violentos como os que ocorrem na Europa e na Palestina, por isso há que impor o rápido cessar dessas guerras a todo o custo. Para isso usa-se a pressão, a ameaça e a chantagem. Mesmo que o negócio das armas seja bom para o complexo militar, a economia capitalista vive da produção muito diversificada de produtos e serviços, que só podem ser consumidos em sociedades pacificadas onde se possam transacionar continuamente as mercadorias. Os impérios podem conviver com a guerra nas suas fronteiras e na periferia, mas não no seu interior.
Quanto à Ucrânia agora é Trump a evocar os argumentos de Putin numa curiosa coincidência mas a que não é estranha a vontade comum de submeter o povo ucraniano a um novo tratado geoestratégico onde só contam os interesses das duas potências: Rússia e EUA. Sob o olhar astuto e silencioso da ascendente potência distante, a China. As consequências deste processo, ainda em andamento, são imprevisíveis e como isso vai contribuir para reforçar o militarismo na Europa, o autoritarismo expansionista da Rússia, uma crise terminal da União Europeia, e um novo impulso ao poder da burocracia chinesa não se pode ainda adivinhar. Mas não há dúvida que vão sair reforçados desta invasão Russa da Ucrânia o militarismo, uma nova corrida aos armamentos, o expansionismo das superpotências, as correntes políticas autoritárias e reaccionárias, como ainda agora se confirma pelo crescimento da AfD na Alemanha (também eles defensores do Putinismo), e acima de tudo a afirmação dos poderes imperiais contra os interesses dos povos seja por via da intervenção militar, seja por via da intervenção económica.
Não cabe aos libertários tomar o partido nas guerras entre Estados ou alinhar com as classes dominantes de um país, nem sequer formular a estratégia a usar pelos povos agredidos, mas cabe-lhes a solidariedade com os povos e classes dominadas vítimas das guerras e agressões, desenvolvendo uma reflexão e acção crítica autónoma e independente dos donos do Poder. Esta constatação óbvia não parece ser hoje unânime, nem sequer popular.
Por tudo isto pode-se concluir que esta esquerda Putinista, sem princípios, cínica, pragmática e maquiavélica, que agora tem Trump, Orbán e Weidel, por aliados, acelerou a sua corrida para o abismo, tornando-se cada vez mais insignificante e incapaz de sustentar um projecto autónomo distinto do das elites e classes dominantes que gerem o capitalismo nas suas diversas formas. Esta velha esquerda, parlamentar e extra-parlamentar, está morta, só falta enterrá-la de vez para não termos de respirar o ar putrefacto que emana do seu cadáver.
Há um paradoxo curioso, e surpreendente, na nossa época, os conservadores, mesmo a sua extrema-direita, tem redefinido sistematicamente as suas ideias económicas, políticas e sociais. Muito pouco resta do seu liberalismo e pensamento político de há cem anos. Já os revolucionários anticapitalistas mantém-se agarrados aos seus dogmas, às mesmas teorias e práticas dos seus antepassados. Isto vale para marxistas, leninistas e anarquistas.
Que fazer?, perguntava-se, em 1902, um dos responsáveis do desastre histórico que está na génese da Rússia actual. Precisámos urgentemente de uma alternativa ao existente. Mas qual, perguntámos nós sobreviventes do desastre em pleno século XXI. Talvez essas ideias, e práticas, de que necessitámos estejam ainda a germinar nesse velho caldo de cultura anticapitalista. Uma coisa é certa, as do longo século XIX, que se encerrou nos anos 90 do século passado, parecem já não nos servir.