Por Jan Cenek

Participei de dois grupos de estudos. Um filosófico. Outro literário. O primeiro discutiu a Ética [1], de Baruch Espinoza. O segundo discutiu O alienista [2], de Machado de Assis. Fiz uma primeira leitura da Ética. Reli pelo Alienista. Li novamente a Ética. As leituras dissonantes sugeriram algumas aproximações.

Machado de Assis escreveu um soneto dedicado a Baruch Espinoza. O romancista imagina o filósofo “grave e solitário, sob o fundo de esquálida candeia”, com uma “ideia coruscante” na cabeça. Imagino Machado de Assis mais ou menos na mesma situação que Baruch Spinoza. A diferença é que, enquanto o filósofo parte de deus/natureza, passa pela mente para pensar como regular os afetos, superar a servidão e conquistar a liberdade/beatitude; o romancista usa a imaginação – no sentido romanesco e não no sentido espinozista – para recriar o mundo expondo os afetos mais escondidos e, assim, provocar o riso. Imaginar, para o filósofo, é considerar outros corpos “por meio das ideias das afecções” [3] do nosso próprio corpo. É um conhecimento limitado. Imaginar é o recurso mais precioso para um romancista, é imaginando que ele recria o mundo e os homens, inclusive desnudando e expondo os afetos mais inconfessáveis. Espinoza contrasta ideias adequadas e inadequadas em busca da beatitude, que é uma perfeição maior, uma “satisfação do ânimo” [4], um encontro da liberdade com a necessidade, uma espécie de alegria da razão que consiste em compreender e estar de acordo com a natureza das coisas e de si. É razoável pensar – e não está errado – que Machado de Assis escreveu uma obra irônica e cética para denunciar as misérias de seu tempo. Mas minha sensação é que, além disso, o “Bruxo do Cosme Velho” buscou o riso para se divertir e divertir expondo o que Espinoza definiria como ideias inadequadas e afetos tristes, que reduzem a capacidade de agir e conduzem a uma perfeição menor. Vale registrar, inicialmente, que o filósofo criticaria o divertimento do romancista. Espinoza aprova o riso alegre, sem excessos, o mesmo não se aplica à irrisão, ao escárnio, ao riso debochado, ou seja, não se aplica ao que Machado de Assis faz de melhor. A zombaria machadiana não combina com a beatitude espinozista. Em síntese. Espinoza: compreender para estar de acordo com a natureza das coisas e de si. Machado: compreender para se divertir com a natureza das coisas, dos homens e, por que não?, de si mesmo. Espinoza: beatitude. Machado: riso.

Entre os afetos tristes, que reduzem a capacidade de ação conduzindo a uma perfeição menor, Espinoza incluiu o ódio, a aversão, o medo, o desespero, a decepção, a desconsideração, a inveja, a soberba, a ira, a vingança, a crueldade, o temor, a covardia, o pavor, a ambição, a gula, a avareza, a luxúria. Há outros afetos tristes, listei apenas os que estão mais presentes em Machado de Assis e no Alienista. Como seria um mundo dominado por ideias inadequadas e por afetos tristes? É onde entra Machado de Assis e O alienista, mas poderia ser Memórias Póstumas de Brás Cubas [5], Quincas Borba [6], Dom Casmurro [7], Esaú & Jacó [8], Memorial de Aires [9] e os contos [10] do “Bruxo do Cosme Velho”. Partindo da Ética de Espinoza, pode-se dizer que a literatura machadiana é o reino das ideias inadequadas e dos afetos tristes. É difícil encontrar retidão moral e ações virtuosas nos personagens de Machado de Assis. No Alienista, por exemplo, há apenas a coerência da esposa do boticário Crispim Soares. Ela exige que o marido fique ao lado do amigo alienista, Simão Bacamarte, quando explode uma revolta contra as internações compulsórias. Além dela, há o vereador Galvão, que se posiciona contra uma lei corporativista que vedava o recolhimento de membros da Câmara. Como não poderia deixar de ser, a esposa do boticário e o vereador Galvão foram internados no “asilo dos alienados” [11] quando o alienista passou a acreditar que os normais eram desequilibrados.

Ler a Ética não é tarefa simples. A “meticulosa ordem geométrica” [12] da exposição não facilita para os leitores. É preciso ir e voltar. A sensação inicial é de não entender quase nada, especialmente na primeira parte, intitulada Deus. Isso porque o pensamento de Espinoza é muito diferente do que se pensava e do que ainda se pensa. A Ética gira em torno dos afetos, que são as “afecções do corpo” que aumentam ou diminuem a potência de agir: “quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão” [13]. A ação aumenta a potência do ser. A paixão reduz a potência do ser. Quem sobrevive e prossegue na leitura da Ética percebe que as ideias vão se encaixando: “A nossa mente, algumas vezes, age; outras, na verdade, padece. Mais especificamente, à medida que tem ideias adequadas, ela necessariamente age; à medida que tem ideias inadequadas, ela necessariamente padece.” [14] Eu tinha uma visão de Espinoza muito moldada pelas leituras que fiz de André Comte-Sponville [15]. O contato direto com a Ética foi interessante. Por exemplo, Comte-Sponville confere sentido “neutro” ao desespero, que “é o grau zero da esperança”, trata-se de não esperar absolutamente nada, para, dessa forma, evitar frustrações; Espinoza [16] confere sentido negativo ao desespero, que surge “da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi afastada toda causa de dúvida.” É que o primeiro, apesar de reconhecer a importância e a grandeza do segundo, vai por outros caminhos, aproxima-se de uma espécie de budismo, desconfia da esperança e dos desejos. Não é o que se lê na Ética. Para Espinoza [17], “o desejo é a própria essência do homem”, e “o desejo que surge da alegria é, em igualdade de circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza.” O filósofo sustenta, na Ética, que não se trata de abolir os afetos, o que seria impossível; a questão é regulá-los por meio da razão, superando a servidão e conquistando a liberdade/beatitude. Uma metáfora relacionada à profissão de Espinoza: a razão é uma lente que permite enxergar os afetos. Servidão: submissão aos afetos. Liberdade: obedecer a si próprio, ser conduzido pela razão, regular os afetos, estar em acordo com a natureza das coisas e de si mesmo. Quem resiste e conclui a leitura da Ética experimenta uma espécie de alegria do entendimento, que consiste em acompanhar o filósofo na delimitação da impotência e da potência humana.

Reler O alienista entre as duas leituras que fiz da Ética foi um acaso interessante. Um bom encontro. Isso porque Machado de Assis explora, diverte e se diverte com a impotência humana, as ideias inadequadas e os afetos tristes. Para quem leu O alienista entre as duas leituras que fez da Ética fica parecendo que o romancista ilustra o que o filósofo definiu como submissão aos afetos (servidão). Vale registrar que O alienista começou a ser publicado como folhetim, em outubro de 1881, na revista A estação, que circulou entre 1879 e 1904. A estação tinha um suplemento literário e um caderno de moda, que era a tradução de uma revista alemã. Certamente não foi por acaso que Simão Bacamarte, o alienista, internou a própria esposa, Dona Evarista [18]: que padecia da moléstia “das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas”; que se propôs “a fazer um vestido para a imagem de Nossa Senhora da Matriz” e, pior, que passou um dia inteiro, a madrugada inclusive, absolutamente incapaz escolher “um colar de granada” ou “outro de safira” para usar no baile da Câmara Municipal. O que é isso senão caçoar dos leitores, especialmente das leitoras que acompanhavam a revista? Quantas leitoras padeciam da moléstia “das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas”? Quantas leitoras haviam se sentido absolutamente incapazes de escolher “um colar de granada” ou “outro de safira”? Quantas leitoras seriam internadas pelo alienista? Quantas leitoras da revista A estação se assemelhavam à Dona Evarista? Mas a zombaria do “Bruxo do Cosme Velho” não se limita à esposa do alienista e às leitoras da revista A estação. Crispim Soares, boticário e amigo íntimo do alienista, não hesitou em se ausentar quando explodiu a revolta contra as internações, com medo e sem encontrar alternativas [19]: “declarou-se doente meteu-se na cama.” Pior, com medo de ser preso por ser cúmplice do alienista, Crispim Soares contrariou os conselhos da esposa e procurou os revoltosos e não o amigo. Em vez de ir à casa do alienista, o boticário foi até o palácio do governo apresentar “seus protestos de adesão” [20]. O boticário Crispim Soares é a encarnação de afetos tristes, como o medo, o temor e a covardia. Porfírio, barbeiro e líder da rebelião contra as internações, viu no levante a grande chance de materializar sua “ambição de governo” [21]: “pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrotando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca.” Pior, quando consegue tomar o poder, Porfírio não ordena nem a demolição da Casa Verde nem a prisão de Simão Bacamarte, o barbeiro se limita a visitar e negociar com o alienista. Porfírio é a encarnação da ambição, mais precisamente da “ambição de governo”. Quando o alienista mudou de ideia e passou a considerar que os normais eram desequilibrados, os vereadores da Câmara Municipal de Itaguaí legislaram e autorizaram o recolhimento dos cidadãos “que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais” [22], com a ressalva de que nenhum vereador poderia ser internado no “asilo dos alienados”. O medo foi o afeto triste que fisiologicamente governou os vereadores itaguaienses. Simão Bacamarte, o alienista que internou quase todos os cidadãos de Itaguaí, também era governado por afetos tristes, como a soberba (“fazer de si mesmo, por amor próprio, uma estimativa acima da justa” [23]) e a ambição (“desejo imoderado de glória” [24]).

Espinoza [25] diria que a alegria de Machado de Assis “não é sólida”. Isso porque o escárnio “é uma alegria que surge por imaginarmos que há algo que desprezamos na coisa que odiamos”. Explicação do filósofo: “à medida que desprezamos a coisa que odiamos, negamos a sua existência e, dessa maneira, alegramo-nos. Como, entretanto, por hipótese, o homem, ainda assim, odeia o objeto de seu escárnio, segue-se que essa alegria não é sólida.” Será? Rir talvez alivie o ódio e o desprezo, é um caminho por percorrer, uma ideia a desenvolver. Com a Ética na cabeça, precisando ler novamente o texto para melhor compreender o pensamento de Espinoza; reli e me diverti com O alienista. Mas não parei no riso e na alegria. O romancista colocou uma pulga atrás da minha orelha. Qual o espaço para o riso na Ética? Foi com essa pergunta na cabeça que reli o texto de Espinoza. O filósofo tolera e aprova o riso alegre, de contentamento, sem excessos [26]; o mesmo não se aplica ao escárnio, porque “quem compreendeu corretamente que tudo se segue da natureza divina e se faz segundo as leis e regras eternas da natureza, não encontrará, certamente, nada que seja digno de ódio, de riso ou de desprezo” [27]. Não poderia ser diferente. Para Espinoza, a beatitude é uma perfeição maior, uma “satisfação do ânimo” [28], uma alegria da razão que surge do encontro do ser com a existência, da liberdade com a necessidade. A ideia é interessante e sedutora. Mas tem um limite. A beatitude não deixa espaço para o escárnio e o riso contagiante – de desaprovação – que surge do desencontro do ser com a existência, do prazer de zombar de absolutamente tudo, inclusive de Deus, da natureza, dos homens e de si mesmo.

Notas

[1] Baruch Espinoza. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.

[2] Machado de Assis. O alienista. Rio de Janeiro: Editora Três, 1972.

[3] Espinoza, op. cit., p. 74.

[4] Espinoza, op. cit., p. 233.

[5] Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 2016.

[6] Machado de Assis. Quincas Borba. São Paulo: Klick Editora, 1997.

[7] Machado de Assis. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1971.

[8] Machado de Assis. Esaú e Jacó. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.

[9] Machado de Assis. Memorial de Aires. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.

[10] Machado de Assis. Contos essenciais. São Paulo: Martin Claret, 2019.

[11] Machado de Assis, 1972, op. cit., p. 238.

[12] Espinoza, op. cit., p. 168.

[13] Espinoza, op. cit., p. 98.

[14] Espinoza, op. cit., p. 99.

[15] André Comte-Sponville. Tratado do desespero e da beatitude. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[16] Espinoza, op. cit., p. 144.

[17] Espinoza, op. cit., p. 168.

[18] Machado de Assis, 1972, op. cit., p. 233.

[19] Machado de Assis, 1972, op. cit., p. 227.

[20] Machado de Assis, 1972, op. cit., p. 228.

[21] Machado de Assis, 1972, op. cit., p. 220.

[22] Machado de Assis, 1972, op. cit., p. 238.

[23] Espinoza, op. cit., p. 146.

[24] Espinoza, op. cit., p. 150.

[25] Espinoza, op. cit., p. 143.

[26] Espinoza, op. cit., p. 186.

[27] Espinoza, op. cit., p. 189.

[28] Espinoza, op. cit., p. 233.

2 COMENTÁRIOS

  1. Muito boa análise, poderíamos ler O Alienista para um debate, certamente confeontaríamos uma série de chistes psicossocial digno de nós fazer pacientes do dr Alienista. Rsrs

  2. Boa sacada essa da relação entre o riso no pensamento do filósofo holandês e na obra do escritor brasileiro. O escritor o explora melhor em seus romances e contos que o filósofo em seu tratado ético, cuja modesta atenção ao riso chama a atenção. Schopenhauer diria, como disse acerca do largo espaço que o inferno teve, em relação ao Paraíso, na Divina Comédia de Dante, que isso se deve ao fato de que o escritor teve farto material a seu dispor. O riso zombeteiro da poesia, que já fora expulsa do Paraíso na antiguidade grega, volta a incomodar o logos organizador e é quase ignorada. Mas acho que para o filósofo, assim como para o poeta, a metafísica do riso é uma consequência de se acordar mal disposto.

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