Por Arthur Moura
Apresentação
O presente ensaio é fruto de uma reflexão longa, acumulada ao longo de quase duas décadas de vivência, pesquisa e produção cultural no campo do rap independente do Rio de Janeiro. Não se trata de uma análise externa, fria ou distante, mas de um texto forjado a partir da experiência direta com os sujeitos e os processos que aqui serão criticamente examinados.
A figura de MC Marechal, em particular, ocupa um lugar central neste trabalho, não apenas por sua relevância na cena, mas pela forma como sua trajetória, seu discurso e suas práticas condensam algumas das maiores contradições que atravessam o rap carioca e brasileiro na era neoliberal. Falo, inclusive, a partir de um breve período de convivência pessoal e profissional com Marechal, quando, em meados de 2006, ensaiamos uma relação de produção musical que terminou justamente por conta de aspectos que hoje se tornaram marcas estruturais da sua conduta pública: o autoritarismo, o controle excessivo, a recusa ao dissenso e o desprezo por qualquer forma de mediação coletiva. O ensaio não se limita a uma crítica de caráter pessoal. O objetivo aqui é demonstrar como a figura de Marechal, hoje consolidada como empresário, gestor de carreiras e produtor de conteúdo motivacional no canal Independente de Música, representa um modelo cada vez mais hegemônico no interior da cena hip hop: o do coach cultural, que transforma a história da luta de classes, a cultura de resistência e as experiências de exclusão em ferramentas de motivação empresarial.
Ao longo do texto, busco articular experiências de campo, entrevistas, episódios concretos e referências teóricas que permitam uma análise mais profunda das ideologias que hoje estruturam o rap independente, com ênfase especial nas categorias de poder, fetiche, controle social e burocratização dos desejos. A análise vai além da figura de Marechal, mas parte dele como exemplo emblemático de um processo maior de domesticação da cultura hip hop pelas dinâmicas do capital.
Este não é um texto para agradar. Tampouco é um ajuste de contas. É uma tentativa de organizar, teoricamente, um debate que segue sendo evitado dentro da cena: o debate sobre o poder, a dominação e a transformação do rap em instrumento de legitimação ideológica do neoliberalismo.
Espero que este ensaio sirva como ponto de partida para novas reflexões, debates e, quem sabe, para a retomada de um espírito crítico que o rap, enquanto cultura de resistência, já teve um dia, mas que hoje parece ter enterrado debaixo de likes, métricas e slogans de autoajuda.
Introdução: A experiência do dissenso e o nascimento de uma crítica necessária
A produção cultural brasileira, especialmente aquela vinculada aos setores periféricos e populares, sempre esteve marcada por uma tensão central: a disputa entre autonomia estética e captura ideológica pelos mecanismos de poder do capital. O rap, enquanto forma de expressão nascida no seio da classe trabalhadora urbana e racializada, se constituiu historicamente como um canal de denúncia, resistência e mobilização. No entanto, nas últimas duas décadas, as transformações estruturais da indústria cultural e a penetração das lógicas neoliberais no campo da produção independente redesenharam as formas de atuação de artistas, produtores e lideranças culturais.
Este ensaio parte de uma experiência pessoal vivida com MC Marechal em meados de 2006, quando, durante um breve período de colaboração artística, foi possível observar de perto traços centrais daquilo que se configuraria posteriormente como uma das formas mais bem acabadas de uma ideologia de controle, autoritarismo simbólico e fetichismo da competência na cena do rap carioca contemporâneo. A convivência com Marechal evidenciou não apenas aspectos de sua personalidade – dominadora, inquestionável e avessa ao dissenso – mas também permitiu perceber os contornos iniciais de um projeto político-estético baseado na hierarquização da produção cultural, no culto à liderança e na negação sistemática de espaços de autonomia criativa.
O episódio que simboliza essa ruptura foi a recusa explícita de Marechal em lançar o disco Relatoatividade, do grupo Fluxo, após uma audição marcada por um comportamento desrespeitoso e desmobilizador – o artista chegou a dormir durante a escuta do álbum e, posteriormente, justificou sua decisão com o argumento de que detinha um suposto “controle de qualidade” sobre tudo o que passava pelo seu crivo. Essa lógica de monopólio da autoridade estética, somada a episódios de veto a relações de trabalho com outros músicos com quem ele mantinha atritos, tornou evidente a existência de um campo de poder personalista e verticalizado.
Este texto, portanto, busca ultrapassar o relato pessoal para propor uma análise teórica mais ampla. Pretende-se, aqui, compreender como a figura de MC Marechal representa, de maneira sintomática, os processos de burocratização da criatividade, de fetichização da competência e de captura da cultura hip hop pelas dinâmicas autoritárias típicas da sociabilidade burguesa em tempos de neoliberalismo avançado.
I. A formação da ideologia da competência no campo do rap carioca
Pierre Bourdieu, ao analisar o funcionamento dos campos artísticos, demonstra como os agentes que nele atuam disputam posições de poder não apenas através da produção simbólica direta, mas também pela capacidade de estabelecer os critérios legítimos de julgamento e consagração. No caso específico do rap carioca, MC Marechal construiu, ao longo dos anos, um sistema discursivo e prático baseado justamente nessa legitimação hierárquica, onde a figura do artista se confunde com a do árbitro moral, técnico e político do campo.
A “ideologia da competência”, conceito trabalhado por Marilena Chaui, aplica-se com precisão ao caso em questão. Segundo Chaui, a ideologia da competência institui uma divisão social que determina, de forma prévia, quem pode falar, quem deve ouvir e quais conteúdos são autorizados a circular. Marechal não apenas aplicou esse modelo como o radicalizou no interior da cena independente. A constante referência ao “Um Só Caminho” não é apenas um lema motivacional, mas um dispositivo ideológico que define os parâmetros da produção legítima, da conduta moral dos agentes e da forma de inserção no mercado musical.
Essa ideologia se manifesta de modo concreto em pelo menos três dimensões:
- A centralidade da liderança personalista: Marechal, ao construir sua imagem pública, desloca o eixo da criação coletiva – característica fundacional do hip hop – para a consagração de uma liderança individual dotada de uma suposta visão superior do campo.
- O monopólio da avaliação estética: O “controle de qualidade” que reivindicava sobre os trabalhos alheios não é um gesto isolado, mas a expressão de um modelo de gestão autoritária da produção cultural, no qual as criações dos pares passam a depender da chancela de um líder incontestável.
- A negação do dissenso: A recusa sistemática ao contraditório, o bloqueio de articulações com outros artistas e a imposição de uma lógica de exclusividade nas relações de trabalho são elementos que reafirmam o caráter burocrático e disciplinador de sua prática.
Além disso, é fundamental observar como o anti-intelectualismo de Marechal – traduzido em sua rejeição explícita às instituições escolares e ao conhecimento sistemático – serve como complemento ideológico à sua prática autoritária. A desescolarização não é, neste caso, uma experiência de autonomia, mas uma estratégia discursiva que reforça a centralidade do “saber de experiência própria” como única fonte legítima de autoridade. Essa prática não apenas reforça o isolamento político dos seus interlocutores, como também bloqueia qualquer possibilidade de debate crítico sobre as formas de poder reproduzidas em seu entorno.
II. O fetichismo da competência e a naturalização da hierarquia na cultura hip hop
O fenômeno observado na trajetória de MC Marechal não é um caso isolado de comportamento individual, mas uma expressão específica de um processo mais amplo: a conversão das relações culturais em relações de poder fetichizadas, nas quais a competência, ao invés de ser uma expressão de desenvolvimento coletivo, passa a funcionar como mercadoria simbólica. Esse fenômeno, analisado por Carlos Nelson Coutinho e por István Mészáros, permite observar como o rap carioca, mesmo enquanto expressão de uma cultura de resistência, foi progressivamente capturado pelas formas fetichizadas de sociabilidade próprias do capital.
Segundo Mészáros, o fetichismo social não se restringe à esfera econômica direta, mas se estende à totalidade das relações humanas, promovendo a naturalização de hierarquias, a internalização da dominação e a reprodução da obediência como se fossem escolhas individuais. A ideologia da competência no rap, especialmente na figura de Marechal, é, portanto, uma manifestação concreta do fetichismo em seu estágio mais avançado: o da aceitação voluntária das estruturas de dominação como se fossem expressão de mérito pessoal.
A construção de slogans como “Um Só Caminho” não pode ser lida apenas como uma filosofia de vida. Trata-se de um dispositivo que performa uma operação de sutura ideológica entre dois polos que deveriam ser contraditórios: a estética da resistência e a moralidade do desempenho individual. Essa fusão cria um campo discursivo em que a hierarquia não aparece mais como imposição externa, mas como um destino necessário para aqueles que desejam “superar suas limitações” e “serem dignos” do reconhecimento no campo do rap.
Aqui, a ideologia da competência se articula diretamente com a lógica neoliberal da performance, na qual o valor de um sujeito é mensurado não pela sua inserção crítica na luta de classes, mas por sua capacidade de atender aos critérios definidos por lideranças já estabelecidas. Não por acaso, a prática de Marechal estabelece um circuito de reconhecimento baseado na lealdade, na disciplina e na deferência ao líder – um ethos que se aproxima das formas mais arcaicas de autoridade carismática, mas que, sob a estética do rap, se recobre de uma falsa aura de horizontalidade e organicidade.
Essa dinâmica se cristaliza ainda mais quando observamos o caráter excludente da construção simbólica que Marechal opera em sua relação com os pares. Ao estabelecer-se como portador de um saber superior – justificado por sua “vivência de rua” e sua “trajetória de resistência” – Marechal cria um campo de validação moral no qual apenas aqueles que se submetem aos seus critérios de qualidade e conduta são aceitos como interlocutores legítimos. Essa estrutura se manifesta de maneira evidente nas suas práticas de veto, na exclusividade das parcerias e na rejeição pública de qualquer tentativa de dissenso ou crítica.
É possível afirmar que o processo de fetichização da competência em Marechal gera uma espécie de “estratificação simbólica do campo do rap”, onde os “aptos” e os “não aptos” são separados não por suas elaborações artísticas ou políticas, mas pela capacidade de ajustamento ao discurso do líder. Isso se conecta ao que Lukács chamou de “reificação das relações humanas”, quando os sujeitos passam a se relacionar uns com os outros não como iguais, mas como funções dentro de uma estrutura social fetichizada.
Essa reificação atinge o campo das emoções, da amizade e até da própria produção artística. O que antes era uma cultura forjada na coletividade e na contestação, transforma-se num espaço de reprodução hierárquica, onde os critérios de participação são ditados por um código moral privatizado, autorreferente e marcado pela lógica da obediência.
A consequência mais grave desse processo é o bloqueio das potências críticas do rap. Ao transformar a “qualidade artística” em fetiche e ao revestir o “merecimento” de um conteúdo quase espiritual, Marechal institui, de forma objetiva, um regime de silenciamento, onde os artistas e fãs que não comungam de sua visão são imediatamente excluídos da cena ou rotulados como “inimigos da cultura”, “haters” ou “invejosos”.
Em termos marxistas, trata-se de um processo típico de alienação, no qual as formas sociais (no caso, o campo simbólico da competência) se autonomizam frente aos sujeitos históricos que as produzem, impondo-se como verdades inquestionáveis. A crítica, neste contexto, passa a ser vista como um ataque pessoal e não como um momento legítimo de enfrentamento ideológico.
Por fim, é importante reforçar que essa naturalização da hierarquia dentro da cena independente carioca é apenas um sintoma de um processo estrutural mais amplo: a penetração das formas de controle ideológico da sociedade burguesa no interior das culturas de resistência.
III. Da resistência à administração: o rap como espaço de gestão empresarial e disciplinamento dos corpos
A trajetória de MC Marechal alcança um novo estágio com o surgimento do seu canal “Independente de Música”, um projeto que, embora à primeira vista se apresente como uma ferramenta de orientação para artistas independentes, é na verdade a consolidação definitiva de uma guinada ideológica já anunciada em suas práticas anteriores: a transformação da cena independente numa extensão dos princípios administrativos e gerenciais do capitalismo tardio.
O canal funciona como uma espécie de plataforma de coaching empresarial voltado para músicos, com ênfase obsessiva em temas como planejamento de carreira, gestão de equipe, controle de processos de produção, cálculo de métricas de alcance e otimização de desempenho artístico. Essa racionalização da prática musical, que se articula com os princípios do fordismo cultural, materializa o que já se vinha delineando na construção ideológica de Marechal: a completa subordinação da produção cultural à lógica de mercado.
O discurso de Marechal na atualidade se distancia de qualquer compromisso histórico, político ou crítico que caracterizou os momentos mais férteis e transformadores do rap. O foco agora é a performance empresarial. Termos como “trabalho em equipe”, “controle de qualidade”, “meta”, “engajamento”, “planejamento de carreira” e “mentalidade de crescimento” tomam o lugar de qualquer reflexão sobre estrutura de classes, racismo estrutural, violência de Estado ou as contradições do modo de produção capitalista.
O que está em curso é o deslocamento definitivo do rap como espaço de resistência social para um campo de gestão individualizada de capital simbólico. Marechal, ao se posicionar como coach do rap independente, não apenas atualiza o ideário neoliberal da autossuficiência e do empreendedorismo, mas também cristaliza uma concepção de cultura como mercadoria de alto desempenho, onde o artista é visto como uma pequena empresa e o sucesso depende exclusivamente de seu esforço pessoal.
Essa guinada ideológica, no entanto, não é abrupta. O mito MC Marechal foi sendo construído ao longo de quase duas décadas de forma calculada e progressiva. Um dos dispositivos mais eficazes dessa construção foi o não lançamento de um disco de estúdio. Esse gesto, longe de ser apenas uma consequência de dificuldades de produção ou de um suposto perfeccionismo, funciona como estratégia de marketing emocional, promovendo um estado permanente de ansiedade e expectativa entre os fãs.
A promessa sempre adiada de um grande álbum de estreia reforça a figura de Marechal como um gênio incompreendido, um artista supostamente à frente de seu tempo, incapaz de entregar qualquer produto que não seja a obra-prima definitiva. Tal estratégia é própria da lógica de fetichização de mercado: quanto mais distante e inatingível o objeto, mais ele se valoriza no imaginário coletivo. O que se vende, no caso de Marechal, não é a obra, mas a espera pela obra.
O repertório simbólico de Marechal também colabora para essa construção mitológica. Sua performance descalça nos palcos, por exemplo, reforça um código de representação que transita entre a imagem de humildade e uma espécie de santidade laica. A escolha por se apresentar descalço evoca, num primeiro plano, a ideia de conexão com as raízes e com a terra, mas em um segundo plano – menos consciente para o público e mais revelador no campo da análise crítica – remete à tradição iconográfica das figuras sacralizadas, dos imperadores divinizados, que em determinadas culturas se apresentavam descalços como símbolo de proximidade com o sagrado e de autoridade moral incontestável.
Essa simbologia do corpo – da estética do “líder humilde” que ao mesmo tempo se coloca como tutor espiritual e moral da cena – reforça a estrutura hierárquica já analisada anteriormente. Marechal não é apenas um MC. Ele se posiciona como uma autoridade moral, um modelo de conduta, uma instância de validação estética, comportamental e agora também administrativa dentro da cultura hip hop.
É necessário observar como essa forma de poder simbólico se entrelaça com os mecanismos clássicos da sociedade de controle, descritos por Foucault. A partir do canal Independente de Música, Marechal não apenas propõe o que deve ser feito artisticamente, mas regula as condutas, disciplina os métodos de produção e administra os sentidos possíveis daquilo que se entende por sucesso, fracasso e mérito na cena independente.
Por trás do discurso de “orientar os independentes”, o que se instala é um regime de normatização, onde o artista é treinado para aceitar os mesmos códigos de produtividade, meritocracia e empreendedorismo que caracterizam a lógica empresarial do grande capital. Trata-se, portanto, de uma completa aderência ideológica ao modo de produção hegemônico, onde o rap é esvaziado de seu conteúdo político e convertido em nicho de mercado sob a gestão de micro-empresas culturais.
Se antes a cultura hip hop carregava em sua formação a tensão histórica com as estruturas de poder, hoje, nas mãos de figuras como Marechal, ela se resigna a um papel de ferramenta de ajuste social, estimulando comportamentos empresariais, incentivando a autoexploração e naturalizando a precarização como um degrau necessário para o sucesso individual.
A transformação de MC Marechal de MC de batalha para gestor de carreira e produtor de conteúdo motivacional não é apenas uma evolução pessoal, mas o sintoma de um processo mais amplo: o encerramento da autonomia crítica do rap enquanto campo cultural. Marechal, agora, representa com clareza a figura do administrador da esperança, aquele que ensina os oprimidos a aceitarem sua condição, desde que acreditem com disciplina, foco e fé que um dia poderão também ter acesso aos pequenos privilégios reservados aos gestores de si mesmos.
IV. A estética da escassez: a não-obra como estratégia de poder simbólico
Uma das dimensões mais singulares e, ao mesmo tempo, mais sintomáticas da construção do mito MC Marechal é a elaboração de uma estética da escassez. Diferentemente de outros MCs de sua geração que buscaram a produção contínua de álbuns, mixtapes, singles e colaborações para manter sua relevância, Marechal optou por uma postura diametralmente oposta: a ausência controlada de um disco oficial de estúdio.
Durante quase duas décadas, o discurso de Marechal girou em torno da promessa de um álbum que nunca veio. O tão esperado “primeiro disco” tornou-se, por si só, um objeto fetichizado, um espectro que ronda sua carreira e que sustenta sua figura como alguém “em processo”, “em construção”, como se sua obra fosse um diamante ainda sendo lapidado, esperando a suposta maturidade artística plena para emergir.
Essa estratégia não pode ser lida de maneira ingênua. Longe de ser apenas fruto de insegurança criativa ou de dificuldades materiais, o adiamento permanente se converteu em um recurso de marketing simbólico extremamente eficiente. Ao não lançar um álbum, Marechal alimentou uma narrativa de que aquilo que ele prepara é tão especial, tão fora da curva, tão revolucionário, que o público precisa aguardar o tempo necessário – o tempo do gênio, o tempo do mestre.
A não-obra se tornou, paradoxalmente, sua maior obra. A expectativa contínua, somada a doses calculadas de apresentações ao vivo, frases enigmáticas em entrevistas e publicações de redes sociais cuidadosamente escolhidas, serve para alimentar o imaginário de uma genialidade latente e inatingível.
No campo da teoria crítica, esse fenômeno dialoga com o conceito de “valor pela ausência”, uma forma de produção de sentido na qual o que não é entregue ao público acaba adquirindo um valor simbólico superior ao que efetivamente seria ofertado caso a obra fosse concretizada. Trata-se de uma fetichização da promessa, uma “mercadoria não realizada” que mantém o consumidor em estado permanente de espera e, por consequência, de lealdade emocional ao produtor da expectativa.
Pierre Bourdieu, ao discutir os mecanismos de produção de distinção no campo cultural, destaca como certos agentes sociais constroem seu capital simbólico não apenas através do que produzem, mas também pelo que decidem não produzir. A raridade, o silêncio seletivo e o controle das aparições públicas são estratégias recorrentes de quem deseja ocupar posições de autoridade simbólica dentro de um campo de produção restrita.
No caso de Marechal, esse processo de distinção foi ainda mais acentuado pelo seu comportamento performativo. A escolha de permanecer descalço em shows, como já foi mencionado, reforça um jogo de significados que alterna entre a mística da humildade e a representação de um líder espiritual, quase messiânico. O silêncio discográfico, por sua vez, é mais um elemento na construção desse personagem que ocupa uma posição moral e estética de suposta superioridade.
Essa gestão calculada da ausência também opera como um mecanismo de dominação ideológica. A lógica é simples, mas poderosa: “se ele ainda não lançou, é porque o mundo ainda não está pronto; é porque a obra precisa ser perfeita; é porque só ele sabe a hora certa”. Dessa forma, o público internaliza a posição de espera como um ato de fé, de lealdade e até de cumplicidade.
Aqui, a produção da escassez de conteúdo artístico não é um acidente, mas uma estratégia política de poder simbólico. Marechal faz de sua não-discografia um lugar de força. Ele é o dono do tempo, o senhor da expectativa, o gestor da ansiedade coletiva de uma geração de fãs.
Se o rap, em sua origem, foi uma cultura de urgência, de denúncia imediata, de produção rápida e de resposta direta ao contexto social, a postura de Marechal representa uma inflexão histórica: a transformação da cultura da resposta em uma cultura da espera. Não se trata apenas de um adiamento de um produto, mas de uma reconfiguração da relação entre artista e público. O discurso do “ainda não é a hora” naturaliza o poder de um só sobre os demais, reforçando o imaginário de que há uma verdade oculta que só o líder conhece e que só ele pode revelar quando bem entender.
Essa lógica, somada ao seu atual papel como coach e gestor de carreira, completa o ciclo de uma ideologia que caminha da cultura de resistência para a administração de afetos, expectativas e condutas sociais.
V. A ideologia da competência como disciplinamento de classe: entre o rap e a lógica empresarial
Ao migrar de um artista independente com discurso de resistência para um gestor de carreiras, coach de produção musical e empreendedor do rap, MC Marechal consolida sua adesão a um projeto de disciplinamento ideológico que tem na “ideologia da competência” seu eixo central. Seu novo canal no YouTube, intitulado Independente de Música, é a materialização mais recente desse processo. Nele, Marechal se apresenta como um consultor de negócios musicais, oferecendo dicas, estratégias e conselhos sobre como transformar a produção artística em empreendimento rentável, com foco claro nas métricas de produtividade, controle de processos e otimização de resultados – todos valores alinhados à lógica do mercado capitalista e sua racionalização fordista da cultura.
O canal funciona como uma verdadeira escola de gestão empresarial aplicada à música. Termos como “gestão de carreira”, “posicionamento de marca”, “monetização de conteúdo”, “otimização de resultados” e “métricas de desempenho” são recorrentes, sinalizando a completa incorporação do discurso neoliberal dentro da cena do rap independente. A estética da luta social é substituída por uma estética da performance, da eficiência e do empreendedorismo.
O que antes era visto como resistência agora é tratado como falta de profissionalismo. O que antes era denunciado como exploração de classe agora é reembalado como “falta de foco”, “imaturidade de mercado” ou “mentalidade de escassez”, nas palavras dos novos gestores culturais.
Esse processo se encaixa perfeitamente no que Marilena Chaui definiu como a “ideologia da competência”: uma estrutura de pensamento que naturaliza a divisão entre os que sabem e os que não sabem, os que podem e os que não podem, os que são produtivos e os que são vagos, os que têm o “direito” de falar e os que devem apenas ouvir e obedecer.
A retórica de Marechal, tanto no canal quanto em suas aparições públicas recentes, tem como base a premissa de que o fracasso de um artista é consequência direta de sua falta de organização, disciplina ou “mentalidade empreendedora”. Assim, desloca-se a responsabilidade dos problemas estruturais da indústria cultural – como a desigualdade de acesso, o racismo estrutural, o sucateamento da educação pública e a concentração de capital – para o campo da vontade individual, reforçando a velha máxima liberal de que “quem quer consegue”.
Essa pedagogia do sucesso baseada no mérito individual, que agora ganha corpo em seu canal e em suas palestras, cumpre uma função política objetiva: neutralizar as contradições de classe presentes no campo da cultura, transformando-as em problemas de gestão pessoal. O problema deixa de ser a estrutura para ser o indivíduo. Ao invés de estimular a análise crítica das condições materiais de produção artística, o discurso de Marechal orienta os jovens artistas a se adaptarem, otimizarem suas entregas e aceitarem as regras do jogo.
Além disso, o canal Independente de Música naturaliza o conceito de empreendedor de si mesmo, numa reedição brasileira daquilo que Pierre Dardot e Christian Laval identificaram como o novo espírito do capitalismo: o sujeito neoliberal como uma empresa de uma pessoa só, responsável por sua própria sorte ou fracasso.
Se o rap, em sua origem, era uma forma de denúncia coletiva contra as condições materiais de opressão, a prática atual de Marechal atua como gestão dos afetos produtivos, organizando os desejos e esforços dos jovens MCs em função de um sucesso empresarial que, como sabemos, permanece acessível apenas a uma minoria.
O mais problemático, porém, não é apenas a adoção do discurso empreendedor. É a construção de uma nova moral de classe dentro do rap. Marechal não apenas ensina os artistas a produzirem melhor – ele define o que é qualidade, o que é profissionalismo e quem merece estar na cena. Isso cria um campo de distinção cultural altamente excludente, onde os que não seguem a cartilha da produção empresarial são descartados como “não sérios”, “imaturos” ou “incompetentes”.
Esse disciplinamento simbólico é um dos motores ideológicos mais perigosos do rap carioca contemporâneo. Porque ao invés de estimular a politização da juventude, ele a empurra para uma corrida individualista, despolitizada e funcional à reprodução das estruturas de dominação.
A figura de Marechal, nesse contexto, deixa de ser apenas um MC ou um artista. Ele se torna um agente de racionalização ideológica, um intelectual orgânico da ideologia neoliberal no campo da cultura hip hop. Seu projeto atual não é mais o da música de protesto, mas o da administração da produção simbólica dentro dos parâmetros empresariais. Uma gestão de corpos e desejos que tem como horizonte último não a emancipação, mas a otimização mercadológica da cultura periférica.
VI. A construção do mito: entre a ausência e o culto à personalidade
Um dos fenômenos mais intrigantes da trajetória de MC Marechal é a forma como ele conseguiu construir sua imagem pública a partir da ausência. Marechal consolidou-se como um dos maiores mitos do rap nacional sem nunca ter lançado um disco solo completo, criando em torno de si uma atmosfera de mistério, expectativa e reverência que o alçou a um patamar quase messiânico dentro da cena independente.
Esse fenômeno não pode ser compreendido apenas por fatores de ordem estética ou musical. Trata-se, antes de tudo, de uma estratégia ideológica sofisticada, que opera naquilo que Pierre Bourdieu chamaria de economia simbólica do reconhecimento. Marechal transformou a falta de um álbum em um ativo de mercado. Sua ausência tornou-se presença. A promessa virou mercadoria.
Ao longo de mais de uma década, Marechal soube trabalhar com precisão os mecanismos de escassez, criando uma relação de desejo permanente com seu público. O não lançamento do disco virou um elemento central da sua marca pessoal, gerando uma expectativa infinita e retroalimentando o imaginário coletivo de que o que estava por vir seria, por definição, uma obra-prima. O que nunca chega é sempre perfeito na cabeça de quem espera.
Esse processo de construção simbólica também se desdobra em performances cuidadosamente planejadas. Um exemplo clássico é a recorrência de Marechal se apresentar descalço nos palcos. O que à primeira vista pode parecer um gesto de humildade ou de identificação com o chão da periferia, na verdade evoca, consciente ou inconscientemente, uma tradição de representação imperial e sacralizada do corpo político.
Historicamente, a imagem de figuras descalças em situações de poder tem forte carga simbólica. Imperadores bizantinos, chefes tribais e até mesmo líderes religiosos utilizaram os pés descalços como símbolo de ligação direta com o sagrado ou com o povo. No caso de Marechal, esse recurso simbólico parece projetar uma imagem de ascetismo revolucionário, de alguém que, ao mesmo tempo, é do povo e está acima dele. Um líder espiritual da cena. Um guru. Um coach.
Esse culto à personalidade foi sendo cuidadosamente sedimentado ao longo dos anos através de frases de efeito, posturas de distanciamento calculado e a construção de uma imagem pública onde a modéstia e a superioridade moral caminham lado a lado. Em sua trajetória, Marechal não apenas se retirou dos processos tradicionais de produção fonográfica, como também criou um campo de distinção simbólica entre ele e os demais MCs.
Aos poucos, o artista foi consolidando a ideia de que “nem todo mundo pode falar com ele”, que “nem todo mundo entende a profundidade da sua caminhada”, e que “quem questiona é porque não compreendeu a missão”. Essa construção discursiva reforça a verticalidade das relações que Marechal estabelece com sua base de fãs e com o próprio campo do rap.
A crítica ao sistema, ao capital e ao mercado – que aparece pontualmente em suas letras – é sempre atravessada por uma perspectiva moralizante e autocentrada. A figura do líder inquestionável substitui a crítica estrutural. O combate ao sistema vira uma batalha individualizada, travada no campo da conduta ética pessoal e não da organização coletiva.
O resultado é uma espécie de mitologia do “MC puro”, aquele que por não ter lançado disco, por não ceder a entrevistas, por manter-se “fiel” a uma suposta essência, seria mais legítimo que os outros. Essa mitologia reforça a ideia de que a ausência é sinônimo de profundidade, que o silêncio é mais eloquente do que a crítica, e que o aplauso vem por antecipação, sem necessidade de obra concreta.
Essa lógica é profundamente funcional ao capitalismo contemporâneo, que sabe transformar o não-consumo em consumo simbólico, a escassez em fetiche, a ausência em espetáculo. Como diria Guy Debord em “A Sociedade do Espetáculo”, “o que é apresentado como raro torna-se infinitamente desejável, precisamente por ser inacessível”.
Marechal, com sua trajetória, confirma essa leitura. Sua ausência material tornou-se presença mítica. Seu nome passou a circular como marca, conceito e referência, ainda que sua produção fonográfica seja mínima. Sua maior obra até aqui, paradoxalmente, é a construção de si mesmo como símbolo.
O problema, do ponto de vista político, é que esse processo reforça não apenas a lógica mercadológica do capital simbólico, mas também uma forma bastante autoritária de gestão das subjetividades no campo cultural. Ao invés de abrir caminhos para a crítica, o mito Marechal fecha o debate, neutraliza o dissenso e transforma a cena independente num espaço de adoração e reverência, não de confronto de ideias.
VII. Da autogestão à lógica empresarial: o rap como extensão da cultura start-up
Se, em seus primórdios, o rap independente foi sinônimo de resistência, contracultura e prática autogestionária, o que vemos atualmente — especialmente a partir de figuras como MC Marechal — é uma virada decisiva rumo à lógica empresarial, ao empreendedorismo de palco e à racionalização fordista da produção musical. Esse processo não se deu de forma abrupta, mas foi o resultado de uma transformação progressiva, acompanhando os próprios movimentos de adequação do hip hop brasileiro à economia de mercado e ao ethos neoliberal.
O exemplo mais evidente desse novo momento é a criação, por parte de Marechal, do canal no YouTube intitulado “Independente de Música”. O nome, aparentemente um trocadilho inteligente, já carrega em si a síntese da nova ideologia: não mais a independência como horizonte político ou estético, mas como categoria gerencial, de eficiência produtiva e de superação individual. A independência aqui é tratada como um desafio técnico-administrativo, não como uma posição histórica frente à indústria cultural.
A partir do canal, Marechal passa a ocupar uma posição cada vez mais clara de coach empresarial da música independente. Seus vídeos, lives e cursos, longe de qualquer análise estrutural sobre as condições históricas de produção cultural na periferia, são voltados quase exclusivamente para métricas de desempenho, gestão de carreira, organização de equipe, definição de metas e produtividade. A linguagem adotada é a do mundo corporativo: palavras como “gestão de marca”, “entrega de valor”, “posicionamento”, “escalabilidade” e “funil de vendas” passaram a fazer parte do vocabulário corrente.
É a completa transformação do MC em CEO da própria carreira, encarnando com entusiasmo todas as etapas do empreendedorismo neoliberal, cuja lógica central é individualizar o fracasso e transformar o sucesso em uma questão de mérito e esforço pessoal. O velho discurso da meritocracia, tão caro à ideologia dominante, agora é reembalado com terminologias de superação e empoderamento. As contradições históricas, as determinações estruturais, o racismo estrutural, o desemprego, a precarização e a violência de Estado são relegados a um segundo plano, quando não totalmente silenciados.
Essa nova fase do discurso marechalino consolida aquilo que já estava latente desde os primeiros anos da ideologia “Um Só Caminho”: a centralidade do indivíduo como unidade autossuficiente de produção, decisão e desempenho. O coletivo é tratado como um organismo que só funciona se cada célula obedecer a uma hierarquia funcional, como já apontamos anteriormente ao citar Foucault e Carlos Nelson Coutinho. Agora, com o canal Independente de Música, essa lógica é operacionalizada de maneira aberta e didática.
Do ponto de vista teórico, o que estamos presenciando é a passagem da ética comunitária para a ética empresarial, tal como diagnosticada por autores como Byung-Chul Han, que em “A Sociedade do Cansaço” e “Psicopolítica” descreve com precisão como o capitalismo avançado converte sujeitos antes explorados em sujeitos autoexploradores. Marechal não é mais apenas um MC. Ele é gestor, mentor, empresário e, sobretudo, agente ativo da reprodução ideológica neoliberal no campo da música independente.
Ao convidar seus seguidores a tornarem-se empreendedores de si mesmos, Marechal reforça um modelo de mundo no qual o fracasso social é tratado como culpa individual, onde a solução para os problemas estruturais da pobreza e da exclusão é a adaptação ao mercado. A palavra “independente”, que antes remetia à recusa em se submeter aos mecanismos de controle da indústria cultural, agora virou apenas um selo de gestão eficiente, um manual de boas práticas para pequenos empresários da música.
Essa transformação tem efeitos devastadores na dimensão política do rap. O que antes era um campo de produção de contranarrativas, de denúncia e de elaboração estética da experiência da periferia, agora é um espaço de autoajuda corporativa. O rap vira um PowerPoint motivacional em forma de rima. Não se trata mais de transformar o mundo, mas de adaptar-se a ele, com foco, força, fé — e claro, com o devido planejamento estratégico trimestral.
A defesa que Marechal faz da produção independente, portanto, não é uma defesa da autonomia política ou estética, mas da autossustentação empresarial dentro dos parâmetros do capitalismo de plataforma. Seu canal Independente de Música é, nesse sentido, o ápice desse processo de empresarização do discurso, onde o rap não é mais uma arma de luta, mas um produto de mercado, a ser gerenciado, monetizado e escalado como qualquer outro bem de consumo.
Ao assumir esse papel de coach da cena, Marechal enterra de vez qualquer possibilidade de se pensar o rap como um espaço efetivo de resistência estrutural. Sua independência é apenas formal, subordinada, como qualquer start-up, à lógica mais ampla da acumulação capitalista. O resultado é um rap domesticado, adaptado, higienizado e profundamente alienado de suas origens como expressão crítica da luta de classes.
VIII. Conclusão: Entre a fetichização da resistência e a afirmação da ordem
A trajetória de MC Marechal, especialmente a partir da consolidação de sua figura pública como empresário, gestor de carreiras e produtor de conteúdo motivacional voltado para o mercado da música, representa uma síntese das contradições mais profundas do rap carioca e brasileiro no contexto neoliberal. O que estamos testemunhando é a cristalização de um processo de longa duração: a transformação da crítica em mercadoria, da resistência em fetiche e da cultura periférica em ativo de mercado.
Marechal, ao se constituir como mito forjado na ausência, conseguiu alimentar por anos uma aura de genialidade por meio da estratégia de nunca lançar um disco completo de estúdio. Sua obra sempre esteve em estado de promessa, cultivando nas bases um sentimento de expectativa e devoção, como se a qualquer momento um grande acontecimento artístico fosse surgir, justificando a longa espera. Essa operação simbólica construiu o que podemos chamar de fetiche da ausência criadora, onde o vazio de produção é interpretado como sinal de profundidade e genialidade. Trata-se, na verdade, de uma engenharia da ansiedade, na qual a suspensão constante da entrega final transforma o próprio processo de espera em produto de culto.
O fato de Marechal ter aparecido descalço em alguns de seus shows é mais um detalhe simbólico que merece atenção. Se, para o público, esse gesto pode parecer um sinal de humildade e autenticidade, numa análise mais minuciosa o que vemos é a construção de uma imagem que remete diretamente a figuras historicamente endeusadas: reis, imperadores e líderes espirituais que, ao caminhar descalços, se colocam num suposto estado de proximidade com o sagrado e com o povo, mas que, no fundo, reafirmam sua superioridade simbólica. Trata-se de um processo de sacralização da liderança, que afasta ainda mais o público de qualquer possibilidade real de horizontalidade nas relações.
O canal Independente de Música, por sua vez, consolida a transição definitiva de Marechal de artista para agente ideológico da racionalização neoliberal. Suas falas, vídeos e cursos são um manual de sobrevivência no capitalismo, mascarado de empoderamento artístico. Não há nas suas formulações qualquer elaboração sobre as contradições de classe, sobre a exploração estrutural ou sobre os mecanismos históricos de exclusão que atravessam a história do rap. O conteúdo político foi reduzido a slogans vagos sobre superação, disciplina e produtividade.
A mitificação de Marechal está ancorada num duplo movimento: por um lado, a promessa nunca cumprida de uma obra definitiva e, por outro, o constante reforço da sua figura enquanto única referência legítima de competência, verdade e autenticidade no rap independente carioca. Quem questiona é imediatamente deslegitimado, tachado de recalcado ou de incapaz de entender a profundidade de suas propostas. Essa blindagem simbólica reforça o caráter autoritário das suas relações políticas, artísticas e empresariais.
Ao mesmo tempo, a trajetória de Marechal é expressão concreta de um fenômeno mais amplo: a absorção progressiva das culturas de resistência pelas dinâmicas do capital. O rap, enquanto espaço de contestação social, foi sendo domesticado, burocratizado e adaptado ao mercado. O discurso revolucionário cedeu espaço para a linguagem da performance individual e da gestão de si. Os MCs transformaram-se em CEOs, os coletivos em startups, e a militância em storytelling de sucesso.
Se o rap nasceu como voz dos oprimidos, o que vemos hoje é a sua transformação em propaganda da ordem. O discurso de Marechal não é exceção. Pelo contrário: é o exemplo mais acabado de como a indústria cultural consegue, por meio da fetichização da resistência, reabsorver toda forma de antagonismo e convertê-lo em mercadoria vendável.
Ao final, o que resta é um rap domesticado, blindado contra a crítica e funcional à reprodução do próprio sistema que sempre disse combater. Um só caminho, na prática, tornou-se o caminho único da adaptação à ordem burguesa, embalado por versos bem rimados, vídeos bem editados e uma retórica de superação que mais aliena do que liberta.
As obras que ilustram o corpo do texto são de Jean-Michel Basquiat (1960-1988)
A fotografia em destaque é do próprio Mc Marechal




