Por Thiago Canettieri

 

Douglas, um jovem adulto negro, estava me esperando com o portão aberto, sentado na calçada. Ao me apresentar, Douglas sorriu e cumprimentou de volta, apontando para entrar no seu “negócio”, como ele se referia. “É só não reparar na bagunça, está bem?”, falou enquanto entrava pelo portão. Atravessando o portão dava para um pátio, com dois barracões: um de alvenaria, com porta e janelas, onde Douglas estava morando e outro, ainda menor, estavam guardados os materiais de trabalho de Douglas: baldes, flanelas, cera veícular. Neste estava a inscrição Lava-jato Mil Grau também em estilo grafite. Havia um carro estacionado e rapidamente Douglas comentou: “esse daí fica para amanhã, hoje já encerrei o expediente”.

Douglas usava uma bermuda e era possível ver uma tornozeleira eletrônica. Ele já adiantou: “estou respondendo em liberdade por tráfico”. Quando já sentamos, ele explicou: “Pois é, eu rodei e peguei cana por um tempo. Estava traficando. Mas graças a Deus isso ficou para trás. Agora estou no caminho certo, graças a Deus”.

Com o ensino médio completo, Douglas trabalhava como caixa de supermercado na região central da cidade desde 2012. Certo dia de outubro de 2016 foi chamado pelo gerente que o despediu. “Assim, sem mais nem menos”. Lembrando da época de carteira assinada, o discurso de Douglas é repleto de ambiguidades. Embora reconhecesse a importância da estabilidade e do seu salário, mesmo que diminuto, lembra das sucessivas humilhações que recebia dos clientes do supermercado: “Cliente é foda. Acha que pode tudo. E aí desrespeita demais, né?”. Em determinado momento diz: “Foi até bom deixar isso para trás”.

Ele conta que chegou a procurar emprego por quase cinco meses, mas era em vão. As notícias da época apontavam para o aumento do desemprego. A situação o deprimiu e passou outros 03 meses “ficando só em casa”. Douglas é pai de duas filhas com a ex-esposa e, em sua situação, não estava conseguindo ajudar na criação das meninas. “Sorte das meninas que a mãe delas é fichada, é empregada, doméstica que fala, né? E a patroa é muito boa para as meninas, dá muita coisa para elas, porque se dependessem de mim, não dava” — confidenciou, encabulado.

A plataforma Uber chegou ao Brasil no segundo semestre de 2014. A plataforma cresceu continuamente, em especial, com as restrições do mercado de trabalho de 2016, rapidamente se tornou uma das “maiores empregadoras do país” – mesmo que não se reconheça dessa maneira. Douglas foi um desses. Assim, uma vez despedido do trabalho como caixa de supermercado, Douglas “entrou no negócio da Uber” no final de fevereiro de 2017 – aproveitaria o carnaval, momento de maior demanda por corridas. No primeiro momento foi uma explosão de usuários — tanto de clientes, como de motoristas parceiros (como são tratados pelo aplicativo). Apesar de não ser um emprego formal, a Uber rapidamente começou a figurar entre as opções para a reprodução das pessoas, sobretudo aquelas recém-despedidas — ao menos para aquelas que dispunham de um carro. Douglas já tinha sua carteira de motorista, mas não tinha um carro seu. Recorreu ao seu pai, mecânico, que estava com um Gol 1.0 do ano 2012. Lavou o carro com cuidado em um final de semana e, com o cartão de crédito, encheu o tanque do veículo. Na segunda cedo baixou o aplicativo da Uber em seu smartphone e disse “estou indo trabalhar”.

Seu primeiro cliente apareceu mais de uma hora depois que estava rodando — “eu lembro”, falou. Fez a viagem, ofereceu a bala que havia comprado no sinal. O aplicativo apitou uma notificação: “recebi uns oito reais e uns quebrados”. As corridas chegavam uma atrás da outra e Douglas trabalhava das dez da manhã até às dez da noite. Parava para almoçar, e às vezes, encontrando uma rua calma, desligava o aplicativo para um cochilo.

 

Pô, o esquema é interessante… você faz seu horário, você trabalha o quanto quer e o aplicativo te paga. Não tem chefe falando na sua cabeça, não tem que bater ponto. O negócio funciona mesmo. Teve mês que tirei dois mil reais, pô. Vê se não vale. Claro, tem os custos com o carro, tem a gasolina, mas mesmo assim. E eu aproveitei que meu pai não cobrava nas manutenções do carro.

 

Apesar da jornada de trabalho expandida, Douglas se sentia mais livre do que antes. E conseguia uma remuneração maior pelo seu trabalho. Quando questionado sobre o seu ritmo de trabalho, ele não hesita: “ah, é puxado né… pesado dirigir por tanto tempo, pegar cliente de tudo que é jeito. Peguei gente que vomitou no carro voltando de baladinha, só aí morre cinquenta pau para colocar o carro para rodar de novo. Você tromba com cada um”. Contudo, rapidamente ele completa: “Mas era bom!”.

Douglas narrou longamente sua jornada como motorista de aplicativo, e relatou que a partir de um determinado momento, que ele atribuiu a uma “enchente de novos motoristas” que entraram para o negócio, ficou “mais difícil fazer grana”. Rapidamente ele lembra: “o aplicativo começou a fazer sacanagem” — a inflação galopante crescia e a remuneração das viagens permanecia a mesma, com eventuais reduções da fração repassada ao motorista. Para lidar com as reduções da tarifa que recebia, Douglas passou a trabalhar cada vez mais como motorista de aplicativo.

A condição em que vivia, na casa dos pais, com o trabalho autônomo do pai, a aposentadoria por invalidez da mãe, permitia uma vida, ainda que sem luxos, muito digna. O dinheiro do Uber ajudava em casa, mas sobrava uma parte para que Douglas pudesse curtir. “Trabalhava demais, né? Então precisava despressurizar, ir curtir um pouco” — disse. Começou a frequentar o baile funk do bairro. Trata-se de uma grande festa, que começa sábado de madrugada e vai até domingo cedo, organizado pelos “meninos do corre”, isto é, os traficantes locais. O termo “menino”, dito em uma entonação específica, designa os jovens responsáveis pelo tráfico de drogas na região.

Começou como um frequentador casual, mas rapidamente se tornou um frequentador assíduo, enquanto ia se relacionando com as pessoas da festa. Entre garrafas de Skol Beats e de Red Label, Douglas se aproximou dos “meninos”. Alguns eram conhecidos de infância dele, estudaram juntos na Escola Estadual do bairro. No vai e vem das festas, Douglas recebeu uma proposta: “o cara, falou assim: você já roda para cima e para baixo nessa cidade, por que não busca umas encomendas para nós? A gente pode te pagar legal”. Já não era só uma questão de “ganha-pão”, mas de aproveitar o momento. Seria uma espécie de complementação de renda. O crime, muitas vezes, é uma forma de garantir um recurso a mais.

Assim, ele começou a transportar maconha. Era final do ano de 2018 – ou seja, em pouco mais de um ano rodando como parceiro da Uber, ele estava fazendo essa função. No começo, não circulava com mais de 1 kg. Sempre muito bem embalada e escondida no bolso frontal do banco do motorista. À medida que “a grana começou a entrar, os olhos foram ficando grandes”: começou a transportar até 5 kg por dia, indo em diferentes biqueiras na cidade para a distribuição. Depois da maconha chegou a transportar cocaína. “Nunca peguei cliente com droga no carro, seria sacanagem” — completou. Segundo ele, sempre foi algo muito tranquilo: “Era suave, bastava olhar no Waze e no Facebook onde tinha blitz e evitar esses locais. A grana era fácil”. Tudo correu bem até o momento que Douglas foi parado em uma: “aí rodei, né? Peguei por tráfico. Eu fiquei nervoso, os homens começaram a perguntar e eu estava saindo de um lugar cheio da droga. Resolveram revistar o carro e aí rodei”. Douglas foi preso em janeiro de 2020. Seu “trampo” de “mula do tráfico” durou pouco mais de um ano.

Ele não entrou em detalhes sobre o seu tempo na prisão. Apenas falou que “viveu o inferno lá dentro”. A maior parte do seu período de reclusão foi durante a pandemia de COVID-19, que tornou a experiência ainda mais traumática. As visitas semanais da mãe (somente da mãe, Douglas fez questão de frisar que, desde então, nunca mais falou com seu pai) foram interrompidas pelo isolamento social e ele pegou COVID-19 duas vezes enquanto esteve lá dentro: “fiquei mal, mal mesmo. A febre não baixava e não tinha muito o que fazer”.

No final de 2021, Douglas saiu da prisão, indo para o regime aberto monitorado. Ficou sabendo pela mãe que o pai vendeu o carro para pagar um advogado para ele que atuou para garantir a progressão de sua pena como réu primário. Contudo, apesar do pai ter investido em sua soltura do sistema carcerário, ele cortou o contato por completo com o filho.

Douglas cumpriu quase três anos encarcerado e, desde que saiu, tenta se restabelecer. “Mas fica muito difícil para quem passou um tempo na prisão, ninguém contrata”. Depois de alguns segundos de pausa, Douglas continuou:

 

A saída então foi vir para cá. Esse lote é de um amigo, ele também já esteve enrolado com a justiça, mas quando saiu, parou de mexer. A família dele deixou esse lote para ele e aí ele começou a oferecer lava-jato. Como ele viu que eu estava precisando, ele me chamou para trampar com ele. A gente divide os dias e cada um tira o seu. Aqui atrás tem um barraco que eu estou dormindo por enquanto.

 

Douglas refletia sobre a precariedade que estava inserido: O emprego anterior, a demissão, a impossibilidade de encontrar novas oportunidades, o trabalho de Uber, a entrada para o tráfico, a cana e, agora, o lava-jato. “É, não é fácil, não”, concluiu. A vida de Douglas representa as trajetórias incertas que tantos outros moradores das periferias estão sujeitos no urbano da crise contemporânea.

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