“Tudo é de todos, nada é de ninguém”

Cia. Do Tijolo em Restinga de Canudos.

“Para todos todo. Nada para nosotros”

Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Por João Martins

Esta breve reflexão sobre o espetáculo Restinga de Canudos é leitura particular, situada e movida pela curiosidade, sobre uma criação que nos inquieta. Pode até se enquadrar no que se convencionou chamar de crítica teatral, mas essa não é a proposta.

Restinga de Canudos é uma leitura a contrapelo, no termo proposto por Walter Benjamin (1994), da Revolta de Canudos, tendo como referência primordial o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. A companhia busca fomentar uma reflexão crítica em torno do papel de Euclides da Cunha como narrador e intérprete privilegiado do massacre promovido pelo exército brasileiro no final do século XIX, articulando essa análise com o advento da República, as percepções das classes populares sobre esse regime e o cotidiano de Canudos, chamada por seus habitantes de Belo Monte.

Esse texto se apoia, portanto, no espetáculo, não na obra literária, e se debruça a pensar três aspectos intimamente interligados: a concepção de “outro”, expressa na famosa frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, a visão sobre progresso de Euclides e dos militares à época e como Canudos é apreendida como uma experiência de organização social que não cabia nos moldes da monarquia portuguesa e nem da república militar.

O espetáculo aborda a história de Canudos, mas não sob o olhar de Euclides da Cunha. A narrativa é conduzida por duas professoras, que, em tempos de conflito, foram também guerrilheiras. As personagens mostram como era Belo Monte por dentro, pelo seu dia a dia, na construção de outros modos de existência onde a autogestão política e econômica era realizada por uma confluência de povos que cotidianizavam uma revolução e revolucionavam um cotidiano. As professoras têm um outro papel central na cena: são figuras reflexivas que dialogam tanto com o literato quanto com a plateia, rompendo a quarta parede e convidando o público a refletir criticamente sobre o acontecimento através de paralelos com o mundo contemporâneo, como por exemplo na pergunta: “O que vocês pensariam se, hoje, aparecesse um homem no sertão baiano dizendo ser um líder religioso que libertará seu povo?”.

A peça se inicia com os atores relembrando quando e como ouviram falar de Canudos ou de Antônio Conselheiro pela primeira vez. A partir dessas memórias a peça nos provoca a questionar a narrativa consagrada de Euclides, mas também revela Canudos como a construção concreta de um outro mundo possível, para além da dicotomia entre república militar burguesa e monarquia portuguesa.

A Proclamação da República foi um evento militar que depôs a monarquia sem a participação popular — e sem sequer o conhecimento da população sobre o que estava acontecendo. Consolidou-se, assim, um regime que manteve o povo à margem das decisões políticas. Essa crítica aparece de forma contundente numa cena ambientada em uma birosca em Salvador. Trabalhadores comentam que o 15 de novembro de 1889 marca, para eles, a inauguração da birosca — um evento mais significativo do que a própria Proclamação da República. Nessa mesma cena, de maneira metafórica o dono do estabelecimento decide mudar o nome de “Birosca do Império” para “Birosca da República”, ironizando a transição de regime e mostrando como a república brasileira, assim como tantos outros marcos históricos promovidos pelo Estado nacional, foi um acontecimento conduzido de cima para baixo. Em seguida, um ator, trabalhador nesta cena, dança sobre a porta da “Birosca da República”. A cena sintetiza ironicamente a ideia de uma “república à brasileira”, condensando o que Roberto Schwarz chamou de ideias fora do lugar.

Com o estabelecimento da república e os ataques subsequentes, os moradores de Belo Monte compreendem que a construção deste mundo, capitalista e orientado pelo ideal de unificação nacional sob a ordem e o progresso, depende de sua exclusão e se põe a lutar. O espetáculo apresenta os preparativos de resistência de parte dos moradores de Canudos diante da iminência da guerra. Os preparos são em tom de festejo e luta, o que trazem uma beleza para a cena explicitando a organicidade dessa relação, tão difícil de ser elaborada no teatro. Em cena, a personagem de Euclides da Cunha explicita seu enquadramento binário da situação e sua defesa do empreendimento militar, resumidas em: se não são republicanos, são monarquistas.

Como militar à época, Euclides é retratado como defensor de um projeto de progresso contra o suposto atraso representado por Canudos. Podemos traçar um paralelo entre sua visão e a de um personagem que representa um militar, uma figura que encarna o pensamento republicano oficial do período, mas que também revela dilemas mais amplos relacionados aos projetos civilizatórios modernos, sejam eles de viés conservador ou progressista.

O lema “Ordem e Progresso”, estampado na bandeira do Brasil, é um desdobramento direto da máxima de Auguste Comte: “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim.” A “ordem” significava a manutenção da organização social por meio da disciplina, da hierarquia e da obediência às leis. O “progresso” era o horizonte último, a ser alcançado por meio da ciência, da técnica e da razão. Por mais que o literato tenha alterado sua percepção após a guerra, denunciando em vez de buscar relatar tão somente, sua percepção de mundo ainda permanece um tanto quanto positivista.

Nesse contexto, Canudos representava a negação tanto da ordem quanto do progresso. Era, portanto, percebida como uma ameaça que precisava ser eliminada.

Ao evitar uma abordagem ahistórica e situar Euclides da Cunha como um sujeito de seu tempo, a peça propõe diálogos e interações ficcionais entre o escritor, Antônio Conselheiro e personagens da comunidade. Com isso, não justifica suas posições, tampouco o isenta de responsabilidade. Pelo contrário, compreende Euclides como alguém que foi, ao mesmo tempo, reprodutor de estruturas sociais históricas, portanto de ideologias e representações sociais, e agente social com papel político-literário significativo, moldando simbolicamente o imaginário sobre Canudos por décadas — senão por um século.

Ela se refere, por exemplo, a representação social do “outro” que oscila entre etnocentrismo e relativismo cultural, ambas operam como mecanismos de distinção ontológica entre um “eu” — visto como complexo e heterogêneo — e um “outro” — concebido como homogêneo e coeso. Essa frase precisa ser pensada a partir da desilusão de Euclides com os rumos da República. Nesse contexto, a célebre frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” expressa a oscilação de sua escrita entre dois polos: de um lado, uma abordagem racista e colonialista, que adota uma medida universal para julgar outras culturas, classificando como atrasado e inferior tudo aquilo que dela diverge; de outro, uma tentativa de reconhecer que cada cultura deve ser compreendida a partir de seus próprios termos. No entanto, ao dar forma a essa segunda perspectiva, Euclides acaba por fixar o sertanejo numa ontologia essencialista — como sujeito homogêneo, imutável, desprovido de contradições e cristalizado fora da história.

Nesta segunda lógica, a diferença cultural adquire um caráter de evidência naturalizada, relegando o “eu” ao campo das possibilidades e do devir, e o “outro” ao campo da cristalização e da essencialização. Incorre-se também no risco de reforçar a construção de um “outro” como figura distinta, separada e, por vezes, antagônica — seja no texto ou em cena. Como afirma a autora americana-palestina Lila Abu-Lughod:

Mas apesar de sua intenção anti-essencialista, o conceito de cultura mantém certas tendências a cristalizar diferenças, algo que conceitos como raça também fazem. Isso se torna mais evidente se observarmos um campo em que a mudança tenha se dado de um conceito para o outro. O orientalismo como discurso acadêmico (entre outras coisas) é, de acordo com Said (1978, p. 2), “um estilo de pensamento baseado em uma distinção lógica e epistemológica feita entre ‘o Oriente’ e (na maior parte das vezes) ‘o Ocidente’”. O que ele mostra é que, ao cartografar conjuntamente geografia, raça e cultura, o orientalismo fixa certas diferenças entre pessoas “do Ocidente” e pessoas “do Oriente” de maneiras tão rígidas que podem facilmente ser consideradas inatas. No século XX, foi a diferença cultural, e não a raça, que serviu de objeto básico para o intelectualismo orientalista, agora devotado a interpretar o fenômeno “cultura” (fundamentalmente religião e linguagem) ao qual se atribuíam as diferenças de desenvolvimento, desempenho econômico, governança, caráter e tantas outras. (ABU-LUGHOD, 2018, p.200).

Ao se deparar com a sentença de Euclides, o espetáculo propõe enfrentar os limites e contradições do relativismo cultural. Uma das formas de fazê-lo é ao afirmar, por exemplo, que em Canudos não havia um único povo, mas sim múltiplos povos em confluência, articulando formas de autogestão política e econômica, e explicitando pelo elenco que a identidade sertaneja é plural.

Soma-se a isso outra dimensão de importância poética e política: a crítica à ideia de progresso e de modernização de orientação comtiana que atravessa a Proclamação da República e também alimenta a visão de Euclides da Cunha. O espetáculo evidencia esse aspecto ao destacar a defesa intransigente, por parte do autor, do progresso da ciência e da suposta inexorabilidade do processo histórico. Em sua lógica, se Canudos não tivesse sido exterminada diretamente pelas forças militares, seria, inevitavelmente, destruída de forma indireta pelo avanço do processo civilizatório, orientado pela modernização do capital e pela consolidação do Estado nacional. No entanto, uma leitura teleológica incorre no equívoco de traçar trajetórias previamente definidas para o processo histórico, limitando a compreensão do protagonismo popular e da luta de classes como forças ativas e transformadoras. Certamente, experiências contra-hegemônicas são frequentemente silenciadas, ora pela violência direta, como o extermínio e o massacre, ora pelo esvaziamento lento e brutal de suas condições de existência, através da expropriação do trabalho e dos contínuos regimes de desapropriação dos meios de vida. Ainda assim, reconhecê-las como espaços, ainda que temporários, de construção de outros mundos possíveis é essencial para que possamos aprender com os erros históricos e elaborar programas e estratégias mais afinadas com os desafios do presente.

Então por que encenar Canudos agora? A Companhia do Tijolo apresenta uma leitura de Canudos que não é apenas dissidente, mas carrega um teor antiestatista e anticapitalista, projetando-se como horizonte possível para as lutas do presente, especialmente em um contexto de crise do imaginário radical da esquerda. Essa crise se expressa tanto na atuação da esquerda dentro dos marcos burgueses e liberais — como a defesa da democracia (burguesa, vale dizer) e de um sistema judiciário racista e elitista, quanto na crescente descrença na possibilidade de transformações radicalmente estruturais. Walidah Imarisha (2022) nos lembra que, para construir uma nova sociedade, é preciso antes ser capaz de imaginá-la — e esse exercício exige uma ficção visionária, radicalmente distinta da estética e dos signos que predominam no presente.

Remontar e retomar experiências como a de Canudos — ainda que marcadas por contradições — significa retomar experiências solidárias, autogestivas, horizontais, pautadas no apoio mútuo e que em alguma instância passam por um mediação com as esfera do simbólico, religioso, espiritual ou quaisquer outros nomes que prefiram dar, assim como muitas revoltas que ocorreram no Brasil. Estima-se que mais de 20 mil pessoas tenham vivido em Canudos, construindo uma experiência coletiva que desafia os moldes do Estado e do capital. Olhar com atenção para esse passado é levar a sério a provocação de Ailton Krenak de que “o futuro é ancestral”, não se contentando apenas com uma disputa de narrativas de reelaboração a contrapelo pelo da história, mas olhar e retomar para ter fôlego para confeccionar uma luta política coletiva que prefigure outros modos de produção material e simbólica.

Por fim e retomando o início da peça, o elenco oferece ao público cuscuz com leite de coco — gesto simples e poderoso que anuncia a fartura onde a vida vale mais do que o dinheiro, onde a partilha suplanta a escassez e a concorrência. Nesse ato, revela-se Canudos como experiência de comunhão, de construção coletiva. Afinem os olhos, despertem os sentidos: é nesse território sensível que Restinga de Canudos nos provoca.

 

Referências

Para mais informação da Companhia do Tijolo: https://www.instagram.com/ciadotijolo/

ABU-LUGHOD, L. A Escrita contra a cultura. Equatorial. Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, v. 5, n. 8, p. 193-226, 23 nov. 2018.

IMARISHA, Walidah. 2º FPCR – O USO DA FICÇÃO CIENTÍFICA COMO EXERCÍCIO PARA O IMAGINÁRIO POLÍTICO. Youtube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QYpbKo5-u08&t=2950s.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Este artigo está ilustrado com trabalhos de Pierre Soulages (1919-2022). 

13 COMENTÁRIOS

  1. Li a resenha e fiquei a pensar, realmente o que se tem a oferecer de pensamento radical na esquerda brasileira é reafirmar um de seus mitos fundadores? O de Canudos como experiência radical de transformação? Não é este um tema já batido, quer seja pelas diversas encenações teatrais, pelos professores que apresentam novamente aos alunos, pelas palavras de ordem que exaltam Conselheiro?
    Vejo a descrição e parece que a peça revisita, sem nada de muito novo apresentar, mais do mesmo.

  2. a mesmice do Brasil profundo ou do sertanejo antes de tudo um forte
    haja manolo

  3. Ficaremos órfãos”, pensa uma vez mais. Então, o barulhinho que se desprende do catre, que escapa debaixo do Conselheiro, o distrai (…) correm à sua volta, para levantar seu hábito, limpá-lo recolher humildemente isso que – pensa- não é excremento, porque o excremento é sujo e impuro e nada que provenha dele pode ser nem sujo nem impuro (…) Com feliz inspiração ele se adiantou, estendeu a mão entre as beatas, molhou seus dedos na aguinha e os levou à boca , salmodiando: “É assim que quer que o teu servo comungue, Pai? Não é isto para mim orvalho?” Todas as beatas do Coro comungaram também, como ele.

  4. Não assisti a peça, não posso dizer nada sobre ela. Posso dizer algo sobre a resenha, entretanto. Como Canudos está, momentaneamente, entre minhas áreas de interesse, posso dizer com alguma segurança o seguinte: (1) quem escreveu a resenha parece saber mais da peça que de Canudos; (2) tomar Canudos como experiência “autogestiva” e “horizontal” só por causa dos mutirões é erro muito, mas muito sério; (3) se Canudos fosse tomada como “horizonte possível para as lutas do presente”, estaríamos aspirando por uma teocracia, para dizer o mínimo; (4) se Canudos ainda tem algo a dizer para camponeses e trabalhadores rurais cercados pelo agronegócio “moderno” e pelo latifúndio “tradicional”, mesmo no século XXI, pouco ou nada tem a dizer para trabalhadores urbanos desse nosso mesmo tempo (a quantidade e o teor dos comentários, incluindo o meu, demonstra-o); (5) é verdade que setores da esquerda (não a esquerda toda) vivem essa “crise de imaginário” que resulta na “descrença na possibilidade de transformações radicalmente estruturais”, mas ocupar a imaginação radical com uma utopia regressiva me parece tão ruim quanto viver do presentismo dito “pragmatista” de quem vive a “crise de imaginário”. Como de utopias regressivas eu ando cheio, passo reto. Tenho mais no que pensar. Dia desses volto ao assunto.

  5. Finalmente, alguém fez Ulisses descer de sua posição heróica.
    Será que conseguirão arrasta-lo para a lama?

  6. Decepam-lhe a cabeça de Ulisses aqueles que nunca tiveram outra a qual pensar, viva a ironia!

  7. Engraçado, achei que a política do Passa Palavra quanto a comentários estivesse explícita:

    “6. O Passa Palavra publica comentários aos textos desde que
    a) não sejam completamente irrelevantes;
    b) não sejam pessoalmente insultuosos;
    c) não sejam propaganda de extrema-direita ou fascistas.”

    https://passapalavra.info/2020/04/131450/

    Os últimos comentários se enquadram nos critérios (a) e (b) para não publicação.

    Agora ficou permitida a baixaria? Vai tomar no…

  8. O único aqui com passe-livre para achacar todo mundo é o próprio Ulisses. Mas, quando alguém resolve dar a real, sempre surge um infeliz defensor do Recruta Zero do autonomismo.

  9. Todas as cartas de amor são
    Ridículas.
    Não seriam cartas de amor se não fossem
    Ridículas.

    Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
    Como as outras,
    Ridículas.

    As cartas de amor, se há amor,
    Têm de ser
    Ridículas.

    Mas, afinal,
    Só as criaturas que nunca escreveram
    Cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

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