Por Leo Vinicius Liberato

Não se trata de um conflito regional, mas de uma visão do amanhã. O monstro de Gaza ameaça o mundo de uma forma muito simples e imediata.

Jean-Pierre Filiu [1]

Lula não será lembrado na história como um chefe de Estado que chamou o genocídio de genocídio, mas sim como cúmplice no genocídio. Vinte e um meses se passaram desde o início do genocídio e limpeza étnica em Gaza, e o governo brasileiro não tomou nenhuma ação. Lembremos que em apenas dois meses de genocídio a situação era tão clara que a África do Sul entrou com processo contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça (ligado à ONU) por crime de genocídio.

Ainda há tempo de frear essa barbárie.

***

De fato, é falso dizer que o governo não tomou nenhuma ação. A ação do governo brasileiro tem sido descumprir recomendação do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) [2], a legislação e a jurisprudência internacional em relação a crimes como genocídio. O artigo I da Convenção para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio obriga os Estados terceiros a prevenirem e punirem o crime de genocídio. Ora, para tanto, é obrigação dos Estados usarem os meios que possuem, como embargo de armas, sanções comerciais e econômicas, além de procedimentos judiciais [3]. A Colômbia, por exemplo, baniu a exportação de carvão para Israel. O carvão colombiano era responsável por 60% do carvão utilizado por Israel na geração de energia.

O valor das exportações brasileiras para Israel foi de 662 milhões de dólares em 2023, saltou para 725 milhões em 2024 e até esse momento em 2025 está contabilizada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) em 219 milhões de dólares. Já as importações do Brasil de produtos israelenses foram no valor de 1,35 bilhão em 2023; 1,15 bilhão em 2024 e 528 milhões de dólares em 2025 até o momento. Cerca de metade do valor das importações são de produtos químicos agrícolas, enquanto o produto mais exportado, em valor, do Brasil para Israel em 2023 e 2024 foi o petróleo bruto.

No relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, From economy of occupation to economy of genocide, publicado em 30 de junho de 2025, a Petrobrás é mencionada como provável fornecedora de energia para o genocídio perpetrado por Israel, uma vez que ela tem maior participação na extração de petróleo de poços brasileiros e não tem sido possível determinar a fonte do petróleo brasileiro exportado a Israel [4]. As empresas e seus executivos também podem e devem responder legalmente por cumplicidade no genocídio, como deixa claro o relatório e outros pareceres e documentos de especialistas em Direito Internacional. A Petrobrás, além de tudo, é controlada pelo Estado, diferentemente das empresas que exportavam carvão colombiano para Israel.

Segundo dados do MDIC os valores das exportações de petróleo bruto e combustíveis derivados de petróleo para Israel foram, respectivamente:

Óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos, crus:


Em 2023: US$ 138.824.062


Em 2024: US$ 215.890.164


Em 2025: 0



Óleos combustíveis de petróleo ou de minerais betuminosos (exceto óleos brutos):


Em 2023: US$ 347


Em 2024: US$ 43.299


Em 2025: US$ 154.069


Vemos que em 2025, segundo o MDIC, não teria sido exportado petróleo bruto para Israel até agora. No entanto, e embora os valores de exportação de combustível sejam mil vezes menores que o de petróleo bruto, a exportação de combustível para Israel aumentou mais de 3 vezes em relação a 2024 e mais de 443 vezes em relação a 2023. Além disso, um item de exportação para Israel é “armas e munições”. Embora os dados do MDIC não especifiquem se são produtos bélicos, o Brasil ter exportado 1,35 milhão de dólares em armas e munições em 2024 para um país cometendo genocídio, é revelador. Em 2023 foram 3,6 milhões de dólares exportados em armas e munições e em 2025 até agora os dados divulgados pelo MDIC não contabilizam nenhuma exportação.

É importante acrescentar que, de acordo com o levantamento recentemente publicado pelo diretor do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro, Leandro Lanfredi, Do Pré-Sal a Gaza: O caminho do petróleo brasileiro que move os jatos de Israel com a cumplicidade do Governo Lula, a queda ou fim das exportações de petróleo para Israel nos dados oficiais significou apenas sua ocultação. Petróleo brasileiro tem chegado a Israel através da triangulação com outros países.

Façamos uma comparação do peso econômico das exportações para Israel de carvão da Colômbia e de petróleo do Brasil, tomando como base 2023 (o ano anterior ao banimento da exportação pela Colômbia).

Partindo de dados publicados pelo MDCI no Brasil e de dados que podem ser encontrados na imprensa sobre a Colômbia, o valor das exportações de carvão colombiano para Israel em 2023 era 0,86% do total de exportações da Colômbia e 4,2% do total das suas exportações de carvão. Para ter uma ideia de grandeza em relação à economia da Colômbia, o valor das exportações de carvão para Israel correspondia a 0,12% do valor do seu PIB. Já o valor das exportações de petróleo e combustíveis do Brasil para Israel em 2023 foi 0,041% do valor total das exportações do Brasil e 0,31% do total das exportações de petróleo e combustíveis do Brasil. O valor das exportações de petróleo e combustíveis para Israel correspondia a 0,006% do valor do PIB brasileiro.

Quando o governo brasileiro é pressionado internamente para romper relações com Israel, seguindo o exemplo de países como Colômbia e Bolívia, ouve-se a desculpa de que o Brasil não pode ser comparado com esses países, que pelo seu peso econômico e geopolítico suas ações possuem consequências e reações incomparáveis. Esse argumento carrega uma contradição evidente em si mesmo. Se sua importância e peso são maiores, por que então sua responsabilidade em prevenir e punir o genocídio seria menor? Por que seu dever e responsabilidade em agir seria menor e não maior? De toda forma, olhando os números do parágrafo anterior, vemos que o peso econômico das exportações de petróleo e combustíveis do Brasil para Israel é muitas vezes menor para o Brasil do que é para a Colômbia o de suas exportações de carvão para Israel. Além disso, a balança comercial com Israel é altamente negativa para o Brasil.

Portanto, trata-se de falta de vontade política do governo brasileiro romper relações comerciais com Israel. Falta de vontade política de sequer parar de exportar petróleo e combustível para alimentar o genocídio. As falas de Lula se transformam em performance para um público, contrastando com a indiferença prática em relação ao genocídio que os palestinos estão submetidos e às obrigações legais dele como chefe de Estado à luz do Direito Internacional.

Em tréplica indireta à Confederação Israelita do Brasil (Conib), Lula chamou esse grupo de lobby israelense de “fascista”, embora não tenha mencionado o nome da Conib [5]. Sob seu governo o Brasil exporta combustível a um país que, segundo ele próprio afirma, comete um genocídio e, se não possui um regime fascista, no mínimo estaria nas mãos de fascistas. Nessa mesma fala, ainda discursando sobre o genocídio, Lula diz que “a única coisa que eu quero é o seguinte, que a ONU possa tomar uma decisão” [6]. Ora, Lula dá uma de “joão-sem-braço”. A ONU já tomou uma decisão, através da recomendação do seu Tribunal (o TIJ), a qual seu governo não cumpre.

No dia 4 de julho último, na abertura do encontro anual do banco dos Brics, Lula afirmou que: “Há muito tempo eu não via a nossa ONU tão insignificante. (…) Não é capaz de fazer um acordo de paz para que o genocídio…” [7]. Para em seguida participar de evento da Petrobrás na refinaria de Duque de Caxias. Francesca Albanese, relatora especial da ONU sobre Direitos Humanos nos territórios palestinos ocupados e advogada especialista em Direitos Humanos, respondeu em recente entrevista à objeção ou lamentação bastante frequente de que a ONU não teria meios de forçar o cumprimento de suas resoluções [8]. Ela deixou claro que a ONU possui sim poder coercitivo, através dos Estados membros. É obrigação dos Estados membros aplicar com os meios que possuem as resoluções e recomendações da ONU. Com base nisso Albanese afirma que os Estados deveriam, por obrigação, além dos embargos e sanções, enviar navios para romper o cerco a Gaza.

Pode-se afirmar, com bastante razão, que se o Brasil enviasse um navio com esse fim, o resultado seria ter seu navio bombardeado por Israel e, potencialmente, desencadear um conflito militar com Israel e Estados Unidos. O que se faz quando não se tem força para agir sozinho? Busca-se uma ação coletiva, como o Lula ex-sindicalista bem sabe. Por isso Colômbia, Bolívia, África do Sul, Cuba, Belize, Honduras, Malásia, Namíbia e Senegal tomaram iniciativa de formar o Grupo de Haia, de forma a encontrarem meios para combater os crimes cometidos por Israel na Palestina. Não apenas o Brasil não tomou nenhuma iniciativa de ação coletiva, diferentemente desses países, como até hoje não se juntou ao Grupo de Haia.

Como se explica tamanha discrepância entre discurso e prática do governo brasileiro? Cinismo? hipocrisia?

***

Nos EUA, o Partido Democrata escolheu manter seu apoio, irrestrito, ao genocídio em Gaza a ganhar as últimas eleições presidenciais [9]. O Partido Trabalhista no Reino Unido está fazendo a mesma escolha de servir como preposto de Israel no Reino Unido mesmo que isso lhe custe o governo nas próximas eleições. Aqui, com votações tão apertadas, apesar da causa palestina não ter a mesma repercussão do que no eleitorado dos EUA e do Reino Unido, poderá retirar votos importantes do atual governo, uma vez que sua cumplicidade com o genocídio não pode ser escondida pela retórica.

Talvez, jamais antes tenha ficado tão evidente que as democracias liberais não são por princípio um oposto ou uma barreira contra o fascismo. Através delas o supremacismo etnonacionalista e o genocídio, que é seu último termo, pode ser não apenas apoiado por governos com se tornar política pública. E se for necessário, apoiados até mesmo com a restrição da liberdade e direitos civis dos seus cidadãos e habitantes, como ocorre nos EUA, Reino Unido e Alemanha [10]. Mais uma vez o slogan socialismo ou barbárie, popularizado por Rosa Luxemburgo, ganha ares de axioma sociológico. Talvez nada mais contundente como empiria desse axioma do que o relatório do Conselho de DH da ONU já mencionado, From economy of occupation to economy of genocide. Ele mostra uma teia de empresas do capitalismo global que lucram com a ocupação e o genocídio – o que inclui, como exemplo citado no relatório, uma empresa chinesa que lucra com a ocupação e colonização ilegais de territórios palestinos.

Se capitalismo e barbárie se retroalimentam, onde estará esse socialismo que antagoniza e é uma barreira contra o fascismo, o supremacismo étnico e o genocídio?

A força que antagoniza o supremacismo e o genocídio vemos nas ações internacionalistas de trabalhadores portuários, de trabalhadores organizados em redes de ação direta, de trabalhadores em formação nas universidades (estudantes)… Para além de etnias e nacionalidades, para além de identidades impostas, emerge esse sujeito coletivo cuja pátria é a humanidade, formado por trabalhadores que muitas vezes colocam em risco seu emprego, sua liberdade e por vezes sua vida para obrigar Estados, governantes e empresas a deixarem de ser perpetradores e cúmplices de genocídio e crimes contra a humanidade. Essa luta, de forma imanente, é uma luta para estabelecer um novo mundo sob os valores da solidariedade, da justiça, da igualdade e da liberdade. Um mundo antagônico ao do lucro capitalista. Quando esses valores se tornarem hegemônicos, instituindo novas relações sociais, inclusive novas relações de produção, esse novo mundo será estabelecido. O socialismo não está em ideologias, em discursos ou em símbolos de partidos e Estados. Está potencialmente nessa luta ampla e internacionalista de trabalhadores que se reconhecem em solidariedade numa humanidade comum.

Com contradições e dificuldades inerentes ao contexto e às práticas sociais, uma lição preciosa os curdos socialistas aprenderam com a história e mostram ao mundo (para os que querem ver). Apesar do histórico como identidade oprimida e perseguida, não buscam construir em Rojava, norte da Síria, um Estado, e muito menos um Estado curdo, mas sim uma organização política em que todos tenham direitos iguais independente de gênero, etnia ou religião. Chamam essa organização de Confederalismo Democrático. Uma resposta diametralmente oposta àquela explorada pelo sionismo, com seu Estado – mais um para dividir e negar a humanidade – e seu supremacismo étnico-religioso.

O que cabe ao governo brasileiro não é nenhuma obra de transformação ou construção de uma nova sociedade. Até porque isso não é obra de governos, mas das pessoas, dos trabalhadores organizados. Sua obrigação moral é bem mais simples: a de cortar laços econômicos e comerciais com Israel, implementar sanções e embargos de acordo com a legislação internacional e as recomendações e resoluções da ONU. Deixar de ser cúmplice do apartheid e genocídio palestino. É tornar sua prática minimamente coerente com seu discurso [11].

Leo Vinicius Liberato é doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Notas

[1] O historiador francês Jean-Pierre Filiu visita Gaza, como parte de seu trabalho como historiador, desde 1980. Sua última estadia em Gaza foi entre dezembro de 2024 e janeiro de 2025. A partir do que viu, afirma categoricamente que “não se trata de um conflito regional, mas de uma visão do amanhã”. Gaza se tornou um lugar onde “a lei internacional, diretos humanos básicos, a Convenção de Genebra, a atitude em relação aos direitos humanos – tudo isso foi jogado de lado sem hesitação, sendo suplantado pela força extremamente violenta, bruta e aleatória”. O “monstro de Gaza” se espalhará pelo globo, “ele ameaça o mundo de uma forma muito simples e imediata”. Ler: “’Now I Understand Why Israel Is Denying Journalists Access to the Appalling Scene in Gaza’” https://www.haaretz.com/israel-news/2025-07-05/ty-article-magazine/.highlight/now-i-understand-why-israel-is-denying-journalists-access-to-the-appalling-scene-in-gaza/00000197-d952-da1d-a5ff-f95612dd0000

[2] Ver: https://www.un.org/unispal/document/position-paper-commissionof-inquiry-18oct24/

[3] Ver, por exemplo: https://www.somo.nl/wp-content/uploads/2024/06/Obligations-of-Third-States-and-Corporations-to-Prevent-and-Punish-Genocide-in-Gaza-3.pdf

[4] O relatório está disponível aqui: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/hrbodies/hrcouncil/sessions-regular/session59/advance-version/a-hrc-59-23-aev.pdf

[5] Assistir: https://www.facebook.com/reel/1031194831874934

[6] idem

[7] Assistir: https://www.youtube.com/watch?v=FAuHNuo_RLk

[8] “Starvation and Profiteering in Gaza (w/ Francesca Albanese) | The Chris Hedges Report” https://www.youtube.com/watch?v=wbakVaOGgOk

[9] “Biden voters passed on Kamala Harris because of Gaza, new poll shows”

https://www.middleeasteye.net/news/biden-voters-passed-kamala-harris-because-gaza-new-poll-shows

[10] Para o caso mais recente no Reino Unido, a inedita proscrição como grupo terrorista de uma rede de ação direta não-violenta: https://passapalavra.info/2025/07/156892/

[11] Para quem acha que exigir esse mínimo, básico, de um governo, possui algo de radical, recomendo a leitura do artigo do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, cobrando ação de outros governos: https://www.theguardian.com/commentisfree/2025/jul/08/governments-stand-up-to-israel-colombia

5 COMENTÁRIOS

  1. Nos dias 15 e 16 de julho últimos, representantes de cerca de 30 países se encontraram em Bogotá, sob convocação do Grupo de Haia. Entre eles Brasil, Espanha, China, Noruega, Irlanda Qatar, Turquia, Indonésia…

    Foi decidido que seriam tomados 6 passos, com prazo até setembro de 2025, envolvendo embargo de armas e energético principalmente.

    Sairá agora o Brasil da cumplicidade? A ver se efetivamente isso será levado a sério não só pelo Brasil, mas por outros países, como Turquia, Egito… Impedindo ou não fazendo, por exemplo, as triangulações comerciais.

    https://operamundi.uol.com.br/guerra-israel-x-palestina/grupo-de-haia-determina-6-medidas-contra-o-genocidio-na-palestina/

    https://www.middleeasteye.net/news/gaza-war-several-states-announce-six-concrete-steps-against-israel-bogota-summit

  2. Que se interrompa imediatamente o comércio que favorece o genocídio em Gaza!

  3. Hoje foi publicada uma importante matéria que mostra o nível da hipocrisia do governo brasileiro.

    “ApexBrasil: agência federal que atua para aumentar negócios do Brasil com Israel e o genocídio”
    https://www.esquerdadiario.com.br/ApexBrasil-agencia-federal-que-atua-para-aumentar-negocios-do-Brasil-com-Israel-e-o-genocidio

    Agência presidida por Jorge Viana, do PT.

    Destaco um trecho:

    “A prova mais cabal do caráter criminoso dessa política veio em 31 de janeiro de 2024 [13], quatro meses após o início da fase mais brutal do genocídio em Gaza. Nesse dia, a ApexBrasil promoveu o webinar “Israel: Resiliência nos Negócios”. O próprio título é uma peça de cinismo abjeto. Enquanto o povo palestino era massacrado, a agência estatal brasileira organizava um evento para discutir a “resiliência” dos negócios com o Estado agressor.”

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